(Mulheres Diabólicas, 1995)
Por Mehdi Bellanal
(trecho retirado do texto "Sobre três filmes tardios de Claude Chabrol", na íntegra no site citado ao final)
– Eu não entendo os últimos filmes de Chabrol.
– Normal, Chabrol nunca foi tão genialmente sintético, além do que não sabemos mais ver um filme como um todo... Não sabemos mais nem o que isto quer dizer. Ainda sabíamos, talvez, por volta de maio de 68, mas desde que o fetichismo devastou tudo no seu caminho, não há mais do que pedaços de cinema. E no mais, Chabrol se ocupou justamente do fetichismo, dupla violação à época!
– Tome-me por um produto de minha época!
– Todos somos, mais ou menos...
– Você me tranqüiliza. Admita, ao menos, que eles são horríveis, esses filmes, os Bellamy, A Dama de Honra, A Flor do Mal, Uma Garota Dividida em Dois.
– Não acho, mas isso não nos levará muito longe. Há um Chabrol que todo mundo ama, que até mesmo o salvou aos olhos da crítica, é Mulheres Diabólicas, pelo menos deste você gosta?
– Eu odeio!
– Perdão?
– Eu nunca entendi o encantamento geral por esta merda!
– Você está delirando!
– Supõe-se que ele fala da luta de classes? Da burguesia e do proletariado?
– Sim, sim. Ainda que Chabrol tenha declarado que este foi “o último filme marxista da história do cinema.”
– Mas que nada! Penso que é uma repugnância mostrar os pobres daquela forma.
– De que forma?
– Estritamente falando, como bárbaros.
– Estritamente falando?
– Primeiramente como invejosos, como amargurados e, finalmente, como assassinos pura e simplesmente. Veja bem: no filme, os burgueses são todos extremamente delicados, cheios de bons modos, eles perdoam até mesmo os golpes baixos da carteira e, como recompensa, são massacrados. Como se Chabrol quisesse dizer a esta burguesia que transborda de boas intenções: não se misturem com essa gentalha e, sobretudo, não os deixem entrar em suas casas!
– Mas esses proletários não são quaisquer proletários...
– São sim, porque trata-se exatamente do proletariado e da burguesia tomados num sentido geral dos termos. O analfabetismo da empregada versus a alta cultura da família burguesa, o apartamento modesto da servente versus o castelo da família etc. Nós entendemos que Chabrol quis falar da oposição de classes entre os proletários e os burgueses em geral; aliás, você mesmo reconheceu isso!
– Sim, mas Chabrol passa um bom tempo a descrever essas duas proletárias.
– E daí? Elas terminam por matar da mesma forma. E mais, Chabrol tem a frieza de em seguida condená-las, matando uma em um acidente de carro e entregando a outra aos policiais! Já entendemos muito bem que ele não gosta delas, a menos que ele esteja senil a ponto de dar razão às assassinas, vitimizando-as ao extremo, ao passo que tudo indica que elas são completamente vis e que a razão estava do lado dos privilegiados!
– Você acha que os burgueses desse filme são razoáveis?
– Sim.
– E no entanto, eles não viram o golpe chegando.
– Eles não poderiam imaginar algo parecido, visto que eles sempre foram bem comportados com a empregada!
– Então eles estão quites?
– De quê?
– De fazer com que ela dependesse deles?
– Não se mata pessoas pelo fato delas nos sustentarem!
– Porém isso já aconteceu, quando os escravos assassinavam os seus donos!
– Sim, mas esses não são os episódios mais gloriosos da história.
– Glorioso ou vergonhoso, isso existiu, sim ou não?
– Sim, mas narrando isso, o que é que ele, Chabrol, procura dizer?
– O que você gostaria que ele dissesse?
– Que ele não fizesse parecer, de qualquer modo, os pobres como bárbaros!
– Perdoe-me por me repetir, mas não se trata de quaisquer pobres!
– Mas o que você quer dizer com isso afinal?
– Você gostaria que Chabrol “salvasse” essas duas garotas? Que ele as tornasse dóceis, respeitosas, isto é, de acordo com as prescrições burguesas? Embora elas sejam, desde o início, criminosas? Porque eu lhe relembro que elas já haviam matado antes do começo da história, certamente você se lembra disso...
– Precisamente! Por que ele as retrata como desajustadas?
– E por que não fazê-lo? É por causa disso que ele não trata de todos os proletários. Imagino que você saiba que nem todos os proletários são assassinos. Mas neste caso, são justamente duas assassinas.
– Concordo, e...?
– E pela força do ódio e da frustração, elas somam um novo crime aos seus crimes passados.
– Elas matam sem motivo.
– Pode ser que elas não tenham uma razão definida - elas não são revolucionárias - mas percebe-se que elas não suportavam mais sentirem-se inferiores sob todos os aspectos, incluindo o moral, aos burgueses. Então, depois de deixar cair a barreira moral que proibia a morte, elas encontram em si mesmas a força para reverter a situação e, de dominadas que são, passam a ser dominantes ao matar seus patrões.
– Sem motivo?
– Não é porque as razões aparentes são insuficientes que não há uma lógica subjacente no ato. Tudo se passa aqui exatamente como nos filmes de Buñuel.
– Mas por que elas chegam a matar essas pessoas que não lhes fizeram nada?
– Essas pessoas não lhes fizeram nada, é verdade, mas são. Eles são os que têm tudo. Elas, elas só têm mágoas. Tudo o que lhes resta é a força destrutiva que autoriza a sua falta de escrúpulos.
– Chabrol lhes dá razão, então?
– Não, ele apenas indica que há algo na desigualdade de classes que alimenta a possibilidade do crime, que o crime está de alguma forma inscrito na desigualdade de classes. E ele encena uma situação em que as condições de um crime são reunidas. Ao reprovar Chabrol por filmar as duas garotas como “gentalha”, você parece reivindicar que tranqüilizemos a burguesia sob a conta dos dominados. Chabrol se abstém de tranqüilizar ou de incomodar quem quer que seja, é por isso que seu filme não é aquilo que você diz que é.
– E então por que a crítica gostou tanto dele?
– De um lado, porque ela adora tudo. De outro, porque ela gosta de ver a burguesia entrar pelo cano, ao menos nos filmes.
– Mas Chabrol é um burguês, não me venha dizer o contrário!
– Não direi o contrário, responderei simplesmente com a frase de Friedrich Coupat: “A plebe pode ser encontrada em todas as classes.”
– “Simplesmente”! Mas como você faz o papel de esnobe...
– Fazemos o que podemos.
(Traduzido por Tiago Saldanha)
Retirado de http://focorevistadecinema.com.br/FOCO4/chabrolforever.htm
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