segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Clube do Filme: Os Terroristas

O Clube do Filme continua em atividade, mesmo durante a epidemia, em formato virtual. Mensalmente nos reunimos para a discussão de um filme e textos relacionados, atualmente em uma exploração do cinema do realizador Edward Yang.

O filme do mês é "Os Terroristas" (
Kong bu fen zi, 1986).

Atenção: nosso encontro, excepcionalmente, será em 03 de novembro, uma semana depois da data de costume. E teremos ainda outro filme de Yang em novembro, claro.

"Porque seu cinema [de Yang] é, ao mesmo tempo, uma crítica aos valores tradicionais de uma Taipei antiga e uma crítica às modificações da Taipei contemporânea, e este resultante é impossível de ser achado. Mas, em vez de se prender a um fatalismo simplório, no qual a felicidade é um componente impossível, seus filmes iniciais parecem conter não necessariamente uma receita para o bom viver (até porque, em dois deles, o final certamente não é positivo), mas uma idéia de seqüência, de continuação, de existência, e pronto."
- Leonardo Levis

O filme está disponível aqui. Qualquer problema, fale conosco.

Dois textos para leitura:
A) " Um homem morre, uma mulher vive e o mundo continua", de Leonardo Levis, disponível aqui.
B) Crítica do filme por Francisco Cannalonga, disponível aqui.

Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Devido a limitações de tempo do Meet, voltamos com nossa sala do Jitsi.

Serviço:

Clube do Filme: "Os Terroristas" (1986), de Edward Yang.
Dia 03/11 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
ENTRADA FRANCA

Coordenação e mediação: Giovanni Comodo
Realização: Coletivo Atalante

terça-feira, 19 de outubro de 2021

"That day, on the beach” nos faz desejar – dos reflexos a reflexões


por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

A propósito de “That day, on the beach”, Ruy Gardnier assim se pronunciou no seu memorável artigo “Edward Yang, Artista do Reflexo"[1]: Assim, mesmo sem inscrever seus mundos ficcionais na construção típica do melodrama,...  os filmes de Yang revelam grandes pontos de contato com o gênero. Kátia Patrício teve sensibilidade para interrogar Por quê? Por que “That day, in the beach” não é um melodrama?

Tomo sua pergunta para mim, de partida afirmando, como certeza antecipada, que não, “That day, on the beach” não é um melodrama, embora revele, como diz Gardinier, grandes pontos de contato com o gênero. O que me obriga e me explicar, principalmente para mim mesma.

De partida, vamos às definições correntes: O drama e o melodrama são ambos gêneros literários. O drama é um gênero amplo que lida com personagens realistas e histórias realistas. O melodrama, por outro lado, é caracterizado por emoções e situações exageradas e personagens estereotipados. Portanto, a principal diferença entre drama e melodrama é que o drama retrata personagens realistas e foca no desenvolvimento do personagem, enquanto o melodrama retrata personagens exagerados oriundos de estereótipos. [2]

Além disso, podemos considerar que é característica do melodrama intensificar as virtudes e vícios das personagens, sejam elas vilãs ou heróis, enfatizando-lhes artificialmente determinadas características, pois o objetivo maior desta estética é impressionar e comover cada espectador, através da “verossimilhança”, reafirmando a qualidade moral e sentimentalista da obra. [3]

Só com essas primeiras reflexões já me vejo com elementos para entender que o filme em questão responde ao registro do drama e não do melodrama: Os personagens de Young são gente real e não estereótipos sentimentalistas. Mas não me dou por satisfeita e vou em busca de outras chaves para aprofundar a questão, mas logo descubro que, para usá-las, tenho que fazer uma trapaça: preciso tornar “drama” homólogo a “tragédia”; e “melodrama”, homólogo a “drama”.

Isso, porque tento começar pelo começo, pelo teatro grego, guiada pela mão de Nietzsche[4]. E lá, se bem entendo, a dicotomia se faz entre tragédia e drama. Não há melodrama. E a tragédia (leia-se o drama contemporâneo) fala da dimensão necessária e inevitável da vida humana - a sua finitude -, conduzindo o espectador ao reconhecimento; enquanto o drama (leia-se melodrama) que, cronologicamente, se segue, vai representar estereótipos comoventes.

Nietzsche situa o nascimento da tragédia grega nos ritos dionisíacos. Afirma como primeira aparição daquele teatro o registro trágico, atingindo seu apogeu com Ésquilo; e identifica sua inflexão para o drama com a entrada de Eurípides em cena.

