Curitiba, 26 de Março de 2021,
por Vera
Lúcia de Oliveira e Silva
Peço desculpas aos cinéfilos
Amigos cinéfilos, recebam minha
admiração e minha inveja: vocês têm sensibilidade e repertório para tratar dos
filmes com as ferramentas do próprio Cinema. Não é o meu caso: embora amando
intensamente os filmes, eu os acabo sempre usando como um portal por onde eu
acesso o mundo – o mundo como eu o apreendo.
Interpretar um filme é como interpretar um sonho: uma viagem, das imagens às palavras.
Palavras que se encadeiam em sequências significantes, em todas as direções, construindo um edifício tridimensional através de enlaces com outros fios já postos no grande Outro da Cultura.
Se a fidelidade do cinéfilo ao filme faz com que ele nunca perca o fio imaginário original, frequentemente eu acabo viajando para bem longe, o que pode não interessar a mais ninguém.
A quem interessar possa
O título escolhido por Teresa Villaverde para batismo de seu filme – Os Mutantes – colocou-me, de partida, a questão: quem são os mutantes nesse filme?
Na Biologia, mutante é o nome que se dá ao resultado de uma variação genética que leva à aparição de um ser diferente dentro de uma dada espécie. A mutação pode gerar uma vantagem competitiva – e a variante vai prosperar no mundo; ou não – e o novo será condenado à extinção.
Voltemos a Villaverde: seu filme só fala de gente, então, por força, trata da aparição de um mutante humano. No plural.
Quem? Quem são os mutantes nesse filme? Esta é a pergunta a que o filme me instigou.
Juventude à deriva
Villaverde nos apresenta um conjunto de jovens à deriva.
Não está sozinha – a Arte tem sido pródiga em mostrar jovens como que flutuando na correnteza da vida, inscritos num circuito do tipo estímulo-resposta, aqui e agora, sem rumo e sem reflexão, sem futuro, embora, seguramente, carregando um passado.
Villaverde elege alguns deles para segui-los de perto e revelar alguns pormenores de sua história: são como que paradigmas da mutação que a cineasta pretende mostrar. A deriva é turbulenta e selvagem, mas dois deles farão, num momento preciso de suas vidas, um apelo contundente ao Outro – buscam seus pais!
A (não)acolhida que recebem, no presente do filme, funciona como um holofote que permite iluminar o tempo pretérito e supor algo de como tais filhos entraram no mundo: parece-me que não foram desejados, não foram bem-vindos, caíram no colo de um Outro indiferente e feroz.
Serão eles, na sua deriva selvagem, os mutantes?
O desejo é desejo do Outro
A frase enigmática e contundente
de Lacan vem nos informar – entre outras coisas – que não há a menor
possibilidade de se constituir um ser-falante a partir de um vácuo no desejo do
Outro que o trouxe ao mundo. Não desejado, o que nasce é um ser-condenado-à-deriva,
um ser-para-a-morte.
Então, não serão os pais,
especificamente os pais que Villaverde nos mostra, os verdadeiros mutantes?
Construo a hipótese de que, sim, sofreram
mutação exatamente naquilo que é mais instintivo no ser vivo: a sobrevivência –
não só a própria, mas também a da espécie.
São apresentados plenamente demitidos
da Função Paterna, qual seja: dar ao filho um nome e um lugar no mundo;
inscrevê-lo na ordem simbólica, através do “não!” civilizador; dar nome e destino
ao mal-estar que é o mais próprio da própria vida; apontar à saída que a Cultura
oferece ao mal estar – o amor e o trabalho.
Retrocederam ao pré-animal, pois
os animais não recuam diante do imperativo de oferecer à prole as condições
necessárias à sua sobrevivência. Dos pais de Villaverde, sequer podemos falar
que rejeitaram seus filhos, pois “rejeitar” ainda pressupõe um primeiro
acolhimento.
Da res(não)posta do Outro ao
apelo do Sujeito, nada poderia ser mais pungente que a resposta vazia que estes
pais mutantes dão ao apelo de seus filhos. Andréia menina, grávida, recorre à
sua mãe: ela precisa de ajuda! A mãe a descarta - O resto é treva. Para mim
nunca se apresentou na tela uma imagem mais contundente – soco no estômago! –
do mais puro e genuíno desamparo.
Um paradoxo
No reino da Biologia, governado
pelo instinto, tais mutantes estariam condenados à extinção, pela sua própria
natureza mortífera. No humano, apesar de seu caráter contra-natura, a mutação
em debate parece prosperar: pais que não cumprem a função paterna estão por
toda parte, procriando com responsabilidade menor do a que mostram aqueles que
adotam animais de estimação.
Só que a população humana não
para de crescer. Mistério da Natureza? Mistério da Cultura, onde o mal-estar à
deriva e o esforço para dissolvê-lo em todo tipo de droga – ilícitas e lícitas,
entre estas, o capital, o consumo e o fetiche da mercadoria – são a regra.
Resultado: eles – os mutantes –
estão entre nós. O filme de Villaverde nos adverte, de modo poético, porém
contundente, quanto às consequências inevitáveis desse fato.
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