quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Destruindo “Um Cão Andaluz”



Luis Buñuel e Salvador Dalí partiram de uma premissa relativamente simples para a confecção do roteiro de "Um Cão Andaluz" (França, 1929): qualquer ideia que pudesse ser compreendida racionalmente era sumariamente descartada, restando assim apenas imagens e ações "inexplicáveis". Esta disposição permitiria aos realizadores executar o filme a partir das necessidades de seus inconscientes, de suas vontades mais recônditas, sombrias, travestidas de um permanente "dizer nada".
Entretanto, este "nada" vira "tudo" no momento em que os devaneios dos artistas se materializam no filme pronto, permitindo assim que qualquer pessoa atribua sentidos àquilo que originalmente era livre associação e escrita automática.
Hoje as intenções por trás das escolhas inconscientes dos artistas são nítidas, sobretudo graças à colaboração de Sigmund Freud ao pensamento ocidental contemporâneo. Freud percebeu que o Homem era dominado por pulsões que escapavam à sua razão, mas que poderiam ser apreendidas e analisadas através da linguagem. E é desta maneira que localizamos as disposições iconoclastas e eróticas (Eros e Thanatos) num discurso que, para os seus emissores, não deveria existir.
Tomemos, por exemplo, o fragmento (a obra não nos permite chamar o encadeamento de ações de "cenas") central do filme: após o atropelamento da figura andrógina, o Homem que observava pela janela é acometido porum furor sexual que o lança para cima da Mulher, acariciando-lhe os seios enquanto vira os olhos e baba sangue. A associação entre o desejo erótico e a morbidez cadavérica amplifica a confusão do personagem.
Em seguida, a Mulher foge e se arma com uma raquete, ameaçando o Homem. Ele para, encara a Mulher, olha ao redor e pega duas cordas antes de partir para cima do objeto de seu desejo. As cordas estão atadas a duas tábuas (como as dos 10 Mandamentos), dois pianos, dois asnos mortos e dois padres, o que o obriga a arrastarum peso descomunal. O dado mais interessante da ação é o fato de que o sujeito "procura" pelos elementos (aqui podemos resumir os objetos ao termo "Cultura") que o impedem de dar vazão plena ao seu desejo. O peso das coisas o protege de si mesmo.
Quando a Mulher escapa de vez, ele larga tudo. Mas é tarde demais. A Mulher bate a porta pretendo a sua mão direita (a mão do Homem em contraste com a mão de Deus) de onde caem as formigas. Representaria isto a perda do controle?
No quarto, o mesmo Homem aparece deitado com a fantasia que lhe atribui um aspecto infantil. A campainha toca (uma coqueteleira!) e a Mulher abre a porta (a Mulher sempre abre e fecha portas simbólicas) para uma figura que não sabemos quem é, mas que logo assume uma função paterna autoritária, arrancando a fantasia do Homem (nos dois sentidos) e atirando-a pela janela. Esta figura sem rosto (pois permanece sempre de costas para a câmera) coloca o Homem de castigo no canto do quarto e quando se vira revelando sua identidade (intertítulos anunciam: "seis anos depois")  descobrimos que é o mesmo Homem! Ele caminha até a escrivaninha, pega os livros e entrega para a persona de castigo. Os livros transformam-se em revólveres que alvejam a persona autoritária, numa franca conversão da cultura em objeto libertador (em contraste com as quinquilharias aprisionadoras da ação anterior).
Na hora da morte, contudo, a "figura paterna" cai em um cenário idílico a tempo de passar as mãos nas costas nuas de uma mulher que desaparece em seguida. Ele também era um prisioneiro.

Transformando desta maneira em palavras as imagens de "Um Cão Andaluz", podemos desvendar mais facilmente o hermetismo de seus símbolos. Tais imagens são plenas de sentido e revelam a vontade de seus produtores de abraçar a liberdade, que permanece sempre como as belas costas que escorrem nas pontas de nossos dedos.

Miguel Haoni

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