por João Bénard da Costa
1.
Para a tal ilha deserta, onde só se pudesse levar os tais vinte filmes - ou
mesmo os tais cinqüenta -, eu nunca incluiria, na minha lista, um filme de
Orson Welles. Como não levaria nenhum Eisenstein, para escolher cineasta de
imensidão comparável. Num caso como no noutro, a minha admiração por esses
realizadores geniais (e peso a palavra) não destinge para o meu gosto. Com a
cabeça, tiro-lhes o chapéu. Outras partes do meu corpo não pulsam com a mesma
irreverência. Quando não os tenho diante dos olhos, esqueço-me deles, embora
raça eu fosse se esquecesse, só por um momento, que todos sempre lhes devemos
tudo, como do próprio Welles disse o próprio Godard.
Sucede
que nesta segunda quinzena de Novembro, como na primeira quinzena de Dezembro,
tenho Welles diante dos olhos, por via do ciclo que a Cinemateca está a organizar.
E quando a fantástica figura me entra assim pela casa dentro é impossível não
ficar obcecado por ela. Como a boneca de Carlos Queiroz, arromba as portas de
todos os armários, não cabe em nenhuma gaveta, está em toda a parte, a todos os
cantos. Welles, Welles, Welles.
Pela
milionésima vez, me interrogo sobre o que nele é fake ou sobre o que nele é
fuck, sobre as suas negras magias, o seu “cortejo infernal de alarmes”, sobre
os seus abismos, ações, desejos e sonhos. “Welles avait son gouffre, avec lui
se mouvant”? Foram as suas asas de gigante que o impediram de andar?
Baudelaire, tanto quanto Shakespeare, ajuda a percebê-lo?
Continuo
sem respostas que completamente me sosseguem ou inteiramente me desassosseguem.
Mas este homem, que passou os filmes a falar de segredos (o Rosebud de Kane, o
segredo do rei citado em Arkadin), guarda ainda um segredo, que ninguém se
aproximou de revelar. Guarda ainda? Guarda cada vez mais. Dezoito anos depois
da sua morte, aos 70 anos, sabe-se que é cada vez maior o “outro lado do
vento”, ou seja, a imensidão de imagens, registros fílmicos, material para
obras incompletas, vestígios das suas incontáveis presenças na televisão ou no
teatro, semidescobertos ou por descobrir. A arca de Pessoa é uma caixinha de
costura comparada com os subterrâneos de Welles.
The Other Side
of the Wind. É o título
de um dos muitos filmes incompletos de Welles, filmado entre 1970 e 1976 nos
Estados Unidos, em França e em Espanha. O dia de anos de um aclamadíssimo
realizador de Hollywood (John Huston fez desse realizador). A corte que o
cerca, como os críticos que queriam escrever um livro sobre ele (Peter
Bogdanovich e Joseph McBride, os mais persistentes exegetas de Welles,
interpretam os críticos em caricatura feroz), as candidatas a vedetes, os
amigos e os inimigos. “É um filme dentro de um filme”, disse Welles. “Tentativa
do velho cineasta para fazer uma espécie de filme de contracultura, num estilo
oninizante e surrealizante.” Seis anos a filmar é muito ano, embora seja pouco
se comparado com os dezoito anos (1955-1973) consagrados ao lendário Don
Quijote. Percebe-se o desespero dos produtores que sucessivamente pagaram, sem
resultados finais, as sucessivas versões desses filmes, ou, ainda, de The Deep,
The Dreamers, etc. Welles defendeu-se perguntando por que é que se admite que
Proust tenha levado vinte anos a escrever a Recherche (também sem a acabar) e a
ele lhe não deixavam tempo idêntico para filmar, refilmar, eliminar, incluir,
as horas e horas de material dessas obras, inconcluíveis em filme, ou só
concluíveis à custa de muita vigarice, como sucedeu com a versão do Quixote do
espanhol Jess Franco, estreada, com pompa e circunstância, sete anos depois da
morte de Welles, na Expo 92, de Sevilha. Foi desculpa de mau pagador? Minado por
dentro por muitos demônios, foi ele quem já não conseguiu dar sentido aos mil
apontamentos contraditórios que foi filmando? Ou, deliberadamente, nunca quis
concluir esses filmes, para deixar a lenda sobrepor-se aos fatos?
Ninguém
me deu resposta que me convencesse, quer entre os seus defensores quer entre os
seus detratores. Mas a história que mais se me aproxima da dessas sinfonias,
que nem incompletas são, é a do velho conto popular, em que o Vento,
personificado num ogro, se refugia a espaços na casa da velha mãe, sem nunca se
saber quando vem ou quando parte, se volta para repousar, no limite do fôlego,
ou se volta para destruir, quando o vasto mundo já não o pode conter. Welles
foi esse vento (esse outro lado do vento) que soprou onde quis e não soprou
onde não quis, jogando com a sua própria força, força da natureza em sentido
próprio e figurado? Ou um maverick vencido, após essa obra imensa que é o
Falstaff dele (1966) que, segundo McBride, foi o seu testamento, o filme a
partir do qual só há obras póstumas?
