domingo, 16 de dezembro de 2018

Pickpocket, Robert Bresson,1959


Por João Bénard da Costa 

Com um saber de experiências feito, posso garantir que a segunda metade dos anos 70 (mais precisamente, de 1976 a 1980) foi o período dourado da cinefilia portuguesa. Depois da ditadura, depois do gonçalvismo, uma significativa fatia de espectadores achou-se no direito - talvez com o dever - de se pôr em dia com tudo quanto, durante uma vida inteira, tinha ouvido falar, mas não tinha visto.

Só isso explica fenômenos tão insólitos como o aparatoso êxito de algumas retrospectivas ou reposições que, antes ou depois, não levariam às salas mais do que uns felizes poucos. De todos os casos que conheço, o mais singular e o mais surpreendente foi o de Robert Bresson. A retrospectiva integral de sua obra, levada a cabo pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1978 (com as exceções de L’argent que ainda não existia e de Quatre nuits d’un rêveur de que se não conseguiu cópia), esgotou as lotações do Grande Auditório (1200 lugares) durante as 11 sessões dela.

Que tem isto de extraordinário, perguntará o leitor menos familiriarizado com Bresson? Simplesmente o fato de em nenhum país do mundo, que eu conheça, Bresson ter reunido alguma vez uma tal assistência em simultâneo para um só dos seus filmes, quanto mais para 11. Ainda hoje, deixo os franceses boquiabertos com tal brilharete. Tanto mais que, no caso em questão, nenhuma culpa é de assacar à “longa noite de 48 anos” ou à censura dela. Perante Bresson, os censores fizeram o que 99 por cento dos portugueses fizeram também: adormeceram ao fim de dez minutos e deixaram passar no fim, se houvesse quem quisesse e quem gostasse, já que há gostos para tudo.

As estatísticas não mentem: das 13 longas-metragens assinadas por Robert Bresson entre 1944 e 1983 (retenham o número 13 e o vagar da obra, que a um e outro já volto) apenas seis se estrearam comercialmente em Portugal e todas antes do 25 de Abril, entre 1959 e 1974[1]. Nem a penúria desses anos nem o nihil obstat da censura convenceram os distribuidores a pegar em mais quatro que datam dessa época. Quanto aos três filmes que Bresson assinou depois de 1974 (Lancelot du LacLe diable probablement e L’argent), nenhum foi comprado por Portugal, que não vê Bresson numa sala (refiro-me às “normais”) há 15 anos, desde a estréia de Au hasard Balthazar... “prima della rivoluzione”. Parafraseando o título que por cá deram a esse filme, tem sido uma “peregrinação exemplar”.

Mas não estamos “orgulhosamente sós”. Se a situação não foi tão drástica noutros países, os desastres de Bresson sucederam-se e só nos finais dos anos 60, inícios dos anos 70 (quando adaptou, a cores, Dostoievski em Une femme douce e Quatre nuits d’un rêveur), conheceram uma relativa pausa. Mais do que Dreyer, mais do que Oliveira - para me limitar aos muito, muito grandes -, Bresson prova o “analfabetismo primário” do público-que-tem-sempre-razão. Não sabe ver e nem sequer tem muita culpa porque ninguém o ensinou. Os professores que lhe deram sofrem da mesma ou outras miopias. Eram e são igualmente analfabetos, com a peculiaridade de se exprimirem num latim bárbaro, incompreensível tanto para os latinos como para os bárbaros. Por isso, os filmes ficaram à espera de quem os saiba ver, ou vistos, apenas, pelos que só precisaram de ver para crer.

Bresson nunca facilitou a tarefa. Este grande senhor, hoje com 87 anos[2] (nasceu em 1901 e não em 1907 como dizem quase todas as fontes), sempre entendeu que “o cinema não é um espetáculo, é uma escrita” e escreveu nos seus 13 filmes uma complicada história teológica, em torno de questões tão pouco populares como a Predestinação, o Acaso ou a Graça, na dependência de um catolicismo austero, a que por vezes se tem chamado jansenista.

Não usa a palavra cinema. Prefere o termo “cinematógrafo” para sublinhar a diferença “entre os filmes correntes e a arte cinematográfica” e diz que “o cinematógrafo é a aplicação em imagens insignificantes (não significantes)”.

Atores? É coisa que, para ele, não há. Se nos primeiros filmes (Les anges du péché, de 43; Les dames du Bois de Boulogne, de 45; Journal d’un curé de campagne, de 51) ainda transigiu e ainda foi escolher à Comédie atores (e atores de teatro) para os seus personagens, a partir do opus 4 (Un condamné à mort s’est échappé, de 1956) recorreu exclusivamente a homens e mulheres que não fizessem qualquer idéia do que fosse representar. Chamou-lhes “modelos” em vez de atores, e quis que modelos fossem em vez de parecerem atores. “Não se trata de representar com ‘simplicidade’ ou de representar com ‘intensidade’, mas de não representar de todo.” E exigiu-lhes que falassem como se falassem sozinhos, sem expressão. “Monólogos em vez de diálogos.”

