quarta-feira, 3 de julho de 2019

Epifanias de Bresson: trechos

Por Evaldo Mocarzel



[...] Bresson enveredou por uma busca minimalista que poderia ser definida como “criação por subtração”, se despojando de todo tipo de excesso para tentar vislumbrar o “real” no inesperado e na essência epifânica da imanência de todas as coisas, sobretudo nos atos falhos dos não-atores, ou melhor, “modelos”, que passou a dirigir em seus sets de filmagem, como um pintor. [...] Bresson rejeitou o seu primeiro longametragem, “Os Anjos do Pecado”, com diálogos de Jean Giraudoux, de 1943. O primeiro motivo mais explícito é a interpretação teatral das atrizes, algumas da Comédie Française. Quando abandonou o espetáculo e defendeu a ideia de que a arte cinematográfica é uma escritura e que deveria ser chamada de “cinematógrafo”, o cineasta estava principalmente tentando se afastar do que ele chamava de “teatro filmado”, ou melhor, “cinema”. Nesse primeiro longa, há ainda algo que também passou a incomodar profundamente o mestre francês: o cheiro de madeira dos cenários. A locação se tornou uma das primeiras obsessões do estilo rigoroso de Bresson. Embora com uma certa afetação teatral e com muitas sequências rodadas em estúdio, “Os Anjos do Pecado” é uma obra que é puro Bresson. Temas como a morte como única possibilidade de transcendência, como única chance de vislumbrar um aceno de Deus, além do paradoxo da prisão como libertação, tudo isso está lá pulsando e revelando a face mais sincera desse grande artista sempre tão fiel a si mesmo, tentando encontrar a “lucidez” das tragédias gregas no desalento e no pessimismo suicida de seus personagens.

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Jean Sémolué reproduz em seu livro um depoimento de Bresson a Jean Quéval: “É o ‘interior’ que comanda. Sei que isso pode parecer paradoxal numa arte que é toda ‘exterior’. Mas vi filmes em que todo mundo corre e que são lentos. Outros em que os personagens não se agitam e que são rápidos. Constatei que o ritmo das imagens não tem o poder de corrigir toda lentidão interior. Só os nós que atam e desatam no interior dos personagens conferem ao filme seu movimento, seu verdadeiro movimento. É esse movimento que eu me esforço a tornar aparente por alguma coisa ou alguma combinação de coisas – que não seja só um diálogo”. Outro depoimento de Bresson resgatado pelo crítico em seu estudo: “O cinema sonoro inventou o silêncio. Acho maravilhoso e cômodo um diálogo explicativo. Porém o ideal seria de preferência que o diálogo acompanhasse os personagens, como o guizo acompanha o cavalo, o zumbido, a abelha”. Uma frase do mestre francês do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”: “É com o nítido e o preciso que você forçará a desatenção dos desatentos de olho e de ouvido”. 

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Para Bresson, o teatro é a exterioridade, enquanto a arte cinematográfica, ou melhor, o cinematógrafo, é a interioridade, o íntimo, a profundidade do ser. “As palavras devem ser usadas quando não podemos expressar as coisas através de imagens”, disse o cineasta no mesmo programa. “As palavras devem ser usadas quando queremos penetrar no coração das coisas”, ensinou, destacando que o som nos filmes engloba três tipos de modalidades: ruídos, música e diálogo. “Esses três elementos precisam do silêncio para existir e expressar algo”. E o diálogo era uma espécie de último recurso no cinema de Bresson.

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“É preciso dissociar o modelo da ação do filme para que coisas inesperadas aconteçam”, disse no mesmo programa na época do lançamento de “A Grande Testemunha”. Completamente diferente do gesto esculpido e das falas decoradas do teatro. “Como copiar a vida sem imitá-la?”, ele se pergunta no mesmo programa. “Se é uma imitação não pode ser real”, assegura, ressaltando que a câmera é um aparelho maravilhoso que registra até mesmo o que o olho não vê. Bresson jamais mostrava a seus modelos os copiões do dia anterior para que não ficassem pensando, para que não ficassem racionalizando o que fizeram, para que transitassem no set utilizando apenas a própria intuição. Ele somente trabalhava com um determinado modelo uma única vez, pois poderia correr o risco de se deparar com cacoetes e maneirismos no filme seguinte. A única exceção foi Jean-Claude Guilbert, que trabalhou duas vezes com o mestre francês: em “A Grande Testemunha” (1966) e “Mouchette” (1967).



