por Giovanni Comodo
Um amigo me perguntou que tipo de
filme é “Meu único amor”. Não soube responder. Com seu preto-e-branco em alto
contraste, trama repleta de pequenos gangsters,
nightclubs esfumaçados e uma
violência que parece a ponto de irromper de todos os lugares, é visto como um
noir. E também conta a história de uma família, seus traumas, dores e ambições,
com espaço para os três irmãos e seus familiares – um drama. Porém como ficam
os vários números musicais durante o filme, em que tudo parece segurar a
respiração para termos o prazer de ouvir – e ver! – os músicos fazerem seu
trabalho? Ou a avassaladora história de
amor e desencontro entre Petey e San, dois adultos perdidos na noite
californiana? Estamos diante de um filme de Raoul Walsh, ou seja, selvagem e
repleto de pulsões como a vida.
Walsh é ainda pouco conhecido do
grande público, mesmo sendo um dos maiores e mais prolíficos diretores de
Hollywood. Começou ainda no cinema mudo, ator e assistente de DW Griffith (foi Wilkes
Booth em “O Nascimento de uma nação”), e filmou de tudo em mais de 50 anos de cadeira
de diretor: drama, aventura, ação, faroeste, policial, romance.
E o que é um filme walshiano? Fala-se
no seu gosto por filmar as pessoas em plano americano (os atores cortados na
altura dos quadris ou joelhos), no pouco movimento de câmera, na excelência da profundidade
de campo com a qual apresenta o mundo (pensemos nas várias cenas nos clubes e
no apartamento do casal), na transparência e economia na decupagem, discreta, à
serviço dos corpos na tela. Mas o são principalmente por algo menos tangível:
energia. Os filmes de Walsh parecem carregados de um vigor que os propelem para
frente – em histórias de homens em constante luta com o mundo e de mulheres
fortes, indomáveis.
O que nos leva à Petey Brown de
Ida Lupino, a mais indômita de suas mulheres. Independente, durona,
inteligente, sempre com uma resposta rápida nos lábios, Petey chega a Long
Beach para visitar a família, ajudá-los e, por que não?, ajudar-se também no
processo. Lupino – que logo depois viria a ser ela também uma cineasta walshiana
(ele e Nicholas Ray são seus mestres) – está em estado de graça em seu quarto e último trabalho com o diretor, um de seus papéis finais na Warner, estúdio
com o qual vivia às turras ao lutar por personagens interessantes. Petey,
cantora, apresentada a nós mansamente pelas bordas da tela em uma apresentação
de jazz (não seria todo o filme, com suas constantes e controladas variações de
ritmo, uma enorme apresentação de jazz?), é a dona da voz do filme: repleta de
razão e de experiência de vida, passa a alertar e orientar a todos em volta. Assim,
o poder de sua presença surge no filme como um sol que nasce, organiza a vida
em volta e, no final, some na escuridão do horizonte, natural e discretamente,
com a certeza que voltará em outro momento pois assim são as leis da vida. Tão
forte é a presença de Lupino/Petey que ela, sem nada nas mãos, chega a desarmar
um homem com revólver e gana de assassinato e já em sequência surrá-lo. Seu
calor é inclusive físico: ela é também a dona do fogo – já na primeira cena
acende o cigarro de um colega pianista e durante a projeção vai acendendo o fogo
de outros tantos homens e da narrativa como um todo, como se a pólvora do tempo
acumulada por sua família e amigos de Long Beach estivesse à sua espera. Petey,
por sinal, sempre acende seu próprio cigarro, exceto com San Thomas, seu único
amor.
Tão grande é o calor de Lupino
que este estende-se ao seu olhar. Não apenas restrito ao de observadora
analítica que antevê os problemas, é também o de uma mulher em completo domínio
de sua sexualidade. Ela controla os homens ao redor e vai atrás quando lhe interessa,
sem culpas. As cenas em que observa San tocar piano em seu apartamento são tão
repletas de lascívia que são preliminares. Tanto que é puro sexo o corte em
seguida realizado pelo diretor, na filmagem da lareira acesa com Lupino
controlando as chamas com o atiçador e em sequência filando um cigarro de San
Thomas, satisfeita.
“Meu único amor”, para além de ser
listado como um noir, é também um
exemplar fascinante dos chamados “women’s
films”, os filmes concebidos por Hollywood destinados às mulheres, em
tentativas de lhes dar o que imaginavam que este público gostaria de ver,
muitas vezes com curtos-circuitos sociais que subvertiam a moral corrente e
expunham a realidade, afinal. Walsh oferece na família Brown um mosaico de
mulheres interessantes e independentes: as três irmãs e a vizinha Gloria, com
seus desejos (inclusive sobre os homens), frustrações, descobertas e
camaradagem entre si, proporcionam grandes momentos de pessoas próximas do
mundo real e para as quais Walsh não deixa julgamentos na imagem. Exemplo
notável: o casal de vizinhos Gloria e Johnny. Em uma espécie de jogo invertido
dos papéis sociais, é Gloria que gosta de sair na noite e paquerar o sexo oposto,
enquanto Johnny sempre fica com os bebês, com afeto e dedicação raramente
vistos no cinema – e tendo seu físico observado, avaliado e comentado pelas
vizinhas no meio tempo. No entanto, Walsh não faz julgamentos destas condutas,
apenas deixa-as serem vistas à plateia. Apesar da morte trágica de Gloria poder
ser vista como um indicativo da moral dos anos 1940, ela ocorre de forma tão
abrupta e quase “escondida” do espectador que traz mais o inesperado da vida
do que uma conclusão moralista – e a maneira como filma Dolores Moran, nunca
caricatural, prova que Walsh está ao seu lado.
Um grande cineasta não simplifica as complexidades do mundo, mas as traz à tona para a plateia, revelando-o. Paixões e relacionamentos são, em essência, complexos. Em “Meu único amor”, recusam-se saídas fáceis. Na última cena, de despedida, repleta de dor, há também uma alegria do que se viveu, de triunfo por caminhar adiante – confundindo-se a personagem e também a atriz, em direção a novos desafios. Certo está Louis Skorecki ao dizer: “é preciso amar Walsh porque ele ajuda-nos a melhor ver o mundo”.
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