por Giovanni Comodo
Os anos 90 foram tempos
estranhos. O fim da Guerra Fria, a hegemonia do capitalismo, as fronteiras
nacionais apagadas pela globalização, o horário comercial que passou a valer
nas 24 horas de cada dia, a ascensão da internet em larga escala, do celular e
de equipamentos que se tornaram indispensáveis à vida moderna. Novas
facilidades e novas ansiedades, paranoias, crises e perigos. “Enigma do Poder”
captura a pulsação do seu tempo e consegue ultrapassá-lo – ou quem sabe somos
nós, ainda presos em tempos estranhos.
Nesta década nos Estados Unidos, não
houve diretor mais indomável e habilidoso que o nova-iorquino Abel Ferrara.
Começou no cinema pornô e na violência do exploitation
na virada dos anos 70 para 80, mas é na década posterior que atinge a maior
potência de sua filmografia. Amplamente em sintonia com a cidade de Nova York,
seus atores e seus ritmos – poucos conseguiram uma conexão com o hip hop e o
rock como ele – Ferrara conseguiu imprimir em seus filmes também o submundo da
vida na metrópole, sua violência e seus vícios, em filmes como “Rei de Nova
York” e “Vício Frenético”.
“Enigma do Poder” encerra sua
década de ouro e vertigem, uma produção pequena e conturbada que ganhou o
status de maldita.
Passado em um futuro próximo,
indefinido, o filme baseia-se em um conto do quase-onisciente escritor William
Gibson, que acompanha dois golpistas que convocam uma prostituta para seduzir
um cientista (um geneticista, “designer
de vírus”). No processo de “moldá-la”, apaixonam-se pela garota e são pouco
depois superados por ela até caírem em desgraça, na solidão do New Rose Hotel e
seus quartos-caixões. Um Pigmaleão cyberpunk com thriller erótico em meio a intrigas corporativas
por todo globo, dominado por transações incessantes, em uma narrativa que vai
se fragmentando e se tornando mais rarefeita quanto mais se acelera a cama de
gato do trio principal – vivido por Christopher Walken, como o mentor, Willem
Dafoe, o tutor, e Asia Argento como a obra que toma vida e pensamentos próprios.
Ferrara é um diretor que consegue
sempre tirar o mais visceral de seus atores. Walken (até então seu maior
parceiro) faz de Fox um trambiqueiro que desconhece estar nas últimas, com seus
ternos amarrotados e bengala, um dançarino que já não consegue se movimentar,
sempre com algo de suor e desespero em sua pose de conhecedor e estrategista. A
ele, só restará um salto no vazio, como em uma saída de um número musical
antigo em chave macabra e súbita. Dafoe (que inicia aqui sua grande parceria
com Ferrara), interpreta seu X entre o domínio, a fragilidade e a fome – por
dinheiro, por mulheres, por uma saída daquele mundo. E há Argento como Sandii,
em exuberância, com um olhar que sempre demonstra uma inteligência em
movimento, dominando a imagem e todo o filme em si – também ela fez seu
triângulo de amor e de poder nos bastidores entre Ferrara e Dafoe e inclusive
devolveu “Enigma do Poder” com seu próprio filme, o documentário “Abel loves
Asia” (1998) – tal como Sandii supera sua dupla? A fusão constante entre
realidade, narrativa, sujeito e personagem que toma o filme também esteve em
seu processo de feitura, muitas vezes selvagem.
Tudo entra em fusão e em colapso.
As imagens também. Película, vídeo, digital, cinema, televisão, portáteis,
câmeras de vigilância, linguagens e interfaces se somam – assim como a faixa de
áudio, repleta de sobreposições e defasagens. Caos e magma imagético e
informativo, de passado e de presente. Nesta adição incessante do mundo do
capitalismo tardio e do consumo, Ferrara corta uma orgia e insere imediatamente
Argento em um museu. O que é uma obra de arte, afinal? Qual imagem? Qual
experiência?
Desta forma, se vivemos já há
algum tempo em um mundo de imagens aceleradas e sem fronteiras – e a presença
de El Greco nos faz retomar o maneirismo que vimos em sessões anteriores –,
“Enigma do Poder” tem outra volta do parafuso a nos oferecer: é também um
cinema que propõe carnalidade absoluta, para além das figuras e superfícies. A
tatuagem no ventre de Argento, as costas arranhadas de Dafoe: são os corpos de
Argento e Dafoe que sustentam todo o filme rodado em meia dúzia de quartos e
bares sem personalidade, não-lugares contemporâneos por excelência, e dão a ele
vida e individualidade.
Ferrara é um realizador mais que interessado em
explorar o apocalipse (individual e coletivo) em todas as obras, buscando
redenções e resistências - possíveis ou
não. É no contato com o próximo – por mais fracassado que seja – que parece
haver a única possibilidade de saída, parece dizer. Depois dos apocalípticos
anos 1990 (e dos nossos últimos dois anos), Ferrara, o cinema e nós continuamos
aqui. Dividindo uma sala de cinema, juntos.