segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Os Verdes Anos, 1963

por Manuel S. Fonseca

Nos Verdes Anos, a pertinência da utilização do termo “novo” é de tal ordem que não seria difícil encontrar mais de uma dúzia de aplicações oportunas e razoáveis. Ressalvando o “Caso Oliveira”, não deve haver outro exemplo assim no cinema português. Adiante se conversará de escolhas estéticas, mas basta começar por onde se deve começar, pelo princípio: repare-se que Os Verdes Anos é a obra de estreia de um realizador, e é o filme de entrada de cena de um novo produtor, de novos técnicos, de novos actores, sem falar da novidade que representam os diálogos de Nuno de Bragança ou a música de Carlos Paredes.

Mas quando se diz “novo” a propósito de Verdes Anos, quer dizer-se mais do que a simples circunstância da estreia. Do que estamos ou devemos falar é do início efectivo de uma nova concepção de prática cinematográfica em Portugal, desde os processos de produção até a uma compreensão de mise-en-scène que viria a repor o entendimento do cinema como um fim no lugar do meio que quase fora nas décadas anteriores, em Portugal. Por esta razão, discordo em absoluto das leituras ainda hesitantes que, por vezes, insinuam que talvez o “cinema novo” tenha começado com Dom Roberto de Ernesto Souza e com Pássaros de asas cortadas de Artur Ramos. Repare-se que, se quisermos por mera especulação, os factos corroboram a novidade radical de Os Verdes Anos. Não só o filme se inseria numa estratégia de produção que visava à continuidade (um produtor, Cunha Telles, reúne à sua volta os cineastas disponíveis – disponibilidade física e teórica, entenda-se – e são eles Paulo Rocha, Fernando Lopes, Fonseca e Costa e António de Macedo), como igualmente essa produção se dotara previamente de quadros técnicos formados pelo 1º Curso de Cinema do Estúdio Universitário de Cinema Experimental, onde Cunha Telles era também elemento capital, e donde, no domínio da fotografia, do som e da montagem sairiam as figuras de referência de todo o cinema português que se segue aos Verdes Anos, pelo menos até aos anos oitenta. A simples leitura das fichas técnicas de Verdes Anos, Belarmino, Domingo à tarde mostra a existência de um corpo unificado que acompanha os realizadores dos filmes produzidos por Cunha Telles (lá estão Fernando Matos Silva, Elso Roque, Acácio de Almeida, Alexandre Gonçalves). Não falo sequer da diferença de espírito entre Os Verdes Anos e os “pré-históricos” Dom Roberto e Pássaros de asas cortadas, ou da abissal diferença de repercussão na crítica europeia, ou até do envelhecimento destes últimos filmes quando comparados com o crescente enriquecimento que a passagem do tempo parece ter trazido aos Verdes Anos...

Por vezes – e uma vez não são vezes – não é despiciendo falas de grandezas, cabendo dizer-se que há em Paulo Rocha uma grandeza, ainda que não da mesma ordem da de Oliveira, que jogou contra o sucesso de Os Verdes Anos, em termos imediatos. Essa grandeza é da irrisão dos temas face à sua visualização. Daí que, computados os seus filmes, parece haver, em comparação com Oliveira, por exemplo, uma dispersão temática que faz da obra de Rocha uma obra aparentemente sem núcleo. Falta ainda, e não é este o lugar próprio para fazer a leitura que esses filmes “pedem”, uma leitura eminentemente visual, onde os temas sejam parte subsidiária, estabelecendo, então sim, os pontos que podem dar unidade a filmes tão distintos como Os Verdes Anos e Vanitas.

Não admira que, nos anos sessenta, a recepção crítica portuguesa aos Verdes Anos fosse, por isso mesmo, extremamente equívoca. (E, até nisso o filme de Paulo Rocha é distinto de Dom Roberto e, sobretudo, dos Pássaros...). A crítica, dominada pela urgência social – pela ditadura do neo-realismo, se quisermos chamar as coisas pelo seu nome –, que obrigatoriamente exigia à obras “uma estrutura verdadeiramente dialéctica” (a expressão é da época) agarrou-se à história, ainda por cima com um tema tão socialmente prometedor, do jovem provinciano que chega à cidade, apostando tudo nesse confronto entre campo e cidade.

Numa entrevista da altura (Jornal de Letras e Artes, 6 de Maio de 64), Paulo Rocha bem tenta desfazer o equívoco: “Normalmente estamos habituados a sobrevalorizar a história em relação à mise-en-scène. Nos Verdes Anos tentou-se ir contra isso. O que mais interessava era a relação entre o décor e o personagem, o tratamento da matéria cinematográfica. Eram as linhas de força, num plano, que davam o seu peso e a sua importância”. Foi isso que a crítica “socialmente empenhada” não compreendeu, nem poderia, por desajustamento dos parâmetros de avaliação, compreender. Daí que se falasse num filme “mecânico no retrato das relações sociais”, ou de um filme com evidente “insuficiência de notação psicológica” das personagens. Apetece dizer que tinham razão, embora não fosse a razão que julgavam ter.

Ilda (Isabel Ruth) e Júlio (Rui Gomes) não têm, de facto, profundidade psicológica, em sentido tradicional, quero dizer, literário. No entanto, se pensarmos visualmente Os Verdes Anos, descobriremos que a raiz social comum das duas personagens, é pulverizada pela diferença de espaços que habitam, diferença que o filme de Paulo Rocha rigorosa e obsessivamente mostra. Júlio está indissoluvelmente ligados às caves (a sapataria) e a sua visão é determinada pela esquadria rectangular e horizontal da janela que fica ao nível da rua. Repare-se, aliás, que a personagem é sempre associada ao tema pontuador dos sapatos, outra das referências ao ponto de vista raso que é o seu. (Parêntesis para estabelecer filiações cinéfilas: é por esse ponto de vista raso e ao nível do solo e pela divisão em linhas horizontais do espaço de cada enquadramento que a herança japonesa, de que Paulo Rocha se reivindica, está já presente nos Verdes Anos).

