por João Bénard da
Costa
“E aquele que no auge a não olhar
que saiba que passou e que jamais
lhe será dado a ver o que ela era”
Ruy Belo
Os versos de Ruy Belo citados em epígrafe pertencem ao poema Esplendor na Relva
e, no interior dele, estão colocados entre parênteses. O título do poema
refere-se ao filme homónimo de Elia Kazan e o poema parte de Deanie Loomis,
nome da personagem nesse filme interpretada por Natalie Wood.
Apetecia-me começar a falar de Uma Rapariga no verão, entre Ruy Belo e Elia
Kazan. E apetecia-me continuar dizendo de Isabel o que Ruy Belo disse de Deanie
Loomis: “Eu sei que Isabel não existe / mas entre as mais essa mulher caminha /
e a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura resiste”.
Há uma obscuridade genial no último verso: a evolução da protagonista segue uma
linha que resiste à “imaginação pura” (no sentido de “à pura imaginação”) ou
que segue uma linha que “pura” (no sentido de “puramente”) resiste? Qualquer
das leituras é possível, qualquer das leituras faz sentido tanto no poema como
na sua aplicação ao filme. Mas não é a mesma coisa e por o não ser, poema e
filme são tão misteriosamente comoventes e belos.
Comovente, belo e misterioso são adjetivos exactos, também, para Uma Rapariga
no verão de Vítor Gonçalves. Podia usar, sem exageros, os superlativos
absolutos simples. E muito de tudo isto está contido nessa zona entre a linha
que resiste à pura imaginação e a linha que resiste, pura, à imaginação. Por
isso citei Ruy Belo
E citei Kazan porque raras vezes, depois dele, houve um olhar assim sobre uma
rapariga no verão e sobre o amor, no verão, duma rapariga. E porque Isabel
Galhardo – fortíssima presença feminina do cinema português dos anos 80, que,
infelizmente, se parece ter ficado por este filme – me fez lembrar Natalie
Wood.
Convidado pelo ritmo deste filme pelo seu prodigioso sentido de raccord corto outra vez e volto à
epígrafe inicial (e Uma Rapariga no verão é um filme de cortes violentos e
brandas repetições, ou brandas circularidades). Quem no auge a não olhou foi
Diogo. E o auge é a surpreendente sequência (?), uma das mais audaciosas e
livres de que me consigo lembrar (e já vi muito) que se segue à ida de Diogo ao
hotel junto ao mar, em que Isabel está. Recordo (outro termo que convêm
singularmente a este filme): depois de ouvirmos, outra vez, uma história
radiofónica de José Manuel (“o pai e essas histórias para putos”) e a frase em off “avançar para um fim só dele
conhecido” (um dos segredos desse filme é que ele avança, também, para um fim
só de realizador conhecido) vemos em grande plano um telefone num maple encarnado (de encarnado se veste
Isabel quando o corpo lhe dói mais). Diogo, visto de costas, num enquadramento
dum rigor fulgurante, atende o telefone. Há um silêncio grande do outro lado.
Diogo julga que é José Manuel e só depois se ouve a voz de Isabel. Pede-lhe que
vá ter com ela. Precisa dele. Diogo resiste. Passamos à recepção de um hotel e Isabel
a alugar um quarto por uma noite. Corte. Isabel deitada de bruços em cima da
cama, de azul, sobre uma cama verde. Corpo prodigiosamente iluminado,
prodigiosamente só. Corte. Diogo chega ao hotel. Avança no corredor (os
vertiginosos corredores deste filme e uso o termo em homenagem ao Vertigo de
Hitchcock, de que são herdeiros) até a porta, ao fundo dele, do quarto de
Isabel. Corte e os personagens estão cá fora, nos pinhais, depois. Uma elipse
admirável? Sim e não. Porque não houve qualquer “partida” a qualquer eventual
“voyeurismo” do espectador. O amor físico
(literalmente) é dado na profundidade de campo do plano em que vemos Diogo
ajudar Isabel a saltar um muro e depois no grande plano dos dois: o sorriso dele,
o lento movimento dela, encostando-lhe a cabeça ao ombro. Um falso happy end a
meio dum filme? Podem chamar-lhe assim, mas eu prefiro a epígrafe de Ruy Belo.
Naquele momento, Diogo não sabe “que passou e que jamais / lhe será dado a ver
o que ela era”. A magia acabou quando “Chegámos a Lisboa”. Dificilmente se pode
imaginar mais pudor, mais contenção, mais emoções. E eu sei que as palavras não
me ajudam.
