Por
Evaldo Mocarzel
[...]
Bresson enveredou por uma busca minimalista que poderia ser definida como
“criação por subtração”, se despojando de todo tipo de excesso para tentar
vislumbrar o “real” no inesperado e na essência epifânica da imanência de todas
as coisas, sobretudo nos atos falhos dos não-atores, ou melhor, “modelos”, que
passou a dirigir em seus sets de filmagem, como um pintor. [...] Bresson
rejeitou o seu primeiro longametragem, “Os Anjos do Pecado”, com diálogos de
Jean Giraudoux, de 1943. O primeiro motivo mais explícito é a interpretação
teatral das atrizes, algumas da Comédie Française. Quando abandonou o
espetáculo e defendeu a ideia de que a arte cinematográfica é uma escritura e
que deveria ser chamada de “cinematógrafo”, o cineasta estava principalmente tentando
se afastar do que ele chamava de “teatro filmado”, ou melhor, “cinema”. Nesse
primeiro longa, há ainda algo que também passou a incomodar profundamente o
mestre francês: o cheiro de madeira dos cenários. A locação se tornou uma das
primeiras obsessões do estilo rigoroso de Bresson. Embora com uma certa
afetação teatral e com muitas sequências rodadas em estúdio, “Os Anjos do
Pecado” é uma obra que é puro Bresson. Temas como a morte como única
possibilidade de transcendência, como única chance de vislumbrar um aceno de
Deus, além do paradoxo da prisão como libertação, tudo isso está lá pulsando e
revelando a face mais sincera desse grande artista sempre tão fiel a si mesmo,
tentando encontrar a “lucidez” das tragédias gregas no desalento e no pessimismo
suicida de seus personagens.
*
Jean
Sémolué reproduz em seu livro um depoimento de Bresson a Jean Quéval: “É o
‘interior’ que comanda. Sei que isso pode parecer paradoxal numa arte que é
toda ‘exterior’. Mas vi filmes em que todo mundo corre e que são lentos. Outros
em que os personagens não se agitam e que são rápidos. Constatei que o ritmo
das imagens não tem o poder de corrigir toda lentidão interior. Só os nós que
atam e desatam no interior dos personagens conferem ao filme seu movimento, seu
verdadeiro movimento. É esse movimento que eu me esforço a tornar aparente por
alguma coisa ou alguma combinação de coisas – que não seja só um diálogo”.
Outro depoimento de Bresson resgatado pelo crítico em seu estudo: “O cinema
sonoro inventou o silêncio. Acho maravilhoso e cômodo um diálogo explicativo.
Porém o ideal seria de preferência que o diálogo acompanhasse os personagens,
como o guizo acompanha o cavalo, o zumbido, a abelha”. Uma frase do mestre
francês do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”: “É com o nítido e o preciso que
você forçará a desatenção dos desatentos de olho e de ouvido”.
*
Para
Bresson, o teatro é a exterioridade, enquanto a arte cinematográfica, ou
melhor, o cinematógrafo, é a interioridade, o íntimo, a profundidade do ser.
“As palavras devem ser usadas quando não podemos expressar as coisas através de
imagens”, disse o cineasta no mesmo programa. “As palavras devem ser usadas
quando queremos penetrar no coração das coisas”, ensinou, destacando que o som
nos filmes engloba três tipos de modalidades: ruídos, música e diálogo. “Esses
três elementos precisam do silêncio para existir e expressar algo”. E o diálogo
era uma espécie de último recurso no cinema de Bresson.
*
“É
preciso dissociar o modelo da ação do filme para que coisas inesperadas
aconteçam”, disse no mesmo programa na época do lançamento de “A Grande
Testemunha”. Completamente diferente do gesto esculpido e das falas decoradas
do teatro. “Como copiar a vida sem imitá-la?”, ele se pergunta no mesmo
programa. “Se é uma imitação não pode ser real”, assegura, ressaltando que a
câmera é um aparelho maravilhoso que registra até mesmo o que o olho não vê.
Bresson jamais mostrava a seus modelos os copiões do dia anterior para que não
ficassem pensando, para que não ficassem racionalizando o que fizeram, para que
transitassem no set utilizando apenas a própria intuição. Ele somente
trabalhava com um determinado modelo uma única vez, pois poderia correr o risco
de se deparar com cacoetes e maneirismos no filme seguinte. A única exceção foi
Jean-Claude Guilbert, que trabalhou duas vezes com o mestre francês: em “A
Grande Testemunha” (1966) e “Mouchette” (1967).