Para o então professor de Filologia, o festival das bacantes em honra a Dionísio, quando foi tocado pelo espírito apolíneo perdeu seu caráter orgiástico e converteu-se no teatro de tragédia, num primeiro registro histórico dessa apropriação recorrente que a elite faz daquilo que é produto da criatividade primitiva do homem do povo, como depois fará com o jazz, o samba e o tango.

No teatro de tragédia, o homem é representado submisso ao capricho dos deuses, mero cumpridor de oráculos. O trágico da condição humana, conhecido de todos nós no impossível de se escapar à morte, é o tema central de toda tragédia – e comove a todos, já que a todos inclui.

Com Eurípides, endossado por Sócrates, o homem torna-se responsável pelo seu destino, resultando o seu sofrimento de suas próprias escolhas e decisões. Surge o drama, que deixa escapatória ao espectador Eu não estou condenado a este sofrimento, porque eu faço boas escolhas e tomo decisões acertadas. A narrativa dramática passa a ser testemunhada desde fora da atuação.

Nesta transição, na história do teatro grego, o espetáculo vai saindo do fio do discurso falado/escutado e começa a se tornar visual, uma cena a ser vista. De fora.

Parece-me que, adotando esta chave nietzschiana, podemos tentar esclarecer o caráter não-melodramático (quer dizer, trágico) de “That day, on the beach”, filme em que o cineasta desenha e dirige seus personagens para que nos apresentem vidas banais, onde os desdobramentos narrativos decorrem mais da própria condição humana que de um mau passo - sendo este “mau” determinado por um código onde o bem e o mal são estabelecidos no registro maniqueísta.

Numa direção de atores que nos põe face a face com rostos que falam, principalmente em seus silêncios, alternadamente somos levados aos acontecimentos descritos, como eles seriam imaginados a partir do fio do discurso. A alternância entre os rostos e as cenas em movimento nunca parece artificial ou forçada, ao contrário, as transições acontecem como necessárias, como se fôssemos suavemente conduzidos para dentro da alma daquele que relata e pudéssemos partilhar suas memórias das situações relatadas. Criam-se ondulações suaves entre discurso falado e encenação. Tais ondulações capturam o espectador para dentro do relato.

A partir de duas mulheres conversando durante o tempo de um café – sim, o filme é um olhar feminino sobre a vida –, todos os personagens são apresentados. Ao longo do filme, vemos uma sucessão de gente muito bonita e muito bem vestida (talvez um modo de dizer que estão bem na vida), posta na própria história com o tamanho de cada qual.

O centro de gravidade, no início posto em uma das interlocutoras (Terry Hu, como Tan Wei Ching), rapidamente se desloca para a outra (Sylvia Chang, como Lin Jiali) e cobre a trajetória desta, desde a infância, situando o filme no gênero romance de formação. Nada é gratuito. Nada é excesso. O que fica de fora parece intencional, pois convoca o espectador a completar as lacunas.

Cabe uma reflexão a mais: se tomarmos uma chave freudiana[5] para pensar, podemos considerar que a infelicidade espreita o homem desde três fontes: seu corpo, que nem pode prescindir da dor e da angústia como importantes sinais de alarme; o outro, sempre pronto a lhe produzir estranhamento; a natureza, que lhe guarda indiferença.

A esta instância soberana inevitável, a infelicidade, o homem pode responder com a miséria neurótica e seus transbordamentos de excessos afetivos, ingressando numa vida melodramática. Mas também pode responder com uma serenidade trágica, vivendo a infelicidade comum.

A frase pronunciada pelo irmão de Lin Jiali antes de morrer parece resumir o espírito do filme, Sou grato pelas pequenas alegrias que fizeram esta curta vida durar bastante.

Uma concordância plácida com a vida e suas limitações e limites e um modo pacífico de dizer “sim” à contingência e ao efêmero - parece-me ser este o ponto de capitonê para onde convergem todas as linhas do filme. Nenhuma denúncia, nenhuma reivindicação, nenhuma autocomplacência ou autocomiseração. Pura vida humanamente vivida.

Nós, capturados pela doçura do filme, não temos que tomar partido, nem contra nem a favor de coisa alguma, só nos restando desejar que a gente também possa ter a felicidade de manter com a vida uma relação amistosa.

Curitiba, 5 de Outubro de 2021
Agradeço a Antonio Jaques da Silva, pela interlocução.



