por Adrian Martin
Tento lembrar que existe disparidade. E essa é uma boa maneira de
lembrar a morte. Então a morte se torna algo completamente diferente do que se
acomodar ou resignar-se a morrer, algo diferente de melancolia. Pelo contrário,
torna-se uma 'ferramenta de trabalho'.
Raúl Ruiz, 1987
No magistral Mistérios de Lisboa (2011) – que não é, de fato, o último longa-metragem de Raúl Ruiz (posteriormente rodou La Noche de Enfrente no Chile), ainda que seja, felizmente, um dos seus de maiores sucessos internacionais –há uma cena em que o misterioso padre da saga (soberbamente interpretado por Adriano Luz) entra em uma sala secreta na qual vemos, ordenadamente arranjados, os vestígios de todas as suas outras identidades anteriores. Eles são mais do que disfarces ou fantasias; eles são seus outros eus. A câmara de Ruiz faz uma lenta e elegante panorâmica em torno deste pequeno e confinado espaço de intriga, parando no diminuto Padre Dinis, simplesmente refletindo, absorvendo todos esses sinais da labiríntica ficção de sofrimento e desgraça da qual tem sido parte, tanto mestre quanto fantoche. É o tipo de momento que - como em todo grande filme - você não necessariamente vê ou percebe na primeira exibição, ou mesmo na quinta exibição; mas ele está lá, esperando que você finalmente o alcance.
Outro dos melhores filmes de Ruiz, na minha opinião devota, é Três Vidas & Uma Só Morte (1996). É um dos muitos que ele fez que refletem (de tantas maneiras alegóricas e metafóricas) sobre a mortalidade. O filme parece marcar um limite sombrio: depois de viver tantas vidas paralelas, tantas segundas chances, tantas identidades imaginárias – cada uma criando seu próprio mundo ou universo – o personagem principal (Marcello Mastroianni) descobre, junto conosco, que o jogo proliferante para com o ponto final da sentença mortal: só há uma morte e, para além disso, nada (acredito que Ruiz permaneceu ateu toda a vida). Mas, imediatamente após o anúncio da morte do próprio diretor aos 70 anos, alguém no Facebook transformou este filme em uma forma agradável e triunfante: uma morte, mas tantas vidas.
E Ruiz realmente viveu muitas
vidas, progressiva e simultaneamente. Um artista surpreendentemente prolífico
que não tinha medo de agarrar qualquer oportunidade de produção, por menor que
fosse (“Dê-me dez mil dólares ou dez milhões de dólares”, ele uma vez brincou,
“nada no meio”), sua carreira passou por muitas fases. Embora alguns
comentaristas (incluindo defensores passionais) tendessem a reduzir cada uma de
suas obras à mesma pecha “ruiziana” de ângulos doidos, filtros coloridos e narrativas
ilógicas – como ele deve ter se cansado dessa denominação, como Welles se
cansou de wellesiano ou Antonioni de antonioniano! – há diferenças importantes,
em escala, meio, estratégia e nível de realização entre suas diversas
produções. (Ele também não gostava do inevitável afrancesamento do seu primeiro
nome chileno como “Raoul” – algo que o New York Times e muitos comentaristas
franceses já deveriam ter alcançado a esta altura.)
Não vou tentar uma varredura sinóptica de toda a sua carreira aqui – isso vai exigir um ou três livros volumosos. No entanto, alguns destaques que vêm imediatamente à mente: os primeiros filmes feitos no Chile (1960-1973), cheios de tesouros desconhecidos para muitos de nós, como Nadie dijo nada (1971) e El realismo socialista (1973 ) – que estouro, há três anos, ver em Valdivia seu curta-metragem inaugural, La Maleta (1960), descoberto e restaurado (pelo próprio Ruiz, com acompanhamento sonoro e falado). O indômito Três Tristes Tigres (1968), um drama burguês hiper-realista que já estava muito além de Cassavetes, Dogma e mumblecore combinados – o surrealista Ado Kyrou reconheceu a centelha de gênio imediatamente quando o viu, assim como Serge Daney, quatro ou cinco anos depois, quando Raúl e sua esposa, a diretora-editora Valeria Sarmiento, transferiram-se às pressas para a França em exílio da terrível situação política no Chile.