O
crítico (Jean Sémoulé) lembra que nesse filme (Mouchette, 1967) Bresson cria um
paralelo entre os animais de caça e Mouchette: perdizes e lebres sendo mortas
antes de Mouchette se matar. Segundo Sémolué, Bresson não detectouem Nadine
Nortier, a menina que vive Mouchette, “a natureza de uma intérprete para
fazê-la atuar, mas captou a natureza de um ser na sua disponibilidade nata”.
Como Balthazar, de “A Grande Testemunha”, “Mouchette descobre a vida ao ser
confrontada com diferentes vícios sucessivamente, antes de morrer, com ela, na
natureza”, compara o crítico. “Mas Mouchette julga os homens. Pelo menos, fica
revoltada”, ressalta.
*
Sémolué
disseca as camadas dramatúrgicas do roteiro de “Mouchette”: “Fatos são apenas
fatos, sem dúvida, mas por que eles se dão exatamente naquele exato instante? A
mãe morre justamente quando a filha precisa dela mais do que nunca e vai lhe
falar dessa necessidade. A mulher da mercearia, a mulher do guarda, a sacristã,
sobretudo, aparece no caminho de ‘Mouchette’ para fazê-la dizer o necessário
para levá-la ao suicídio, como três parcas tecendo o fio do seu destino, como
as três bruxas empurrando Macbeth na sua queda. A velha que ‘gosta dos mortos’,
a mais impressionante das três, parece a morte personificada: seca e
encarquilhada. Com uma voz miúda e um olhar agudo, ela fala de aromatizantes e
de mortalha. Estaria farejando em ‘Mouchette’ a morte se aproximando? A menina
estaria enfeitiçada por essas estranhas palavras, por esse momento não menos
estranho? Bresson não interpreta os fatos; ele se limita a mostrálos”.
*
Sémolué
resgata uma frase de Espinoza ao se referir à maneira como Bresson compõe seus
quadros com objetos: “São os objetos que fazem com que percebamos. Somos
afetados em graus diferentes por cada um deles e conforme a proporção de
repouso e de movimento de que eles se compõem”. Uma dica, diga-se de passagem,
para qualquer diretor de arte. Como um pintor, Bresson pensava a tela de cinema
como uma superfície a cobrir com volumes, texturas, linhas, movimentos e
silêncios. “Construa seu filme sobre o branco, sobre o silêncio e sobre a
imobilidade”, uma de suas frases mais clarividentes do livro “Notas sobre o
Cinematógrafo”. Em 83, em entrevista a Le Nouvel Observateur, Bresson lembrou
um de seus princípios: “Quanto ao som, ele fornece o espaço, o relevo. Ele chega
e a tela se cava, abrindo a terceira dimensão. Enquanto a música aplaina a
imagem, a torna uma superfície”. Para o mestre francês, o som é 3D em seu
sentido mais pleno, mais linguístico, mais essencial.
*
O
estilo de Bresson é único, irreproduzível. No cinema contemporâneo, em que a
ficção propriamente dita parece precisar de muletas documentais para legitimar
a “veracidade” das imagens que estão sendo criadas, Bresson está mais “moderno”
que nunca, sobretudo a aparência documentária dos seus planos aplainados,
condensados, sempre em estado de contenção, de espera e de reserva. Godard
costuma dizer que o mestre está para o cinema francês como Dostoievski está
para o romance russo e Mozart, para a música alemã. Para finalizar, algumas
frases de Bresson extraídas do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”:
“Criar
não é deformar ou inventar pessoas e coisas. É estabelecer entre pessoas e
coisas que existem e tais como elas existem, novas relações”.
“Sua
imaginação vai mirar menos os eventos que os sentimentos, querendo esses
últimos os mais documentais possíveis”.
“O
futuro do cinematógrafo pertence a uma raça nova de jovens solitários que
filmarão com seu último centavo e sem se deixar enganar pelas rotinas materiais
do ofício”.
Texto na íntegra neste link: https://carmattos.com/2012/05/08/bresson-por-mocarzel/
acesso em 27 de junho de 2019.
Nenhum comentário:
Postar um comentário