Cahiers - Há uma característica comum às suas críticas, nos seus filmes e nas suas emissões televisivas, que é a de um certo espírito didático.
Eric Rohmer - Não existe apenas o cinema narrativo, poético, ficcional, mas também o cinema outrora denominado documental, que agora se prefere chamar por um termo que aprecio menos por ser pretensioso: informativo. Ou seja, didático. Neste terreno, talvez haja mais a se fazer que no cinema de ficção, e me dei conta disso graças à televisão escolar. Lá, é preciso exercer uma espécie de violência sobre o próprio cinema, que, apesar de ter uma aptidão documental inata, nem sempre está capacitado para tratar de alguns temas, porque não são visuais.
Em outras palavras, é preciso “visualizar”. Sinto certa repugnância pela coisa, e ao mesmo tempo sou interessado por isso: sinto repugnância em tornar visual algo que não o é, mas quando este algo pode vir a sê-lo, é extremamente interessante. É preciso intervir por um viés, é preciso encontrar este viés. O que me interessa é conhecer pelo cinema coisas que se furtam ao conhecimento através deste meio de expressão. Seja porque me parece que a dificuldade recompensa a arte, seja porque este modo de solicitar uma realidade que se esconde permite conhecer as coisas que um olhar mais direto ou mais imediato não poderiam conhecer. Faço programas literários. Ora, a literatura e a poesia são as coisas menos filmáveis que existem. Não se poderá jamais filmar diretamente um texto, nem explicá-lo, nem ilustrá-lo. Todavia, penso que se pode existir um conhecimento, através da televisão, de tal texto, que pode ser interessante e que enriquecerá não só o cinema como a própria literatura. Isto significa que podemos nos atrair por aspectos que não são aqueles que mais atraem atualmente. Tomemos a pintura. Está claro que o cinema, quando se serve dos quadros para evocar o mundo em que foram pintados, convida-nos a uma concepção “impura” da pintura. Mas me pergunto até que ponto seria correto, hoje, considerar num retrato unicamente a arte de Ticiano e não do modelo que posou. Cada vez mais que vou ao museu, quando observo um quadro, observo aquilo que foi pintado, e isso me dá um conhecimento tão grande da pintura quanto se eu considerasse o toque do pintor. Quando filmei minha emissão sobre La Bruyère, fui ao Louvre unicamente com o intuito de saber como eram confeccionados os vasos do século XVII. Mas vi nesses quadros coisas que não teria visto se não as tivesse olhado unicamente do ponto de vista dos vasos. Não tentava distinguir os pintores entre si, nem julgar a cor, a técnica. E, todavia, isso me deu uma idéia ainda mais ampla da pintura. Por conseguinte, o cinema, inclusive na medida em que poderia parecer um pouco reacionário em relação às outras artes, um pouco anedótico, pode introduzir a um maior conhecimento das coisas.