Por isso, nunca usou duas vezes o mesmo modelo. Por isso, não perdoou àqueles dos seus modelos que, traindo-o, iniciaram com ele uma carreira de ator (o caso mais célebre é o de Dominique Sanda, seu modelo em Une femme douce). Por isso, os seus modelos parecem todos modelar-se uns aos outros na mesma inexpressividade. Com a pintura aprendeu que não havia imagens belas mas imagens necessárias. E que, como dizia Cézanne, “à chaque touche, je risque ma vie”.

Nunca se importou nada que o achassem ou chamassem reacionário. Nunca se importou nada que cada um dos seus filmes demorasse anos a ser feito. Levou uma série de produtores à falência, tão mais exigente e gastador quanto menos se viam os seus filmes. Obcecado com os números e as sortes (ou os azares) construiu em 13 filmes um universo que não se parece com nenhum outro, e que ninguém nunca conseguiu imitar. Dissertando sobre ele, Nuno Bragança escreveu: “Cristão que também sou, sinto a que ponto essa visão (a visão de Bresson) está, para muito do que marca o tempo em que vivemos, como sopa em torno de uma mosca. Mas opto pela sopa.” Eu também.

E opto, particularmente, entre todos os seus filmes (nenhum a que não possa chamar “filme da minha vida”) por Pickpocket (1959) que por aqui chamaram, com alguma imaginação, O Carteirista.

Já se disse que era “o filme mais branco da história do cinema” (só talvez Luz de Inverno de Bergman possa competir), pois é a mais ousada tentativa do seu autor para desmontar o real, através das suas aparências, ou, se se preferir, as aparências através da sua realidade.

Filme sobre um pickpocket, tão misteriosamente triunfador nos seus roubos iniciais, como misteriosamente vencido no seu roubo final, tanto se pode falar dele em termos de “tratado de moral” (relações entre o roubo e a homossexualidade, relações entre o crime e a lei), como em termos de “tratado metafísico” (mais uma vez, a perene contradição dos filmes de Bresson, entre o “primado da Graça” e o “primado das Obras”) ou em termos estritamente “materiais” (é um filme sobre mãos, olhares e gestos, sem outra metafísica que não essa).

ausência de expressão dos personagens, das vozes dos personagens, da fragmentação dos personagens, tanto é uma expressão de ausência como a expressão de uma presença. Quem está ausente ou presente (como em todos os filmes de Bresson) é quem não pode ser nomeado e, portanto, não pode ter imagem. Quando muito, a probabilidade dela. Dieu, probablement como, na sua penúltima obra, Bresson disse Le diable probablementPickpocket é o filme de Bresson que mais joga com esse vazio, com esses vazios. Ou, melhor dito, em que esses vazios podem ser pressentidos como o essencial, apenas porque o essencial se esgota na pura materialidade.

Nunca, talvez, como nesta obra, Bresson tenha ido tão longe na defesa da sua idéia de que “o cinematógrafo é a arte de não mostrar nada”. E esta afirmação só pode parecer paradoxal a quem não tenha sido capaz de ver o que é esse nada que Pickpocket mostra.

Ao som da música de Lully, Bresson ilumina o caminho de um homem que sabe, paulinianamente, que a lei mata e o espírito vivifica. Um homem chamado Michel que a Graça acompanha, na sua trajetória entre a liberdade e a prisão. Livre, é prisioneiro do seu corpo e do seu espírito. Preso, encontra a alma e o misteriosíssimo sentido da frase que diz depois da morte da mãe: “Acreditei em Deus durante três minutos.”

Bresson comentou que poucas pessoas poderão dizer que acreditaram em Deus durante tanto tempo. Também poucas pessoas terão compreendido, como Michel, a razão da força irracional de um destino humano. Por isso, à única mulher que o amou e que, para o amar, também teve de abandonar toda a ordem e toda a racionalidade, Michel dirá, no final, entre as grades, com o inconfundível acento neutro dos personagens bressonianos, a seguinte frase: “O Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre.” E o Magnificat de Lully invade a banda sonora, imobilizando esse encontro e essa frase na sombra da iluminação total.

Notas:

[1] Lancelot du Lac, antepenúltimo filme de Bresson, foi estreado por Paulo Branco no Ávila, a 29 de Maio de 1998.

[2] Robert Bresson morreu em 1999, com 98 anos.

Disponível em: http://focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-pickpocket.htm


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