Por João Bénard da Costa
“Menina e moça me levaram de casa de minha mãe. Qual fosse a causa daquela minha levada, era pequena não na soube então”. Some Came Running
faz-me sempre lembrar o princípio da novela de Bernardim Ribeiro.
Quando Shirley MacLaine acorda no autocarro onde até aí não a víramos (a
câmera só nos mostra Sinatra a dormir), e depois de lermos o anúncio da
companhia de transportes (“and leave the driving to us”), ou, depois no primeiro diálogo dela com Sinatra (“You’re a nice kid. I like you. Take care.”)
sinto essa sensação do “levada”, um dia, menina e moça, “de casa de
minha mãe” (sempre gostei mais dessa variante do texto do que da usual
que diz “de casa dos meus pais”) por causas que fica sem saber. Há, no
filme de Minnelli, o mesmo duplo acentuar da juventude (“menina e
moça”), a mesma saudade por um quente mundo perdido, o mesmo
desconhecimento por razões de perpétua infância, a mesma viagem, o mesmo
lento sublinhar do tempo, do “então”. E, mais importante, ainda, a
equivalência, nas cores, no décor, e no rosto de Shirley, das labiais de Bernardim, com o corte final (e dental) do “então”, do tempo.
“Aquela
cujo amor nos faz tanta pena” (para citar, variando um pouco, outro
poeta português) é o centro deste filme prodigioso e o mais bonito
personagem que o cinema alguma vez inventou. Menina e moça perdida na
vida (no sentido, também, em que se diz “mulher perdida”, “mulher da
vida”, tão belas expressões) sempre com coisas demais nas mãos, no colo,
nos cabelos, nos vestidos (o coelhinho - mala de mão, a almofada, as
flores artificiais, os penduricalhos), sempre atrapalhada e atrapalhante
sempre sem perceber onde está, atravessa o filme e a vida, “leaving the drive to others”
até a assombrosa seqüência em que Sinatra lhe lê o livro e tanto se
irrita com o que julga ser a sua estupidez ou a sua mentira. Há aquele travelling e depois MacLaine a dizer “You’ve no right to talk to me like that. You gotta remember. I’m human. I’ve feelings”. E, depois, aquela espantosa frase que põe tudo o que é conhecimento e compreensão a estremecer:
“Não percebi nada do livro, mas gostei tanto. Também não percebo nada de ti e gosto tanto”.
Há uma “pausa côncava de assombro”, a câmera fixa-se no rosto de
Sinatra e tudo o que o filme e a vida até aí acumulara nele (e, uma vez
mais, o tempo, o décor, a cidade, os néons, a família, a loura
professora) a sair cá para fora no inesperado pedido de casamento.
Segue-se a incredibilidade de Shirley MacLaine (“não deves brincar com
essas coisas”) até ao abraço, incrível de entrega e doação. Todos os
registros pareciam ter ido até onde era possível, em cor e em
intensidade. As mudanças de tom podiam ser um corte. Mas é na mesma prise de vue que Sinatra lhe pede “Do you clean that place for me?” e o que a frase pode ter de horrível ou frustrante, é salvo pelo sorriso de Shirley, a expressão e aquele “Oh! Could I?” como se se acabasse de lhe dar o mais belo dos presentes. Há o degrau e a coda volta ao início: “You gotta remember. I’m human”.
Esse
é um dos mais geniais momentos da grande arte de Minnelli, pelo modo
como os movimentos de câmera (ou a ausência deles) se conjugam com o
diálogo e os silêncios e pelo modo como Sinatra, num instante, percebe -
ele também - que não percebera nada. Toda a sua errância pela cidade
natal (essa pequena cidade onde tudo se sabe), pela bem instalada
família do irmão, pela história de amor da sobrinha, pela decepção da
sobrinha quando viu o pai com a secretária no carro, pela professora e
pela família da professora, toda essa errância de travellings, que simultaneamente pegam e arrancam um personagem a um décor,
pára aí, no relâmpago de que só se conhece o que se ama ou na sua
contraposição entre a fé de Shirley MacLaine (o amor que move montanhas)
e o frio corte da professora: “I don’t like your life. I don’t like what you think. I don’t like the people you like. Stay away from me”.
A única coisa que não foi capaz de dizer foi que não gostava dele (e
mesmo que o dissesse não a acreditávamos depois da minnellianíssima
seqüência em que a víramos, entre a luz da tarde e o escuro da noite,
ser despenteada por Sinatra, com os ganchos do cabelo a cair no chão).