O interesse em um cinema didático, em particular um cinema que se sirva de documentos, de obras de arte (em geral, o que mostramos do passado são as obras de arte), é o de ligar mais estreitamente a estética e as outras disciplinas. O amor pelo verdadeiro, o amor pelo belo estão ligados. Isso nos leva a descobrir o passado sob um ângulo forçosamente estético: a beleza das coisas que se mostram, ao mesmo tempo que a arte que se introduz a si mesma na forma de mostrá-las. No meu La Bruyère, o fato de buscar as coisas que são visuais, físicas, sobre as personagens, fez-me interessar por “características” que não são os aspectos mais evidentes e destacados: em particular, o que poderia se chamar o lado naturalista, e quase fisiológico, de sua descrição. A atitude corporal do homem não é a coisa que mais surpreende na sua leitura. Interessa mais as notações de ordem puramente psicológica ou de ordem social. Representar essas personagens na tela vos obriga a descobrir coisas que existem e que sem isso não poderiam ser notadas de outra forma. O mesmo ocorre com Perceval, que é o que fiz de mais simples, de mais escolar, onde pude situar paralelamente a descrição dos combates que se admira na poesia da Idade Média e as miniaturas, que são uma arte decorativa extraordinária, coisas que em geral não foram percebidas por... Por quem? Porque as pessoas que se ocupam da literatura não se interessam muito pela ilustração e as que se interessam pela ilustração não se interessam pela literatura. Existe no século XII uma arte extremamente importante e que inclusive é uma das maiores, a arte dos trovadores, a arte da civilização occitana. Se emprego a palavra arte é porque significa a fusão de duas atividades precisas: poesia e música. A música era composta pelo poeta. O poeta era seu próprio músico. Mas as pessoas que estudam o poeta não pensam em absoluto no músico, e, na literatura, considerava-se esta poesia como bastante fria, na medida em que não se ouve cantada. Por outro lado, os que se interessam pela música não conhecem essa língua e, por conseguinte, escutam, mas não sabem o que ela significa. Bem, poder-se-ia através deste filme gostar ao mesmo tempo da poesia e da música. O cinema é uma espécie de conglomerado das diversas artes. Permite estabelecer uma ponte entre elas, e creio que isso é uma coisa muito importante, inclusive a um nível muito humilde e pedagógico.
Cahiers - Por que não utiliza música nos filmes?
Eric Rohmer - Eu repreendo muitos filmes, principalmente os filmes “poéticos”, de serem regalados pela música, freqüentemente banal, e de forma alguma necessária. Não vejo a que a música possa servir, senão para ajustar um filme que é ruim. Um bom filme pode prescindir dela. E além do mais, não é moderno, é uma convenção que data do cinema mudo, quando se tocava piano na sala. O fato de associar uma música qualquer às folhas das árvores, às nuvens que passam, ou a alguém que abre sua porta, é a pior das convenções, um estágio completamente superado. Nos meus Contos Morais, só havia música real: quando as personagens ouvem discos ou rádio. Não existe absolutamente nenhuma outra música: nem sequer nos créditos.
Nas minhas emissões da televisão escolar, a música possui antes de tudo uma função documental, assim como um quadro, uma estampa, que permitem situar uma época, conhecê-la. Eu só a permito tocar durante os silêncios do documentário. Podem, é claro, existir algumas exceções à regra. Ocorre-me às vezes de deixar a música tocar sob o texto. Não sou completamente sectário. É evidente que, num filme sobre documentos, é necessário buscar certo prazer, e que para tanto possamos recorrer à música. Mas, sobre um discurso verdadeiramente abstrato, digamos de matemática, aborrecer-me-ia profundamente ouvir música. Efetivamente, identifico a música, reconheço-a e, ao fazê-lo, não escuto mais o comentário; inversamente, se eu dedico toda a minha atenção ao comentário, já não ouço a música. É uma das duas censuras que faria a muitos documentários, a outra relacionada ao fato de que jamais se ouve nenhum ruído, quando atualmente seria tão fácil de registrar um som.
Cahiers - Teus Contos Morais parecem ligados uns aos outros um pouco à maneira das novelas de uma mesma coleção, e mesmo de capítulos de um romance. Por outro lado, dão a impressão de se referir constantemente a esse gênero literário. Todavia, você escreveu que o cinema estava à frente da literatura...
