sábado, 7 de dezembro de 2019

Notas a propósito do cinema de Rossellini para uma sessão de Paisà

por Nikola Matevski


Um dos principais problemas com o neorrealismo reside, talvez, na sua amplitude, que é da ordem da cultura. Quem estudou o assunto com afinco, como Mariarosaria Fabris, invariavelmente alcançou os problemas da definição desse termo e da sua complexa relação com o cinema. Neorrealismo, afinal, não delimita com clareza uma escola ou um estilo e, no pior dos casos, pode servir apenas de rótulo para nivelar uma filmografia rica em sua heterogeneidade. Outro risco, até certo ponto inevitável, é cair na retórica excessivamente marcada pela negatividade. O filme neorrealista seria tudo aquilo não é o filme hollywoodiano: no lugar dos cenários construídos, a crueza espartana das ruas; em vez do profissionalismo dos atores envernizados, o amadorismo das pessoas do campo e das periferias. E assim por diante. Refletir a propósito do neorrealismo é, em suma, abordar uma questão importante para a historiografia do cinema, mas não é um problema que me estimula particularmente e, por isso, não é o enfoque que proponho para esta sessão de Paisà realizada pelo Atalante. Prefiro deixá-la de lado, ainda que o filme tenha sido tantas vezes a ela associado. Levo em consideração, inclusive, outras exibições do filme em Curitiba e que remontam a um cineclubismo de longa data.

Um dos momentos mais pungentes de Paisà encontra-se ao término do segundo episódio. O soldado Joe, americano, negro, teve suas botas roubadas por um menino das ruas de Nápoles. Ao final, o estrangeiro visita uma gruta em que vê o cortiço – a moradia do garoto. Adriano Aprà foi certeiro quando disse, em Dibattito su Rossellini, que o filme opera naquele momento uma colisão de universos distintos. É sabido que uma das grandes questões de Paisà é lidar com a diferença. Entre invasores e invadidos, entre autóctones e estrangeiros, a alteridade é uma constante que embaralha as chances da comunicação, do convívio, da solidariedade e do amor. Aludir, porém, a uma colisão de realidades desiguais, como fez Aprà, é designar uma importância fundamental à montagem. A cena se dá pelo raccord de olhar: o soldado olha e vê. No entanto, essa figura da continuidade atravessa, simultaneamente, toda a alteridade entre personagem e seu entorno. Daí emerge a força do choque. No ato da visão intermediada pelo corte, mundos divergentes colidem forçosamente.

Esse é um dado crucial para o cinema de Rossellini porque em seus próximos filmes ele só fará aumentar a distância do abismo. As desigualdades trazidas pela guerra e pela miséria social serão engolfadas pelos precipícios que apartam os indivíduos desterritorializados de Alemanha, ano zero, Viagem à Itália ou Stromboli. O despertecimento supera os limites das cidades, dos países e das sociedades e se dirige para a totalidade. Por isso, ao descrever a cena que encerra Alemanha, ano zero, Adriano Aprà a compara a 2001: Uma Odisseia no Espaço. A montagem do garoto que olha a devastação de Berlim é como aquela do solado em Paisà, mas o desabamento é mais profundo, abissal, atingindo o grau zero, o começo e o fim de tudo (o garoto é, então, como a criança no último plano do filme de Stanley Kubrick). De maneira parecida, os indivíduos de Viagem à Itália ou Stromboli achavam ingenuamente que sabiam ver e controlar o mundo, mas nada menos que o planeta que habitam enviou-lhes os melhores cumprimentos. Deixando a ironia de lado: entre o núcleo da Terra, que manda gases informes e explosões para Stromboli, e as luzes das estrelas, que atravessam as curvas do tempo, exige-se o máximo de Karin e do seu olhar.

Muitos não entenderam essa amplificação de escala do cinema de Rossellini e acusaram-no de trair o neorrealismo (outros, pelo contrário, entenderam e responderam, como Jean-Luc Godard e as galáxias que filmou numa cafeteria, na xícara de café). As montagens que mencionei, dependendo de como incidem no filme, são igualmente importantes para projetar a interioridade às personagens, cujas emoções podem ser flutuantes e imprevisíveis como os fenômenos da natureza (turbulentos como as águas da cana pesca ao atum em Stromboli, por exemplo) até culminar em ruptura (como o menino, anjo caído de Alemanha, ano zero).

É o que se passa, de certa maneira, com o soldado na gruta em Nápoles. Depois de olhar, seu corpo abruptamente se vira e sai de quadro. Não há como contornar o visto, que age no homem como um transbordamento. Como observou Tag Gallagher, a equação é a da acumulação liberada num impulso, que é o gesto do corpo. O heroísmo e os sacrifícios de Paisà se dão nesses termos, não como causalidade lógica ou obediência normativa da conduta (honra), mas como uma precipitação, imediata e contingente. Desses gestos emanam os sentimentos e as tragédias que selam os vínculos possíveis entre os diferentes. O plano que se segue àquele de Joe, o soldado, saindo de quadro é a de um jipe que se afasta rapidamente. É uma das elipses mais famosas de Rossellini e volto a ela porque a montagem está mais uma vez implicada. Não consta, no filme, como o personagem saiu da gruta e chegou ao veículo; perdeu-se a coesão do espaço e do tempo. E, no entanto, essa supressão, convertendo o impulso do corpo que sai de quadro em uma fuga veloz, amplifica a desolação.

A carga das forças convocadas é tamanha que a linguagem não consegue carregá-las. "É como se faltassem palavras", escreveu Sandro Bernardi: diante do choque da experiência, não dizemos frases articuladas, mas emendamos orações, cuspimos palavras e a linguagem colapsa. Isso cria uma aspereza e certo inacabamento do cinema de Rossellini que, como nesse exemplo, sempre trabalharam a seu favor. Por essa fresta passa o melhor de todo o cinema moderno, que sempre fez desse tipo de ausência (de ação, de intriga, de psicologia, etc.) verdadeiras “negatividades positivas”, matérias escuras simultaneamente ausentes e constitutivas.

Haveria mais a dizer a respeito de Paisà, sobretudo diante da paisagem e do rio a que se destinam os personagens no último, talvez o melhor episódio. Por ora, me ative a uma porção curta do filme porque ela me permitia introduzir o assunto da montagem em Rossellini, aspecto às vezes relegado diante da tradição crítica apoiada no elogio ao plano-sequência. A esse respeito vale a pena ler a tradução de Letícia Weber Jarek para o texto Faux Raccords, de Alain Bergala. Temas para uma conversa pós-sessão.

Agradecimento: Tainah Negreiros

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