sábado, 9 de abril de 2022

Ferrara X 90

 

por Giovanni Comodo

Os anos 90 foram tempos estranhos. O fim da Guerra Fria, a hegemonia do capitalismo, as fronteiras nacionais apagadas pela globalização, o horário comercial que passou a valer nas 24 horas de cada dia, a ascensão da internet em larga escala, do celular e de equipamentos que se tornaram indispensáveis à vida moderna. Novas facilidades e novas ansiedades, paranoias, crises e perigos. “Enigma do Poder” captura a pulsação do seu tempo e consegue ultrapassá-lo – ou quem sabe somos nós, ainda presos em tempos estranhos.

Nesta década nos Estados Unidos, não houve diretor mais indomável e habilidoso que o nova-iorquino Abel Ferrara. Começou no cinema pornô e na violência do exploitation na virada dos anos 70 para 80, mas é na década posterior que atinge a maior potência de sua filmografia. Amplamente em sintonia com a cidade de Nova York, seus atores e seus ritmos – poucos conseguiram uma conexão com o hip hop e o rock como ele – Ferrara conseguiu imprimir em seus filmes também o submundo da vida na metrópole, sua violência e seus vícios, em filmes como “Rei de Nova York” e “Vício Frenético”.

“Enigma do Poder” encerra sua década de ouro e vertigem, uma produção pequena e conturbada que ganhou o status de maldita.

Passado em um futuro próximo, indefinido, o filme baseia-se em um conto do quase-onisciente escritor William Gibson, que acompanha dois golpistas que convocam uma prostituta para seduzir um cientista (um geneticista, “designer de vírus”). No processo de “moldá-la”, apaixonam-se pela garota e são pouco depois superados por ela até caírem em desgraça, na solidão do New Rose Hotel e seus quartos-caixões. Um Pigmaleão cyberpunk com thriller erótico em meio a intrigas corporativas por todo globo, dominado por transações incessantes, em uma narrativa que vai se fragmentando e se tornando mais rarefeita quanto mais se acelera a cama de gato do trio principal – vivido por Christopher Walken, como o mentor, Willem Dafoe, o tutor, e Asia Argento como a obra que toma vida e pensamentos próprios.

Ferrara é um diretor que consegue sempre tirar o mais visceral de seus atores. Walken (até então seu maior parceiro) faz de Fox um trambiqueiro que desconhece estar nas últimas, com seus ternos amarrotados e bengala, um dançarino que já não consegue se movimentar, sempre com algo de suor e desespero em sua pose de conhecedor e estrategista. A ele, só restará um salto no vazio, como em uma saída de um número musical antigo em chave macabra e súbita. Dafoe (que inicia aqui sua grande parceria com Ferrara), interpreta seu X entre o domínio, a fragilidade e a fome – por dinheiro, por mulheres, por uma saída daquele mundo. E há Argento como Sandii, em exuberância, com um olhar que sempre demonstra uma inteligência em movimento, dominando a imagem e todo o filme em si – também ela fez seu triângulo de amor e de poder nos bastidores entre Ferrara e Dafoe e inclusive devolveu “Enigma do Poder” com seu próprio filme, o documentário “Abel loves Asia” (1998) – tal como Sandii supera sua dupla? A fusão constante entre realidade, narrativa, sujeito e personagem que toma o filme também esteve em seu processo de feitura, muitas vezes selvagem.

Tudo entra em fusão e em colapso. As imagens também. Película, vídeo, digital, cinema, televisão, portáteis, câmeras de vigilância, linguagens e interfaces se somam – assim como a faixa de áudio, repleta de sobreposições e defasagens. Caos e magma imagético e informativo, de passado e de presente. Nesta adição incessante do mundo do capitalismo tardio e do consumo, Ferrara corta uma orgia e insere imediatamente Argento em um museu. O que é uma obra de arte, afinal? Qual imagem? Qual experiência?

Desta forma, se vivemos já há algum tempo em um mundo de imagens aceleradas e sem fronteiras – e a presença de El Greco nos faz retomar o maneirismo que vimos em sessões anteriores –, “Enigma do Poder” tem outra volta do parafuso a nos oferecer: é também um cinema que propõe carnalidade absoluta, para além das figuras e superfícies. A tatuagem no ventre de Argento, as costas arranhadas de Dafoe: são os corpos de Argento e Dafoe que sustentam todo o filme rodado em meia dúzia de quartos e bares sem personalidade, não-lugares contemporâneos por excelência, e dão a ele vida e individualidade.

Ferrara é um realizador mais que interessado em explorar o apocalipse (individual e coletivo) em todas as obras, buscando redenções e resistências -  possíveis ou não. É no contato com o próximo – por mais fracassado que seja – que parece haver a única possibilidade de saída, parece dizer. Depois dos apocalípticos anos 1990 (e dos nossos últimos dois anos), Ferrara, o cinema e nós continuamos aqui. Dividindo uma sala de cinema, juntos.

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