Eric Rohmer - Se o escrevi, equivoquei-me. O que creio é que o cinema não tem por que se preocupar com a literatura. Dito isto, é possível partir de uma obra escrita. Que ela seja antiga ou moderna não tem verdadeiramente nenhuma importância, visto que o essencial é fazer um cinema moderno. Tudo que é bom é necessariamente moderno na medida em que não se parece com o que foi feito anteriormente. Eu prediquei certamente um cinema não-literário, e realizei os Contos Morais que são descaradamente literários, se apenas pela medida em que o comentário desempenha um papel importante. Gosto de mostrar no cinema coisas que parecem contrariar a transcrição cinematográfica, expressar sentimentos que não são filmáveis, porque estão profundamente incrustados na consciência. É uma relação de si mesmo consigo mesmo que eu deliberadamente queria mostrar nos Contos Morais. É por esse motivo que estão na primeira pessoa e que possuem um comentário. Tratam do recuo que alguém pode tomar em relação aos seus gostos, desejos, sentimentos, em relação a si mesmo. A personagem fala de si e se julga; ela é filmada enquanto se julga. Portanto, meus Contos Morais não são literários, são adaptações cinematográficas de obras literárias, e, quando as rodo, tenho a nítida impressão de ser o metteur en scène de uma obra preexistente. Nisto, estaria próximo a Leenhardt. Bazin dizia que Les dernières vacances era um filme de um romance que não havia sido escrito.
Cahiers - Desta forma, seu cinema é ao mesmo tempo introspectivo e objetivo: você mostra alguém que se coloca questões que habitam o fundo de si mesmo...
Eric Rohmer - Eis o porquê. O que me irrita, o que não gosto no cinema moderno, é o fato de se reduzir as personagens a seu comportamento, e de pensar que o cinema não é mais que uma arte do comportamento. Na verdade, devemos mostrar o que está além do comportamento, ainda que sabendo que só se pode mostrar o comportamento. Gosto que o homem seja livre e responsável. Na maior parte dos filmes, é prisioneiro das circunstâncias, da sociedade etc. Não o vemos no exercício de sua liberdade. Liberdade que talvez seja ilusória, mas que existe mesmo desta forma. Eis o que me interessa, eis o que evidentemente deve contrariar o cinema, arte física, materialista, não somente empírica, mas incluso empirista, já que o homem só se define por aquilo que faz. Creio que o gênio do cinema resida na possibilidade de ir-se além deste limite e descobrir outra coisa. Talvez os Contos Morais, que na verdade constituem um único filme, permitiram-me percorrer este caminho, de ir além das aparências.
Cahiers - Algo que coincide com o que Pasolini disse dos grandes momentos do cinema moderno: ultrapassar a limitação materialista do cinema para apresentar um certo caráter onírico da existência.
Eric Rohmer - A palavra “onírico” me interessa particularmente na medida em que meus Contos Morais têm certamente um lado onírico. Todos são sonhos. Os sonhos são construídos pelo cérebro, que é uma máquina eletrônica. Toda ficção é sonho.
Cahiers - Mas como resolver este paradoxo: um cinema que seria a um tempo de comportamento e de sonho?
Eric Rohmer - Não é um paradoxo. Só se pode mostrar o comportamento, e é mostrando-o que se pode ir além. Não posso aceitar a idéia de um cinema que fora outra coisa que não um cinema do comportamento, que não fora objetivo. O estilo subjetivo no cinema me parece uma heresia. Uma heresia inteiramente condenável e pela qual não posso sentir piedade. Murnau ou Hitchcock só recorreram a ela por coquetismo e apenas de passagem ao longo do filme. Resulta-me impossível confundir realidade e imagem mental. Não se pode confundir a torre Eiffel com a imagem que se tem dela. Ou em tal caso temos uma alucinação. Isso é outra coisa, é concebível mostrar alucinações. Mas a torre Eiffel tal como a imaginamos se distingue obrigatoriamente da torre Eiffel tal como a percebemos. É o que notou Alain a propósito do Pantheon, é lógico e evidente. A imagem mental é essencialmente diferente da imagem objetiva. Eu não vejo o que imagino, eu construo. Tudo que pudesse encontrar na imagem mental, haveria posto eu mesmo. Ora, se projeto algo sobre a tela, isso me é dado, tudo procede do objeto, nada de mim. O espectador, portanto, não poderá de nenhuma maneira identificar uma imagem que seria uma imagem mental da heroína a uma imagem objetiva do que ela vê. É absolutamente impossível. Todavia, em alguns filmes, não se sabe se o que é apresentado é objetivo ou subjetivo. Por conseguinte, é necessariamente falso, já que na vida uma tal questão não se põe.