Ilda situa-se ao nível médio do espaço urbano, onde, ao contrário de Júlio, se move com ligeireza e à vontade. Comungando da mesma origem social, Júlio e Ilda estão separados pela arquitectura e, arquitectuta oblige, pelo comportamento. Por aqui se vê que, mesmo a título de leitura sociológica da cidade no fim do salazarismo, o filme de Paulo Rocha fartava-se de ser agudo e pertinente. Também aqui se justifica a abertura de um segundo parêntesis para estabelecer influências e afinidades: a disposição arquitectónica de Os Verdes Anos pode ver-se como uma homenagem a Fritz Lang, cuja influência me parece igualmente incontestável na criação desse clima negro que, a pouco e pouco, se vai apoderando da cidade, até culminar no “episódio daquela noite”. É esse crescendo nocturno, tão característico do Lang “americano”, que nos prepara afinal para a sequência fatal, suavizando a sua aparente e abrupta irracionalidade.

No seu livro, Vinte Anos de Cinema Português: 1962-1982, Eduardo Prado Coelho, num texto de análise aos Verdes Anos insiste na desproporção “entre a placidez em que todo o filme decorre e o gesto final, violento e desmesurado, de Júlio”, apontando essa desproporção como “uma das molas dramáticas mais interessantes deste filme”, embora não deixe de nos avisar contra o “melodramatismo bastante incomodativo”. Ao invés, Paulo Rocha sustenta que “se em vez de estarem atentos à história e às palavras, olhassem o tratamento dado a estas, não haveria dúvida possível, ao nível da mise-en-scène era uma progressão inexorável”. Em que devemos ficar: na desproporção de Prado Coelho ou na inexorável progressão de Paulo Rocha?

Já que este é um texto de “desacordos” feito, permito-me discordar também de Eduardo Prado Coelho. De resto, toda a leitura de Os Verdes Anos é ainda, salvo retórica própria, muito semelhantes às leituras temáticas dos anos sessenta, ou seja, uma leitura de privilégio do temático em detrimento do formal. Só isso explica que se fale de “ingenuidade do protagonista” ou que se opte pela classificação simples de “um filme de campo contra a cidade”. Eduardo Prado Coelho deixou-se iludir, creio, pelas falsas pistas que Paulo Rocha espalhou pelo filme, a começar pela mais óbvia, a do título. De facto, a última coisa de que aqui se trata é de “verdes anos”. Estamos, desde o princípio, perante uma personagem (Júlio) que simula “bons sentimentos”, mas cuja contenção – e até uma certa gaucherie de comportamento – silencia o pendor trágico. Que a tragédia seja filmada tão subtilmente – como se de um murmúrio se tratasse – eis o que despistou mesmo os mais avisados, fazendo-os deslizar para a visão meramente lírica, sem perceberem que, em filigrana, todo o filme fala do sentimento do náufrago e que a explosão – se quiserem, para voltarmos à disposição arquitectónica, o nivelamento do subterrâneo e das alturas – está sempre prestes a irromper.

Os Verdes Anos é um filme do subterrâneo contra a altura, é um filme sobre a ascensão e o mergulho. Não sou eu quem o diz. É o plano de pedra lançada ao poço, é a cena do elevador de Santa Justa, com a sintomática réplica do tio a propósito “dos tipos que se lançam dali a baixo”, quem o diz é a sequência do par em casa dos patrões, terminando com o contra-plongé dos tectos e candeeiros, metáfora de um mundo às avessas em que o constrangimento de Júlio nunca é escamoteado. Afinal, todo o filme é a lenta e delicadíssima maturação da sequência final, constituída por dois movimentos tão bruscos como lógicos: em primeiro lugar, a subida rápida de Júlio a casa dos patrões de Ilda, dando-se o caso, mas não o acaso, de ser essa a primeira vez que Júlio se comporta de um modo quase alegre e, dir-se-ia, aliviado; em segundo lugar, após o crime, temos a descida abrupta pelas escadas – e o elevador, e os medos que ele desperta, é, como os sapatos, um dos sinais pontuadores recorrentes, a merecer por si uma tese – até aos três planos finais, esmagadores, repondo (e a figura que se desenha é a pirâmide) a hierarquia da ordem humana e divina, e impondo um silêncio que fica como o melhor som de Os Verdes Anos. Tão sublime como esse silêncio é apenas a elipse portentosa do crime, humilde homenagem de Paulo Rocha a Jean Renoir, de quem foi assistente em Le Caporal Epinglé [O Cabo Ardiloso, 1962], tão semelhante é o pudor demonstrado, como assinalou, em 1963, em texto publicado no Jornal de Arte e Letras, António-Pedro Vasconcelos, para que, depois, Alberto Vaz da Silva, no Tempo e o Modo, pudesse, na mais bela síntese do filme, assumir criticamente a importância dos Verdes Anos, e cito: “os filmes belos como o seu conhecem-se como o cristal, pelo toque”.   

Texto em português de Portugal. Disponível em “Paulo Rocha: As folhas da cinemateca”, páginas 31-35, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema (livro indisponível no Brasil).

Nenhum comentário:

Postar um comentário