[1] Gardnier, R. Edward Yang, Artista do Reflexo http://www.contracampo.com.br/89/artyangruy.htm

[4] Nietzsche, F. O nascimento da tragédia no espírito da música. 1872

[5] Freud, S. O mar estar na cultura, 1930

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Wolfram, a saliva do lobo – um poema telúrico

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva


Tudo é exagero, abundância e excesso nesse filme de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta. Ainda assim, nada é demais e nada sobra: o Real é mostrado em estado bruto na sua justa medida.

Tudo começa num laboratório, onde sucessivas operações químicas permitem exibir o metal prateado, até então prisioneiro na trama do minério. Do laboratório vamos à mina, cuja entrada é assinalada por advertências: perigo!

O primeiro sentimento é de susto: o perigo cerca o casal de cineastas, nunca mostrados, mas o tempo todo adivinhados por detrás da câmera temerária, que leva o olho a pontos de vista inéditos. Um risco que leva ao espanto e corta a respiração: a carne frágil, sujeita a dilacerar-se, exposta a forças ciclópicas, numa reedição de Ulisses e seus companheiros de Odisséia na toca de Polifemo.

A seguir somos capturados na plena potência de um Deus ex machina que, esbanjando forças avassaladoras, submete a montanha de pedra, perfurando, rompendo, quebrando, estilhaçando, cisalhando, moendo e convertendo, enfim, rocha em pó, destinado ao fogo incandescente. Os homens entrevistos como serviçais humildes do monstro que faz tremer e devora a Terra.

Somos embalados por um ruído ensurdecedor transformado em poema sinfônico – o som furioso da montanha gritando sob os dentes que a devoram convertidos em música: um hino de guerra entoado por um exército em ordem de batalha, numa verdadeira cavalgada das valquírias. Sonoridade das oficinas de Vulcano convertida em canto de louvor a Dionísio, próprio para o festival das bacantes e, como ensina Nietzsche, precursor da tragédia, que parece suspensa e iminente na vizinhança de máquinas que mostram os punhos de poderosos Titãs.

Vemos imagens sem palavras, que não há palavra que encontre lugar naquela manifestação cruenta de forças da Natureza, mesmo orquestradas por Apolo. Então, não é apolínea a condução do processo que ordenha a Terra, para dela extrair o leite desejado? Afinal, se o homem aparece servindo à máquina, no limite é, ela própria, escrava obediente, que tão somente cumpre os desígnios desenhados e projetados pela Engenharia humana para obter o metal que, até há pouco tempo, dava luz ao mundo.

Imagens que nos mostram que as máquinas cumprem as ordens de seu criador, ordens estas resultantes do ordenamento simbólico exercido pela inteligência do homem no esforço de governar o Real. Mostram também a dignidade suprema do trabalho humano e, simultaneamente, o seu aviltamento – até o desconforto extremo e a ameaça permanente – conversando o tempo todo, num confronto ainda insolúvel. O produto: riqueza! Para quem? Para a humanidade.

O mais é beleza – beleza em estado bruto e puro. Grafismos, cores, tons e meios-tons, cintilações, reflexos, granulações, texturas, corredeiras, cascatas e ondas, matéria sólida convertida em fluido, arte plástica em movimento, transformação e mutação.

No fim do filme, a conclusão siderante de um circuito, onde a causa final, mostrada no princípio, reaparece, fechando-se o ciclo: as mãos calejadas de um operário dobram o envelope que levará a amostra ao laboratório, onde será examinada, pesada, medida e analisada, com a sabedoria herdada dos alquimistas, para a verificação final da qualidade da saliva do lobo.

Finalmente entram em cena as palavras, sem que se renuncie ao seu silêncio. São palavras escritas, na caligrafia desenhada pela mão do operário: imagens identificadoras das amostras – celebrando os hieróglifos, ideogramas, alfabetos, marcas, enfim, que afirmam, no registro simbólico, a vitória da Cultura sobre a Natureza. Ali e então.

O comovente hino dos mineiros chilenos, cantado ao final, em vozes alentejanas, embalando o arvoredo que se agita ao vento (finalmente é possível respirar), sugere uma ponte solidária estendida do Atlântico ao Pacífico, irmanando os mineiros de todo o mundo? Talvez.

Entretanto, a canção não consegue calar o silêncio respeitoso que me invade a alma ferida, exposta, como chaga aberta, à ardência de uma verdadeira obra de arte.

Curitiba, 19 de agosto de 2021.