Cahiers - Existe todavia o caso de O Deserto Vermelho, onde a realidade é apresentada de maneira objetiva sem deixar de ser aquilo que a heroína vê.
Eric Rohmer - Tomemos o exemplo de Marienbad. Há planos que supõem serem objetivos e outros que supõem serem subjetivos. Uns supõem serem o mundo visto por uma personagem, outros o mundo visto pelo espectador exterior a esta personagem. Eu, como espectador, coloco tudo no mesmo plano. No presente caso, isso não tem importância alguma, na medida em que se trata de uma fantasia poética que não conta verdadeiramente uma história. Mas se a intenção é fazer-me acreditar nessa subjetividade, então não, já não sigo o jogo. Isso não me acrescenta nada e me parece de todo modo desinteressante de se fazer. Inclusive, é extremamente empobrecedor para o cinema, pois é muito mais interessante suscitar o invisível a partir do visível do que intentar inutilmente visualizar o invisível. É uma mentira ou um truque. Não é moderno, é arcaico. No lugar de um procedimento parecido, melhor seria recorrer à palavra. Se eu penso na torre Eiffel, eu o digo. No meu terceiro conto moral, haverá um sonho. Irei, portanto, mostrar a personagem dormindo e descrever o sonho no comentário. Observem que é possível mostrar um sonho, mas prefiro não fazê-lo. Creio que pode ser muito mais surpreendente partir da personagem enquanto dorme do que introduzir-me artificialmente em seu interior. Seria muito fácil escrever meus Contos Morais num estilo subjetivo, já que são reflexões sobre o passado. Ao final de A Carreira de Suzanne, o narrador muda de idéia sobre Suzanne ao vê-la abraçada a um novo rapaz. Compreende então quais eram as suas relações com a primeira amante e porque ela lhe agradava. Poderia expressar isto através de um salto para trás. Poderia ter sobreposto duas visões eróticas dessa moça, uma em que aparecesse feia, outra em que aparecesse bonita, ao final. Preferi manter-me objetivo. O ponto de vista que se tem sobre ela é sempre o mesmo e a distinção só é expressa pelo comentário. Vocês me dirão que isto é literatura, eu responderei que não. O comentário não é uma coisa impura, seria se não tivesse nenhuma relação com a imagem. Quando profundamente ligado a ela, obtém-se, visto que a palavra e a imagem estão estreitamente unidas pelo fato único do cinema ser falado, um conjunto palavra-imagem onde cada pólo ilumina o outro. O conjunto é puro na medida em que só o cinema é capaz dele. Somente o cinema é capaz de unir a palavra e a representação visível do mundo.
Cahiers - Essa pureza cinematográfica deve ser compreendida em relação às outras artes?
Eric Rohmer - Sim, o cinema deve dirigir-se à busca de uma certa pureza. Se dissessem que em meus filmes recorro à literatura, essa acusação me afetaria. Eu me defenderia. Se a ela recorro é somente para utilizá-la de outra maneira que nas obras literárias.
Cahiers - Mas o cinema, arte visual, sonora, literária, não é impuro por definição?