O crítico (Jean Sémoulé) lembra que nesse filme (Mouchette, 1967) Bresson cria um paralelo entre os animais de caça e Mouchette: perdizes e lebres sendo mortas antes de Mouchette se matar. Segundo Sémolué, Bresson não detectouem Nadine Nortier, a menina que vive Mouchette, “a natureza de uma intérprete para fazê-la atuar, mas captou a natureza de um ser na sua disponibilidade nata”. Como Balthazar, de “A Grande Testemunha”, “Mouchette descobre a vida ao ser confrontada com diferentes vícios sucessivamente, antes de morrer, com ela, na natureza”, compara o crítico. “Mas Mouchette julga os homens. Pelo menos, fica revoltada”, ressalta. 

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Sémolué disseca as camadas dramatúrgicas do roteiro de “Mouchette”: “Fatos são apenas fatos, sem dúvida, mas por que eles se dão exatamente naquele exato instante? A mãe morre justamente quando a filha precisa dela mais do que nunca e vai lhe falar dessa necessidade. A mulher da mercearia, a mulher do guarda, a sacristã, sobretudo, aparece no caminho de ‘Mouchette’ para fazê-la dizer o necessário para levá-la ao suicídio, como três parcas tecendo o fio do seu destino, como as três bruxas empurrando Macbeth na sua queda. A velha que ‘gosta dos mortos’, a mais impressionante das três, parece a morte personificada: seca e encarquilhada. Com uma voz miúda e um olhar agudo, ela fala de aromatizantes e de mortalha. Estaria farejando em ‘Mouchette’ a morte se aproximando? A menina estaria enfeitiçada por essas estranhas palavras, por esse momento não menos estranho? Bresson não interpreta os fatos; ele se limita a mostrálos”. 

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Sémolué resgata uma frase de Espinoza ao se referir à maneira como Bresson compõe seus quadros com objetos: “São os objetos que fazem com que percebamos. Somos afetados em graus diferentes por cada um deles e conforme a proporção de repouso e de movimento de que eles se compõem”. Uma dica, diga-se de passagem, para qualquer diretor de arte. Como um pintor, Bresson pensava a tela de cinema como uma superfície a cobrir com volumes, texturas, linhas, movimentos e silêncios. “Construa seu filme sobre o branco, sobre o silêncio e sobre a imobilidade”, uma de suas frases mais clarividentes do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”. Em 83, em entrevista a Le Nouvel Observateur, Bresson lembrou um de seus princípios: “Quanto ao som, ele fornece o espaço, o relevo. Ele chega e a tela se cava, abrindo a terceira dimensão. Enquanto a música aplaina a imagem, a torna uma superfície”. Para o mestre francês, o som é 3D em seu sentido mais pleno, mais linguístico, mais essencial. 

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O estilo de Bresson é único, irreproduzível. No cinema contemporâneo, em que a ficção propriamente dita parece precisar de muletas documentais para legitimar a “veracidade” das imagens que estão sendo criadas, Bresson está mais “moderno” que nunca, sobretudo a aparência documentária dos seus planos aplainados, condensados, sempre em estado de contenção, de espera e de reserva. Godard costuma dizer que o mestre está para o cinema francês como Dostoievski está para o romance russo e Mozart, para a música alemã. Para finalizar, algumas frases de Bresson extraídas do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”: 

“Criar não é deformar ou inventar pessoas e coisas. É estabelecer entre pessoas e coisas que existem e tais como elas existem, novas relações”. 

“Sua imaginação vai mirar menos os eventos que os sentimentos, querendo esses últimos os mais documentais possíveis”. 

“O futuro do cinematógrafo pertence a uma raça nova de jovens solitários que filmarão com seu último centavo e sem se deixar enganar pelas rotinas materiais do ofício”. 

Texto na íntegra neste link: https://carmattos.com/2012/05/08/bresson-por-mocarzel/ acesso em 27 de junho de 2019. 


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