Mas ajuda-me, e ajudar-vos-á, a assombrosa música de Andrew Poppy, com aquelas
notas de trompa a dizerem mais do que. São canto e encanto, pontuação e eco,
rima e coda. Como o ruído do avião a jacto. Ouvimo-lo logo no início, no
primeiro plano, com Isabel no campo de milho. Algo recorda outro Hitchcock (North
by Northwest) e a celebérrima sequência em que o avião persegue Carry Grant.
Mas em Uma Rapariga no verão o suspense
nada tem a ver com perseguições desse género. Mas o sinal de ameaça é aproximável, sempre que o avião se faz ouvir:
desde esse plano, Isabel (“tenho que encontrar alguém que me trate bem... Que
goste de mim” (...) “Às vezes, és chata” “deve ser isso. Canso as pessoas”) não
tem saídas. Nada ou ninguém pode saciar a sua fome de um mais que nunca virá. E não conseguia estar sozinha. Num mundo sem
perigos aparentes (um longo e lento verão, em que só se sublinha a data de 22
de Setembro) está a pisar o risco da morte. E só a morte, no corpo do pai, lhe
permite outro abraço, noutro dos momentos mais belos deste filme, quando ela
desce a rua e vai junto ao mar que ele sobe e Isabel sabe o que sempre soubera:
que o pai vai morrer. Depois desaparecem os dois da imagem, primeiro ela,
depois ele, até ficar só o muro, a praia e o mar e, de novo, o ruído do jacto.
Este é um filme de brevíssimos planos, filmados por uma câmera que raras vezes
se move. Mas cada plano contém a capacidade de durar mais, e é como se essa duração
não lhe fosse consentida. Como se houvesse à volta deles (planos e personagens)
um inexorável sentido de fatalidade. E como se tudo se interligasse e
associasse obscuramente: os amores mortos de Isabel e a morte do Pai; as
histórias do roubo em Port Said ou da facada em Zanzibar e as histórias de José
Manuel; a partida do comboio e de Joana (o inter-rail) e as falsas partidas de
Diogo; o filme que não vemos na sala de cinema (ouvimos a música do genérico) e
o filme que se tem que ver outra vez; as personagens dentro do vidro (como
peixes dentro dum aquário) e Isabel espelhada neles, sua sombra e seu reflexo,
corpo in para voz off (ou será o contrário?).
Este é um filme onde se passa de uma luz intensíssima (a luz dos dias de verão,
os amarelos dos cais, os encarnados dos barcos) para uma obscuridade cerrada. E
a luz e o escuro formam como que um halo à roda dos corpos, destacando-lhes os
volumes, separando os primeiros dos segundos planos, numa perspectiva
simultaneamente reentrante e retraída. Este é um filme entre os planos mais
claros (Isabel, com o secador, a arranjar o cabelo de Joana) e os planos mais
crípticos (logo a seguir a esse, o plano da lua no céu carregados de nuvens).
Este é um filme sobre a diferença entre dizer e mostrar “uma luz inquietante no
olhar” e “uma inquietante luz no olhar”. Este é um filme sobre sons prolongados
ou intensos (a percussão, os passos de João Perry no porão das jaulas, o avião)
e as notas de trompa.
“Porque é que eu não consigo ficar sózinha?”, pergunta Isabel, quase no fim do
filme. Antes, tinha dito: “agora é tarde”. Mas já o era, tanto quando o filme
começou, como quando na ponte do cais, sai do carro e avança para a câmera,
interrompendo-se o movimento e o filme a uma grande distância desta. No único
momento em que podíamos ter medo que Vítor Gonçalves fosse retórico, fica só o
espaço, o tempo e o escuro.
Não gostava de acabar sem falar do plano do carro na lavagem automática, ou do
tiro na pantera. Podia ter começado por esses momentos, mas voltava – também –
onde comecei. “A vida passa e em passar consiste”, para citar pela última vez
Ruy Belo. O cinema também, como nos ensinaram os grandes.
Aos nomes deles, juntou-se em 1986 Vítor Gonçalves.
Texto em português de Portugal. Retirado de "Escritos sobre Cinema", Tomo I, 2º Volume, páginas 843-846. Lisboa: Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema. 2019. Suprimimos as três notas dos editores, comparativas com as versões de folhas da sala de Bénard para o texto, sem prejuízos para os leitores.
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