Isso inicia o período através do qual a maioria de nós encontrou Ruiz no mundo de língua inglesa, geralmente tardiamente: de La vocation suspendue (1977) e A Hipótese do Quadro Roubado (1978) até O Teto da Baleia (1981) e A Cidade dos Piratas (1983) - uma série extraordinária de explosões neobarrocas deslumbrantes, muitas delas decorrentes das condições de filme B e de encomendas de televisão. Ruiz teve sua inspiração de método de trabalho nesses projetos de Edgar Ulmer ou Buñuel no México; a velocidade e os dons de improvisação que aí desenvolveu significaram, muitos anos mais tarde, que poderia sustentar a elaborada mise en scène de Mistérios de Lisboa ao longo de seis episódios inteiros – algo que o pessoal da HBO e Canal + não consegue fazer.
Alguns dos admiradores de Ruiz tendem a parar por aqui, fixando-se nesses trabalhos e na apoteose de suas técnicas selvagens em Treasure Island (1985) ou Life is a Dream (1986). Mas Ruiz, longe de estar exausto, ainda tinha um longo caminho a percorrer. A Coruja Cega (1987), uma adaptação de um romance modernista iraniano clássico de Sadegh Hedayat, integra o ápice de sua carreira, assim como a série muito pouco vista Manoel na Ilha das Maravilhas (1985), a qual surgiu sorrateiramente, sem anúncio mas com legendas, nas madrugadas da televisão australiana nos anos 90. L'oeil qui ment (1992) parecia uma guinada para um “gênero mainstream” (terror-mistério), mas quando isso não deu resultados, Ruiz – como sempre – continuou com seus trabalhos de baixo ou nenhum orçamento e vídeos ensaísticos como Miroirs de Tunisie (1993) em colaboração com Abdelwahab Meddeb.
A parceria de longa data com o
produtor/empresário português Paulo Branco levou a outro tipo de ascensão em
meados dos anos 90, com estrelas glamorosas dentro das tramas labirínticas de Genealogias de um Crime (1997) e,
posteriormente, Ce jour-là (2003). O
filme que realmente fez a diferença no século XXI para Ruiz, quanto à indústria
do cinema, foi O Tempo Redescoberto (1999)
– e precisamos ser eternamente agradecidos a quem teve a ideia maluca de escalá-lo
para a direção deste clássico da literatura francesa. Isso deu a Ruiz a
capacidade de fazer projetos luxuosos e de alto perfil (os de dez milhões de
dólares), como o subestimado Klimt
(2006).
Os trabalhos continuaram fluindo, em todos os níveis – as produções em inglês (no território do thriller, novamente) de A Imagem de um Pesadelo (1998) e Intenções Ocultas (2010), bem como a hermética avançada de experimentos livres como Combat d'amour en songe (2000) com seus múltiplos enredos interconectados aritmeticamente em diferentes tempos e espaços históricos, ou o inebriante Le domaine perdu (2005), ou La maison Nucingen (2008). Trabalhou em instalações para galerias e no teatro, um verdadeiro homem multimídia, dando origem a puras experiências com atores e linguagens como Agathopedia (2008) – todos tipos de atores adoravam Ruiz – e o tributo-em-andamento Responso (2004), que exibiu uma força especial para seu público em Rotterdam.
Ruiz estava sempre à frente da curva: ouvimos muito sobre jogos mentais e filmes de quebra-cabeças atualmente, como se Christopher Nolan estivesse fazendo algo novo e inovador, mas os verdadeiros jogos mentais foram apresentados por Ruiz em As Três Coroas do Marinheiro (1983), Crônica da Inocência (2001) e Três Vidas & Uma Só Morte. E então – mais uma vez obscurecido no Ocidente – o retorno ao Chile como seu Filho Pródigo e Mestre Reverenciado (o orgulho nacional por ele é mais do que palpável por lá): começando com A TV Dante (1992) e indo até Días de Campo (2004), além de duas elaboradas séries de TV (La Recta Provincia [2007] e Litoral [2008]), terminando com La Noche de Enfrente – e, no meio, o inovador “ensaio digital” de formato longo, entre documentário e ficção, da Cofralandes, rapsodia chilena (2002-3), uma maravilha de exploração e inquisição.
Como todo cineasta, Ruiz sempre teve muitos projetos. Ele parecia trabalhar com o princípio outrora bem descrito por Joseph Losey: tenha cinco filmes em andamento e você conseguirá fazer o sexto. E, como Ruiz escrevia assiduamente quase todos os dias de sua vida adulta, em uma escrita hábil sem muita necessidade de reformulação, esses não eram meros rascunhos; ele tinha um roteiro bem desenvolvido em sua gaveta para a maioria deles. Mas ele quase nunca expressou arrependimento por este ou aquele que ficou sem fazer; como uma vez declarou “é estúpido fazer apenas um de cada vez: você tem que criar uma dúzia ou vinte em um” – assim, traços de projetos “fantasmas” conseguiram encontrar seu caminho em cada fenda, cada oportunidade.