Eric Rohmer - É um erro conceber a pureza do cinema limitando-a a um de seus aspectos. Pensar que o cinema é puro unicamente porque é imagem é tão estúpido como crê-lo puro unicamente porque é som. A imagem não é mais pura que o som ou que outra coisa, mas, na união de diferentes aspectos, creio que possa se manifestar uma pureza própria do cinema. O que chamaria de impuro é uma certa maneira de concebê-lo que impede o descobrimento de suas próprias possibilidades e que, ao invés de seguir um caminho que só a ele cabe percorrer, avança por caminhos emprestados das outras artes. O que me incomoda acima de tudo é um cinema que se pretende excessivamente plástico, na medida em que essa plástica está inspirada na concepção plástica da pintura. O cinema é uma arte na qual a organização das formas é muito importante, mas é necessário que ela seja feita com os meios próprios ao cinema e não com outros, decalcados da pintura. Do mesmo modo, o cinema é uma arte dramática, mas é preciso evitar que essa dramaturgia se inspire na dramaturgia teatral. É igualmente uma arte literária, mas convém que seus méritos não residam unicamente no roteiro e nos diálogos. O fato de unir estreitamente a palavra à imagem cria um estilo puramente cinematográfico. Contrariamente, fazer com que sejam ditas certas coisas pelos atores, quando bem poderiam ser ditas num comentário, é algo que se torna teatral. Parece-me muito menos cinematográfico botar na boca de alguém algo que informe o espectador sobre determinado ponto do que fazê-lo num comentário. É menos artificial. Um problema análogo surgiu quanto ao emprego de legendas no cinema mudo. Eles também liberaram a imagem de uma função, a de significar. A imagem não é feita para significar, mas para mostrar. Seu papel não é o de dizer que alguém é algo, mas o de mostrar como ele é, o que é infinitamente mais difícil. Para significar, existe um instrumento excelente: a linguagem falada. Empregamo-la. Trata-se de expressar através de imagens o que poderia ser dito em duas palavras, é trabalho perdido.
Cahiers - Mas mostrar também é significar...
Eric Rohmer - Sim, ao mostrar se significa, mas não há por que significar sem mostrar. A significação deve vir por acréscimo. Nosso desígnio é mostrar. A significação deve ser concebida num nível estilístico e não gramatical, ou então num nível metafórico, enfim, num sentido mais amplo. O cinema simbólico é o que há de pior. De vez em quando se vêem filmes atrasadíssimos nos quais a imagem quer desempenhar o papel exato da palavra ou da frase. Isso está completamente fora de moda. Não insistamos mais.
Cahiers - Você havia defendido Bergman. Por conseguinte, não lhe faz a crítica de alguns que lhe tomam por um cineasta “literário”, que só se utiliza de “símbolos”...
Eric Rohmer - Não mudei de opinião. Não retifico de forma alguma minha obra de crítico. Sigo defendendo as pessoas que defendi, e sigo atacando as pessoas que atacava. Portanto, sigo pensando o mesmo que disse sobre Bergman. Gosto muito de seu trabalho. De todo modo, não tenho nenhum apriorismo. Ou seja, em relação ao cinema subjetivo que acabo de rejeitar, não está fora de questão que algum dia alguém muito bom acabe por me fazer admiti-lo.
Cahiers - Portanto, segue completamente fiel à política dos autores?
Eric Rohmer - Sim, não mudei de opinião.
Cahiers - Segue crendo na mise en scène?
Eric Rohmer - É possível dizer, como fez Godard, que a mise en scène não existe. Se for considerado que a mise en scène é a arte do cinema, a operação cinematográfica como tal, neste caso, negar sua existência é o mesmo que negar que o cinema seja uma arte e o cineasta um artista. Agora, se a mise en scène for concebida como uma técnica finalmente muito próxima da técnica teatral, ou daquilo que na profissão se chama de “realização”, a ação de fazer valer, uma arte da execução, então pode-se muito bem pretender que ela não existe. Se, pessoalmente, sou fiel ao termo de mise en scène, é que não entendo por ele uma realização, mas uma concepção: a arte de conceber um filme. Essa concepção é posteriormente realizada pela equipe colocada à nossa disposição e que é composta por um operador, um editor etc. Poder-se-ia efetuar algo sem o montador e o operador, mas também se pode confiar neles sem deixar por causa disso de ser um metteur en scène. É por esse motivo que negar a mise en scène tal como, bem entendido, ela é concebida nos Cahiers, seria o mesmo que negar o cinema. Eu não creio que o melhor diálogo do mundo seja suficiente para se fazer um bom filme. E, todavia, a mise en scène pode estar inclusa nele de modo que o trabalho no set se torne inútil. Isso não quer dizer que a mise en scène não exista; isso quer dizer, no caso, que o roteiro já era mise en scène. E se é verdadeiro que se pode deixar de assistir à rodagem das tomadas, também é certo dizer igualmente que a mise en scène pode ser feita na montagem.
