domingo, 19 de abril de 2015

O Estranho Caso de Angélica


(2010, Manoel de Oliveira)

Em seu belo texto sobre Manoel de Oliveira, “Uma nova aventura lusitana”, Inácio Araújo afirma, referindo-se às culturas do passado que retornam e se presentificam ao longo de toda a filmografia do diretor, que em seus filmes “o tempo não existe, não o tempo cronológico (…) o tempo se concentra, tende à inexistência ou mesmo a um certo tipo de insignificância”. O Estranho caso de Angélica não é exceção. E o que volta do passado aqui é certo imaginário ou sensibilidade desenvolvidos à época do Romantismo. Como em tantos outros filmes de Oliveira, parece que estamos, em Angélica, em pleno século XIX (uma espécie de interesse constante do diretor), embora seja um século XIX com automóveis modernos e uma máquina fotográfica perfeitamente a cores – o tempo cronológico não importa, afinal.
Ora, não seria Isaac, o fotógrafo e leitor de filosofia recluso em seu quarto, uma espécie ou variante de Werther? Se lembrarmos bem, este apaixonado suicida só deixava de lado o mergulho em suas leituras e o quarto da estalagem onde estava hospedado para olhar a natureza e desenhar suas singularidades (até conhecer Lotte, claro). Eram desenhos rápidos, à mão, que tentavam captar o instante do sol batendo na grama, segurar a marcha atroz do tempo, etc… fotografias, enfim. A comparação é importante, porque é justamente este personagem, Isaac, que poderá – ou estará apto ou predisposto – a enxergar como viva uma mulher que acabou de falecer. Como se sabe, a grande revolução do Romantismo contra as hierarquias da beleza clássica foi estabelecer que “tudo fala”: uma mera pedra, uma árvore, uma pequena casa vulgar, um defunto, tudo faz parte da opacidade misteriosa e imanente das coisas do mundo e tudo pode ser elevado a objeto da arte, tudo esbanja significados inimagináveis, todos os objetos podem ser portas para uma transcendência sublime. O que estas coisas nos escondem? Que verdade essencial há em seu mistério? A condição melancólica do romântico era olhar o mundo a partir dessa dúvida permanente. E é o que acontece com Issac, que lança olhares tristes para o lado de fora da janela (como nas pinturas de Friedrich) e que, como ele mesmo afirma, se interessa pelas coisas que estão prestes a desaparecer, como um grupo remanescente de trabalhadores rurais que logo serão substituídos por máquinas e que ele fotografa.
Oliveira precisa desse personagem – o retorno a esta “vertente romântica” se justifica porque o cineasta português faz parte, junto com tantos outros diretores que estão no topo do debate cinéfilo contemporâneo, de uma busca justamente pela transcendência que as coisas opacas e misteriosas do mundo podem dar a vislumbrar, através da imagem. Ora, essa é a “verdade” (que alguns chamam de “real”), fugaz como um raio, que tanto persegue os personagens (de diferentes épocas) de Non, ou a vã glória de mandar, que tanto inquieta Leonor Silveira (que, sempre ótima, interpreta a mãe de Angélica neste último Oliveira) em Espelho mágico; é ela que paira no trágico passeio pelas “civilizações” de Um filme falado, é ela que permeia os passos de Michel Picolli (e seu caminhar na escada no último e devastador plano do filme) em Je rentre la maison, etc, etc. É essa busca utópica e “sublime” do cinema – portanto em certo sentido modernista – de Oliveira que faz com que aqueles que tanto comemoraram a vitória de Apichatpong em Cannes repitam que ele, com 102 anos, é mais jovem e interessante que tantos outros cineastas por aí.
Tal busca, em Angélica, é empreendida através do entrelaçamento de dois caminhos, ou duas camadas que o filme traz: há em primeiro lugar a “historinha” que o roteiro desenvolve – como sempre em Oliveira de maneira distanciada, paródica, cínica e humorada, através das interpretações graciosamente afetadas dos atores, do pastiche com a “ingenuidade” do primeiro cinema, etc – ; e há, em segundo lugar, quando a imagem apresenta a materialidade das coisas em sua plena singularidade opaca e ininteligível para nós. É aí que esse filme sobre fotografia cria um certo “efeito-fotografia” na imagem cinematográfica (em movimento): o espectador deve aí enfrentar todo o mistério do passar irrefreável do tempo (ou, como diria Inácio, sua “não existência”), daquilo que as coisas às vezes, rápido como um relâmpago, podem, ou não, nos revelar; deve esboçar, talvez, um punctum (se lembrarmos do Barthes de Câmara clara). Criar esse “efeito-fotografia” – também através de uma decupagem que transforma o olhar de Isaac mesmo em uma câmera fotográfica através da persistência de planos subjetivos dele (lembrar de sua entrada na casa de Angélica, quando capta todos os detalhes da sala) – tem seus riscos: o espectador pode permanecer apenas na primeira camada, na “historinha”, e enxergar o filme como algo completamente banal.
Contudo, nosso caminho é preparado: do mesmo modo que Isaac, e apenas Isaac (que tem em seu oposto completo a simples, simpática e funcional dona de estalagem), muda de postura com relação ao mundo por causa da imersão em suas leituras, o roteiro de Oliveira, os poemas e citações que o fotógrafo declama (“ó, tempo, detêm-te!”, etc), a conversa à mesa do café (uma das melhores sequencias do filme e oliveiriana por excelência – notar o brilhante Luis Miguel Cintra, de cabelos brancos) sobre a fantástica natureza da matéria – referência clara a Epstein, como o nome da loja de fotografia do primeiro plano, “Foto Genia” – tudo isso como que nos “ensina” a olhar as outras imagens do filme de outro modo. Eis que o que fica em nossas cabeças forte e persistentemente não é a imagem de Angélica – um cadáver sarcasticamente sorridente e sem nenhuma aura – mas o sol batendo nos trabalhadores que levantam poeira ao cavar, o gato que olha entretido para o passarinho voando na gaiola, o plano geral da cidade que Isaac olha detidamente pela janela, o som misterioso do caminhão que passa toda manhã pela frente da estalagem (, pouco antes de morrer, ele apenas os escuta, sem vê-los). Nesse sentido, a sequencia mais incrível do filme – um travelling mostrando a sequencia de fotos (em que se alternam Angélica morta e os trabalhadores rurais) penduradas no varal de Isaac – pode resumi-lo: o que acontece quando se justapõem – quando se monta – uma linda jovem morta e alguns trabalhadores rurais cuja atividade está prestes a se extinguir, que significados eles, em todo seu agressivo mistério, podem permitir que surjam? Não coincidentemente, voltamos à pergunta que está presente na diegese e na mise-en-scéne de Tio Boonmee: que vida é possível se ter depois da morte?

André Antônio
(Texto original e imagens: 
http://www.filmologia.com.br/?page_id=2309)

Um comentário:

  1. Quero registrar meu profundo agradecimento ao Coletivo Atalante, ao Cineclube da Cinemateca e ao Miguel Haoni, pela Mostra Manoel de Oliveira.

    Foi um grande prazer entrar em contato com a obra desse ilustre lusitano: emocionou, fez pensar e deixou um gosto de quero mais.

    Parabéns pela iniciativa!

    Vera Lúcia de Oliveira e Silva

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