Mas há quem proceda por silogismos (Martha Hyer) e assim destrua tudo e
se destrua a si próprio e há quem esteja para além de qualquer lógica.
Os adultos. As crianças. A professora. A pega. A senhora. A menina e
moça.
E, a partir daí, este filme se articula e reparamos como todos os outros são parte de um décor
(Kennedy, mulher e filha, os French, a secretária, cada um com momentos
possíveis de desarrumação que os salvariam mas de que se não apercebem)
e só emergem dele as “notas destoantes”: para além de MacLaine, Dean
Martin com o seu chapéu de cowboy e o silenciosíssimo olhar com
que vai atravessando o filme e amando Sinatra, e o assassino, cujo amor
por Shirley é da mesma ordem do irracional que o de MacLaine por
Sinatra. Uma viagem comum, uns instantes (como para Sinatra e MacLaine)
bastaram para que ele a considerasse a sua mulher (e aí é MacLaine que,
sem amor, não pode perceber) e viesse a matar por causa dela.
Houve
e há quem considere um tanto quanto absurda essa irrupção final do
personagem na antológica seqüência da festa, do carrossel e de todas as
luzes. Não o é, porque se trata da mesma ordem do amor e daí que tudo
rodopie em torno dele, como as centenas de luzinhas da “grande roda” e a
variação tonal mais delirante a envolverem o personagem.
Resta
o plano final com o rio e Sinatra a saber que “tem que voltar atrás
para poder recomeçar tudo”. No outro canto do cinemascope, Dean Martin. “Doing like Dean Martin does in Some
Came Running” disse um dia Minnelli. Não o olhar exterior, mas o olhar
que permite, através da beleza, “a união dos contrários”: dos “conflitos desesperados”, dos “fulgores efêmeros” (Truchaud). Do fugaz (os dois planos do coelho) ao durável (o rio).
E
assim chegamos à dimensão do tempo neste filme onírico. Não faltam
indicações precisas sobre anos e dias: os 16 anos em que Frank Sinatra
esteve ausente da terra, o pós-guerra da Coréia, o centenário da
fundação da cidade, os dois dias e noites iniciais, as horas do running no final. Mas tudo se passa e se resolve em instantes:
a tarde-noite em casa de Miss French, o fabuloso confronto MacLaine -
Hyer na escola (as teorias que a professora explicou aos alunos encarnados no que Shirley MacLaine sabe, sem que precisem de lho explicar, o “thank you, so awfully much”), a já falada seqüência do pedido de casamento, o brevíssimo plano do casamento “a despachar” (“I’ll make you a good wife, Dave, you never got sorrow” - “I believe”
e tudo fica já tinto do encarnado do sangue final) e a incrível
aceleração da seqüência da feira (com Dean Martin em montagem paralela,
quando já não há tempo para nada).
E
a sensação que temos quando relembramos o filme é que houve tempo para
tudo (ou tempo que Frank Sinatra perdeu) e, como se diria no Kiss Me Deadly, “suddenly it’s too late”.
Quando se começa a pedir ao tempo que se suspenda, tudo se abate
vertiginosamente, como se tivesse havido anos e agora houvesse apenas
segundos. É um dos mais assombrosos efeitos de raccourci já
conseguidos, que confere a todo o filme maior dimensão onírica, esse
onirismo que é o traço de ligação dos filmes de Minnelli, da comédia
musical, à comédia ou ao drama.
Mas
há uma outra dimensão de tempo de que interessa, hoje, falar. A
meteórica passagem de Shirley MacLaine, ou de Ginny para sermos mais
exatos, por aquela cidade e pela vida de Sinatra é também a travessia de
um personagem típico da década seguinte pelos personagens e por um décor típico dos fifties. Ao herói vencido da Coréia, ao jogador cowboy, ao instalado banqueiro, à jeune institutrice rangée,
contrapõem-se visões fugazes doutra escala de valores que subverte
tudo: Ginny, Dawn, o assassino. Pelo poder da imaginação (ou pelo poder à
imaginação), pela revolta em causa e conseqüência, pela violência
súbita, estes são os personagens anunciadores da década de 60, colocado
em Some Came Running “a cavalo” entre duas épocas, duas morais, duas ordens do real e do imaginário.
Disponível em http://focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-minnelli.htm
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