Cahiers - Nos seus artigos, especialmente os mais antigos, seu posicionamento não era apenas estético, mas também político.
Eric Rohmer - Sim. E não menos conservadora. Hoje, lamento. A política é inútil. Ela constituiria um desserviço à minha causa. Mas a situação não era a mesma em 1950. Releiam L’Écran français: o cinema americano encontrava-se condenado em bloco. Para denunciar a impostura da esquerda, era necessário pender a balança à direita, corrigir um excesso mediante outro excesso. Mas, há quase dez anos, a crítica de cinema na França lançou a política às urtigas. Isso fez com que ela seja a melhor do mundo.
Dito isto, nada impede que um crítico ou um cineasta tenham suas próprias convicções. Atualmente, sou bastante indiferente à política - tomada ao menos em seu sentido estrito -, mas eu não mudei. Eu não sei se sou de direita, mas o que é certo, em todo caso, é que não sou de esquerda. Por que eu haveria de ser de esquerda? Por qual motivo? O que me obriga a isso? Sou livre, ao que me parece! Todavia, as pessoas não o são. Hoje, deve-se primeiro fazer seu ato de fé na esquerda, após o qual tudo é permitido.
A esquerda não tem, que eu saiba, o monopólio da verdade e da justiça. Eu também sou - quem não o é? - partidário da paz, da liberdade, da extinção da pobreza, do respeito às minorias. Mas não chamo a isso ser de esquerda. Ser de esquerda é aprovar a política de alguns homens, partidos, ou verdadeiros regimes que assim se denominam, e que não hesitam em praticar, quando lhes convêm, a ditadura, a mentira, a violência, o favoritismo, o obscurantismo, o terrorismo, o militarismo, o belicismo, o racismo, o colonialismo, o genocídio. Por outro lado, equivoco-me em seguir falando disto. Todo mundo sabe que essas velhas categorias de direita e esquerda já não significam nada hoje em dia - se é que alguma vez tenham significado algo -, ao menos na França entre os “intelectuais”.
Nada nos determina politicamente de maneira profunda, nem nossa origem, nem nossa fortuna, nem nossas necessidades, nem nossa profissão, nem sequer nossas crenças religiosas ou filosóficas. O que às vezes nos faz passar de um extremo ao outro é a casualidade, uma leitura, uma frase, uma mulher, um amigo, o amor pela novidade ou o senso da oportunidade. Eu os vi mudar de idéias mais freqüentemente que de sobretudo. Era o único luxo deles. Um luxo que nada custa. Enquanto que um sobretudo...
E depois por que aquele que escreve, aquele que pinta ou aquele que filma teria opiniões mais justas sobre o governo da sociedade do que aqueles que estão encarregados de cumprir suas necessidades, e não, como nós, os seus prazeres? Cada vez que um artista se mistura com a política, em vez de aportar o que seria justo esperar dele, a saber, uma visão mais serena, mais vasta, mais conciliadora das coisas, ele se encerra na posição mais limitada, mais tacanha, mais excessiva. Incita o encarceramento, o massacre, a destruição, ignora o perdão, a tolerância, o respeito pelo adversário. É normal, como dizia Platão: aquele que nasce para exaltar as paixões dos homens não pode ser mais que um medíocre moderador.
Cahiers - Você acha, então, que o cineasta deve mostrar-se indiferente ao seu tempo?