Oja
Kodar, a última das mulheres de Welles e que esteve em Lisboa esta semana,
contrariou a imagem varredora do homem que, durante os últimos anos da vida,
pôs toda a energia num processo autodestrutivo. E disse que se há imagem de
Welles, que corresponde ao personagem, é o último plano de Falstaff, no filme
citado, quando Hal, o amigo a que Falstaff dera todo o amor, sobe ao trono sob
o nome de Henrique V.
Lembram-se?
Eu ajudo. Subir ao trono não é força de expressão, porque o jovem príncipe, que
tanto parecera amar (ou tanto amava) Falstaff, sobe pelo plano acima, depois de
rei, e se transforma num esguio boneco, quase sem formas nem contornos, em que
a coroa é o único atributo visível, perdidos os olhos, a boca ou o coração,
tudo quanto o caracterizava enquanto fora o inseparável amigo de Sir John.
Mas
Hal sempre foi uma espécie de Iago, o que era evidente para todos exceto para
Falstaff, porque Falstaff, como o próprio Welles disse, “é a mais genial
concepção de um homem bom, o melhor homem jamais representado em qualquer
drama. Os pecadilhos dele são tão pequenos e tão fabulosas são as piadas que
ele tira desses pecadilhos. A bondade dele é como pão, como vinho...”.
Por
isso, Falstaff nunca percebeu que Hal só é seu amigo enquanto ele lhe é útil
para os seus instintos parricidas (primeira parte do Henry IV) mas, na segunda
parte, tem que matar a sua libido, a sua narcisista auto-adoração (o próprio
Falstaff). Por isso, Falstaff acredita até ao fim, contra todas as evidências,
que o rei continuará a ser Hal e o continuará a amar.
Nem
acredita quando ouve Henrique V chamar-lhe “that old, white-bearded Satan”.
Daí, o seu fabuloso discurso de defesa. Daí o seu último brado: “My King! My
Jove! I speak to thee, my heart!” O rei volta-se para ele e, rígido que nem uma
estátua, diz as palavras mais terríveis: “I know thee not, old man. Fall
to thy prayers. How ill white hairs become a fool and jester!” Só então Falstaff percebe, não
percebendo, e nada há de mais pungente do que esse plano silencioso do velho,
como se não acreditasse no que lhe está a acontecer. É um plano mais de dor do
que de desespero, mais de desabrigo do que de revolta, mais de desconjuntamento
do que de ressentimento.
Teria
sido assim Orson Welles, sob as máscaras do wonder boy, da arrogância, do poder
ou da vaidade? Como alguém já disse, ele, a quem tanto se censurou ter-se
sobreposto ao próprio Shakespeare, foi a mais complexa personagem inventada por
Shakespeare, convertendo em si os destinos de Shylock e de Macbeth, de Falstaff
e de Otelo, de Ricardo III e do rei Lear.
“I indeed
believe in the existence of evil (...). Evil is a force so great that it is
beyond me to decide whether it’s generated entirely within man or whether it is
(...) a contagion.”
Como
todas as doenças contagiosas, pega-se.
2.
Num artigo que julgo inédito (Some minor keys to Orson Welles), Peter von Bagh
acentuou a dimensão do fake sobre aquela que até aqui me levou. Recorda a lenda
que diz que a carreira radiofônica de Welles começou quando ele foi o único a
saber imitar o choro de cinco diferentes bebês, ao tempo do nascimento das
famosas quíntuplas Dionne. A partir daí, foi convidado regular do famoso
programa The March of Time, bizarra combinação de “real” e “falso”.
No
Citizen Kane, o jornal de atualidades do início (sobre a morte de Kane)
chama-se News on the March e é um “fetiche” ainda mais profundo do que o
programa da rádio em que se inspira. “Fake of a Fake”, na expressão de von
Bagh, vai ao ponto de juntar na mesma imagem Kane e Hitler, num paroxismo de
ficção.
Mas
se, desde aí até F for Fake (1973) ou até ao abortado projeto (mais um) de The
Magic Show, essa dimensão é capital para outra aproximação ao segredo de
Welles, de tudo o que vi agora o que mais me comoveu (a rima mais profunda com
a derradeira aparição de Falstaff) é um pequeno filme de três minutos e de um
só plano fixo, chamado The Spirit of Charles Lindbergh.
Foi
a última aparição de Welles no ecrã. Poucos meses antes de morrer, já sem
brilho nos olhos, Welles “escreve” uma carta a um amigo, também moribundo: Bill
Cronshow. E escolhe uma passagem do diário de Lindbergh, na sua célebre
travessia do Atlântico. “I want to sit quietly in this cockpit and let the
realization of my completed flight sink in.” Sem sons nem dor, o único desejo é que Paris esteja mais
longe do que está e que a viagem dure mais tempo, mais tempo.
Mas
todas as viagens têm que acabar e nunca há o tempo que ao tempo pedimos e que
do tempo esperamos. Como Lindbergh, Orson Welles chegou ao fim numa noite muito
clara e com gasolina para uma viagem muito maior. Como todos nós, mas quase
nenhum de nós o sabe.
(28
de Novembro de 2003)
Texto
originalmente publicado em Foco: Revista de Cinema
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