Ruiz era um talentoso professor de cinema; vários de seus filmes, incluindo The Golden Boat (1990) e Vertige de la page blanche (2003) surgiram de exercícios de sala de aula de orçamento ultrabaixo. Sempre acreditou, pedagogicamente, na união rigorosa do fazer e do refletir, em serena alternância manhã/tarde; teoria e prática nunca se separaram para ele, embora sempre acrescentasse que, em seu próprio trabalho, só conseguiu realizar uma fração dos experimentos que concebeu.
Experimentação era, de fato, sua
palavra de ordem: nos últimos anos de sua vida na Universidade de Aberdeen, na
Escócia, ele especulou sobre a possibilidade de casar a teoria do cinema com a
neurociência por meio de experimentos no cérebro e seu estranho campo de força
"aura"; isso resultou de seus interesses em todas as coisas
matemáticas e científicas. Ele era uma pessoa incrivelmente lida (enquanto
zombava do pedantismo acadêmico da citação bibliográfica precisa – uma vez ele
me jogou um manuscrito raro de alguém que cruzou seu caminho, dizendo: “se eu
preciso me referir a ele, bem, eu sei que você entendeu”) – e só a Valeria
poderá ter alguma pista, agora, de todos os textos raros e obscuros que ele
adquiriu (ele era um ávido colecionador de livros antigos) e se debruçou em sua
vida.
A importância de Ruiz como teórico do cinema foi, creio eu, criminalmente subestimada e esquecida. Em muitos ensaios ao longo de sua vida (como os escritos para a Positif), na brilhante série de livros Poétique du cinéma para a editora Dis Voir (inacabada, infelizmente, mas com uma terceira parcela parcialmente reconstruída por um editor chileno), e especialmente em seu manifesto "The Six Functions ofthe Shot” Ruiz investigou, com infinito cuidado e paciência, os mistérios e possibilidades de cada ligação no cinema: cortes, movimentos de câmera, sons, gestos, sombras, acontecimentos narrativos e não-narrativos... E, não menos importantes, neste nível, foram as suas peças mais obviamente criativas (novelas, roteiros de cinema, peças e rádio, as “notas para atores” que ele forneceu em todos os seus projetos posteriores, e literalmente centenas de entrevistas aprofundadas que ele deu em muitas línguas): Ruiz nunca parou de elaborar, provocar, refinar e estender suas ideias muitas vezes extraordinárias (e apenas aparentemente caprichosas). Sua vida foi um contínuo "experimento mental", como dizem os lógicos.
Sinto-me honrado e privilegiado por ter conhecido Raúl um pouco, entre sua visita à Austrália em 1993 e seu falecimento. Ele era um cara maravilhoso, generoso e infinitamente hospitaleiro (como todos os que já visitaram sua casa em Belleville testemunharão), e seu relacionamento com Valeria ao longo da vida foi algo maravilhoso de se ver. Seu senso malicioso de diversão e risos, uma vez que você tinha sua confiança, eram verdadeiramente contagiantes. Estar com ele sempre foi um prazer e trouxe revelações inesperadas a cada curva da estrada ou da conversa: desde sua repentina confissão para mim que “o grande segredo de um bom cinema é este: você deve sempre cozinhar para o seu elenco e equipe!”, para a admissão relutante de que a razão pela qual ele não via grande coisa nos livros sobre cinema de Gilles Deleuze (e ele deveria) é que ele e o filósofo uma vez entraram em uma violenta briga de socos depois de um acalorado desentendimento intelectual.
Uma raridade entre os cineastas, Raúl realmente gostava dos críticos e encorajava seu impulso criativo (como com Benoît Peeters e Pascal Bonitzer) – embora também fosse sensível às suas capacidades de inconstância e facilmente se machucava quando sentia que tinha sido “dispensado” sem cerimônia por eles (“largado por Kiarostami!”, uma vez contou em privado). Em parte por isto, ele desenvolveu, pelo menos a partir dos anos 80, um senso divertido de moda cultural: “A cada cinco anos, sou abraçado por ser um criador de jogos” ele me disse secamente, “e então, pelos nos próximos cinco anos, sou castigado por não ser sério e irrelevante. Aí recomeçamos ”. Ruiz sabia como esperar seu tempo, surfar as ondas e concentrava-se no que importava para ele: ludicidade séria, seriedade lúdica. Ninguém no cinema trabalhou essa dialética melhor do que ele.