Eric Rohmer - Não. Em absoluto. Muito pelo contrário. Eu diria inclusive que pode e que deve se engajar, mas não politicamente no sentido estrito e tradicional do termo. O que a arte oferece aos homens? O prazer. É à organização deste prazer que o artista deveria se consagrar. E como nós entramos, diz-se, na era do ócio, talvez seja possível achar aí um papel importante, apaixonante e completamente à sua altura.
Mas, aqui novamente, eu não lhe darei carta branca. Nada de mais iconoclasta e ao mesmo tempo pior profeta que um criador. Permitam-me abrir um pequeno parêntese que não está demasiado distante do que digo, e que provará que o amor pelo antigo e o amor pelo novo não são - longe disso - incompatíveis. O sentido do passado, o gosto pela história, são características essenciais da nossa época. Há algum tempo disse em Le Celluloïd et le marbre[1]. Não só o passado alimenta parte dos ócios do homem, mas também seu trabalho: a indústria do livro, do disco, da rádio, da televisão (e portanto as do papel, da matéria plástica, da eletrônica), mas também a do automóvel e do avião. Se não, por que se toma o carro ou o avião? Para visitar os Castelos do Vale do Loire ou as Pirâmides...
Gosto de Paris e queria criar algo para sua salvaguarda. Mas o fato de Jess Hahn, em O Signo do Leão, caminhar pelas margens do Sena certamente não impede de substitui-las por uma rodovia, que não somente desfigurará a margem direita como não servirá estritamente para nada, uma vez que o trajeto mais curto de Boulogne a Vincennes não é o cais - que faz uma curva - mas o anel! Em Métamorphoses du paysage industrielle, em Nadja, mostro coisas que a meus olhos devem ser salvas. Só que, é claro, não possuo uma audiência, mas outros podem fazer como eu e a união faz a força. Uma coisa me chocou em Le Corbusier. Lamentava não ter construído no coração das cidades. Estranha idéia! Godard deplora que seus filmes não sejam projetados na França e que não se tire Molière do repertório? Há um lugar para tudo, e espaço é o que menos falta. Quanto mais se respeita o passado, mais se abre o caminho para o moderno. O extremo conservadorismo e o extremo progressismo são irmãos. Se as casas de Paris forem demolidas de pouco em pouco, se as ruas forem gradualmente aplainadas, nunca será construído nada verdadeiramente novo. Ao contrário, se fosse absolutamente proibido destruir o que quer que seja, se colocassem um freio na hipertrofia do subúrbio, talvez chegasse a hora, como dizia Alphonse Allais, de construir as cidades no campo. Parece-me muito mais sensato, normal, racional. Vocês não acham?
Quero dizer que se vêem hoje tantas coisas absurdas que a idéia mais louca será menos louca que tudo o que se diz, se faz ou se projeta neste momento. E o que há de mais louco, mais custoso, mais difícil de se fazer? Aplastar aglomerações concebidas à escala de pedestres e de uma população restrita pelo gás do escapamento e o cimento dos grandes conjuntos, ou então fazer surgir ex nihilo, à maneira dos romanos e dos pioneiros do Oeste, uma cidade nova (não qualquer novo Sarcelles nem sequer uma Brasília, mas uma cidade viva, imensa, industrial, alegre, consagrada à ciência, aos jogos, aos esportes, às festas, aos congressos, ao ócio), fazê-la surgir em alguma parte do deserto francês que não seja, no entanto, uma Tebaida, sobre a costa de las Landas, por exemplo, e que nos dará esta segunda metrópole (Los Angeles, Milão, Barcelona) que tanta falta nos faz.
Tranqüilizem-se, não tenho intenção de ocupar o posto de comissário geral do Planejamento, mas por que qualquer francês não deveria ter suas idéias, mesmo que idiotas, sobre o planejamento territorial quando as tem sobre a reforma eleitoral ou o conflito indo-paquistanês? Curiosamente, são as pessoas que exercem as profissões artísticas as que se mostram mais indiferentes a este problema, enquanto se lançam a assinar petições e apoiar partidos políticos. Interessam-se pelo social - que não é realmente de sua competência - e não dão a mínima, aparentemente, ao cenário de sua vida. Não percebem que a existência do cenário é ligada a coisas tão claramente vitais como o ar que respiramos, a terra que nos alimenta, a água que bebemos. De que nos servirá sermos iguais e livres se a água tornou-se intragável, a terra estéril, o ar envenenado? É ótimo que cada trabalhador possa passar, caso queira, um mês a cada ano a bordo do mar. Mas pelo menos que o mar seja mar e não betume.
Não sou pessimista. Quero dizer apenas que estes problemas, que certamente encontrarão uma solução, são muito mais atuais e importantes que os da política clássica. Quero dizer também que oferecem ao cineasta um campo muito mais vasto e bem mais ao seu alcance. Um filme político, especialmente na França, só pode ser uma exceção. Nada me irrita mais do que ver alguns pagarem de maneira grotesca seu tributo à política por meio de alguma alusão incongruente e forçada à atualidade. O cenário da vida, pelo contrário, nenhuma arte pode mostrá-lo melhor que o cinema. O único problema - problema maiúsculo - é que na França não se encontra um cenário verdadeiramente moderno, e nesta matéria só podemos invejar os americanos e os italianos. Mas há, além dos filmes de ficção, um ramo muito importante - embora se fale pouco dele - e que espera apenas o nosso “engajamento”. É o filme de informação, financiado pelo Estado ou pelas empresas e que trata principalmente de todos esses problemas do desenvolvimento econômico, do acondicionamento, da construção, no qual conviria ao cineasta intervir de forma mais ativa, mais séria, mais apaixonada que o habitual. Eu sei que é um trabalho encomendado e que não se é livre, mas enfim, tem-se visto filmes anti-militaristas encomendados pelo Ministério do Exército. O que me surpreende e me deixa triste é que as pessoas que tratam esse tipo de assunto parecem se desinteressar pelos méritos da questão, colocando-se sem pudor ao serviço da tecnocracia e dos slogans mais estúpidos. Ao invés de se reconsiderar a coisa que é dada a tratar, de aportar sobre ela um olhar novo, não enxergam nisso mais que uma oportunidade para um exercício de estilo. Não será pelos seus travellings ou pelos seus enquadramentos esmerados que merecerão o nome de artistas: é pela vontade de tratar o tema e de sobrepor o ponto de vista da arte ao da técnica.
Há uma espécie de renúncia do cineasta frente à evolução do mundo moderno, que é muito mais censurável que o desinteresse pela política. Todos tentam tirar uma vantagem do jogo e ninguém parece minimamente afetado pela infinita platitude, infinita vulgaridade - eu sei, há exceções - da imprensa, do rádio, da televisão, do cinema, que lhe serve, é certo, de sustentação. É muito bom às vezes pertencer ao seu tempo. Mas também é necessário saber ir contra a corrente. A arte não é um reflexo do seu tempo: ela o precede. Não deve seguir os gostos do público, mas ultrapassá-los. Deve permanecer surda às estatísticas e aos gráficos. Deve, sobretudo, afrontar como a uma praga a publicidade, mesmo a mais inteligente. A publicidade é o vírus número um do cinema. Ela falseia tudo, deteriora tudo, inclusive o prazer do espectador, o juízo dos críticos. É preciso negar-se a fazer parte do seu jogo. Dir-se-á que é impossível ou que a única saída é rodar filmes de amador. Bom, é o que faço, ou quase.
Nota:
[1] Referência a um famoso e polêmico artigo de Eric Rohmer, publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma [n.d.t.].
(Declarações recolhidas ao magnetofone por Jean-Claude Biette, Jacques Bontemps e Jean-Louis Comolli.)
(Cahiers du Cinéma nº 172, novembro 1965, pp. 32-43+56-59. Traduzido por Felipe Medeiros)
Traduzido e republicado pela revista Foco (http://focorevistadecinema.
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