Mas se eu tivesse que escolher
uma anedota (entre tantas) que melhor caracterizasse o calor e o espírito
genuinamente democrático e aberto de Raúl seria de sua retrospectiva no
Festival Internacional de Cinema de Rotterdam de 2004, quando eu estava ao lado
dele em um foyer lotado. De repente, ele avistou e acenou para um cara
distante; eles se aproximaram, se abraçaram calorosamente, conversaram brevemente
e se separaram na multidão. Quem era ele (eu perguntei), um ator, um produtor
de um de seus filmes? Não: “Ele projetou meus filmes aqui em Rotterdam vinte
anos atrás”. Para Raúl, um bom projecionista era tão importante, tão valioso
quanto qualquer um que contribuiu para o seu trabalho, não menos do que um
Malkovich ou uma Deneuve , um Jorge Arriagada (compositor) ou um Sacha Vierney
(diretor de fotografia). Que memória ele tinha – e que sentido profundamente
ético, exatamente onde mais importa, na vida cotidiana e na história vivida
desse cotidiano.
Conheci Raúl quando ele tinha 52 anos – idade que estou prestes a atingir enquanto escrevo estas linhas. (Lembro-me instantaneamente da bela frase em Poétique du cinéma do seu “espanto” com as regras bizarras de contar histórias de Hollywood que “são tão jovens hoje quanto eu era” quando ele as encontrou pela primeira vez em um manual de roteiro dos anos 1950). Naquela época, ele estava começando a sentir uma ansiedade de que só posso me identificar totalmente nesta altura: a sensação de que o trabalho de sua vida foi espalhado, muito dele perdido, e fora de seu controle ou alcance. Ele estava procurando alguém que pudesse ser tanto arquivista como agente por seu trabalho em todas as mídias. Havia desespero em sua voz e em seus olhos quando falava disso – e esse era um sintoma atípico vindo desse homem sempre elegante, controlado, externamente modesto (“casto”, ele diria com um sorriso).
Felizmente, a história vindoura da tecnologia voltou-se em seu benefício: em DVD – que acredito que Raúl passou a considerar seu arquivo – tantas obras, não vistas por décadas, voltaram: O Território (1981), Point de fuite (1984), curtas significativos… e com um cenário ativo menos legal para download on-line em outros resgates. Resta muito mais para cobrir e explorar na obra de Ruiz; a maioria dos relatos mal chega à ponta do iceberg. Mas também há (acredito) duas fundações trabalhando para preservar seu legado; e uma grande retrospectiva marcada para a primavera de 2016 na Cinemateca francesa.
Em todo o tempo que o conheci, e também com frequência em seus escritos, Raúl voltava a uma experiência peculiarmente chilena que o fascinava, o fenômeno do “fantasma do meio-dia”. Ele recontaria esse conto típico e iterativo com a maior convicção e sinceridade: caminhando por uma rua chilena, ele se encontraria com um velho amigo de 40 anos atrás. Falariam de banalidades: o semáforo não funcionava, o aumento do preço do leite, o buraco na ponte próxima. Em seguida, eles se separavam – com Raúl percebendo, alguns minutos depois, que seu amigo já estava morto há muito tempo.
Este é o fantasma do meio-dia, Raúl explicou: nada como o fantasma gótico das sombras que vinga os erros, restaura os reprimidos ou persegue os vivos com uma força maligna. O fantasma do meio-dia se parece com você ou eu, na luz do dia, e é tão aborrecido quanto nós. Esse fantasma é uma figura para a outra dialética-chave no cinema de Ruiz: a interação de mistério e ministério, como ele descreveu – coisas sublimes que inevitavelmente se tornam mortalmente comuns, e coisas comuns que se tornam repentinamente, estranhamente sublimes.
Espero encontrar Raúl Ruiz, fantasma ao meio-dia, algum dia na rua, ou em um foyer de cinema lotado. Ele estará mais uma vez caminhando com calma, as mãos cruzadas atrás das costas. E estará dizendo, como tantas vezes fazia e fará: “Morrer não é grande coisa”.
20 de agosto de 2011.
Todas as imagens são de “Mistérios de Lisboa” (2010). Traduzido do
inglês por Giovanni Comodo. Optamos por manter as datas dos filmes como indicadas
pelo autor, mas utilizamos os nomes conforme o IMDB. Retirado de http://www.filmcritic.com.au/essays/ruiz.html
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