por Jacques Rivette [1]
Otto Preminger, autor de filmes, se é que isto existe, viu-se há uma dúzia de anos numa situação paradoxal e provavelmente única: a de ter feito, em seus inícios, um filme tão perfeito que, de certo modo, jamais poderia esperar fazer melhor. Laura [1944] não tem nada do zigue-zague relampejante de um Cidadão Kane, desde o qual longas trovoadas não cessam de reverberar ao longe; ele parece mais uma bola de cristal, tão pura que poderíamos recear estarmos diante da mais imaterial das bolhas de sabão: mas há muito nos tranquilizamos. Não sei se Preminger é dotado da inteligência discursiva dos feirantes que recorrem a mil truques em seu palavrório para disfarçar o pífio conteúdo de sua barraca; no mínimo ele possui uma de outra espécie, e mais útil nesse ofício: uma inteligência artesanal, que faz dele o mais hábil de nossos mestres de obra, sabendo avaliar seus materiais e nem sempre recusando, segundo o célebre conselho, os medíocres, mas utilizando-os no pleno conhecimento da sua mediocridade.
Talvez seja esse um lado do segredo que lhe permitiu sobreviver ao primeiro sucesso: fugir da perfeição; porque ele precisa também, à sua maneira, perseguir uma certa “qualidade da imperfeição”. Matéria ingrata, apesar das aparências, a desse fraco romance de pensionista, ao qual faltava tudo, tanto a alma quanto o estilo, quero dizer, afora os de segunda mão; para dar um corpo a essa obra-prima do pastiche, era preciso primeiro saber reinventar tudo, com a obrigação suplementar de não romper o primeiro fio narrativo: numa palavra, devolver o tom da novidade e da descoberta, ou mesmo da juventude, àquilo que deles mais carecia. Esta é a arte de Preminger.
Sejamos francos: quase todos os seus filmes se fundem no desafio, ou mais simplesmente, na trapaça comercial, ou nos dois ao mesmo tempo; o teste e o escândalo têm, para ele, atrativos irmãos. Mas não deve ele também sistematicamente se obrigar a procurar a dificuldade, não deve se proteger de uma facilidade tão inquietante que o deixa às vezes, ainda aqui, a dois dedos de lhe sucumbir?
Não creiam que advogo contra mim: esses dois dedos de distância são ainda o bastante para deixar passar facilmente a mãozinha de nossa musa, e a décima da família, se necessário, só precisa de um décimo de segundo, ou de um vigésimo quarto, para transformar o gesto mais banal, mais comum, num milagre da graça. A arte da mise-en-scène é, em primeiro lugar, uma arte de instaurar o espaço e o tempo desejados [2]: proporções perfeitas do quadro, arabescos das atitudes e o papel inteiro de Jean Seberg, tudo nos conduz a retomar em tom menor a afirmação final de Bernanos: “Tudo é graça”. Essa graça é justamente daquelas que são eficazes, e ela acaba por tocar até os fantoches mais rebeldes ao seu encanto: nossos Juvenais encontrarão aqui o exemplo de uma sátira sem agressividade nem feiura, de uma crítica sem ilusões mas sem maldade, e ainda mais acirrada por deixar sempre as chances à vítima e, muito desejosa de vê-la com seus próprios olhos, ainda por cima lhe entregar o que ela chama de beleza – e que é, com efeito, sua beleza.
A censura mais engraçada é provavelmente aquela que, apesar de reconhecer a fidelidade da adaptação, acusa nosso caro Otto de mostrar diretamente demais e sem pudor aquilo que o romance encobria com suas pequenas frases de inseto roedor: é como censurar Preminger por ter substituído as mentiras da má literatura pela verdade do grande cinema, sendo este a arte da linha reta, ou da curva mais firme, a mais regular [3]. A invenção que explode em cada plano desse filme é primeiramente um certo gênio do atalho: a arte do desenhista (e a passagem de Angel Face [1952] a Bonjour Tristesse é a de um esboço ao afresco) é saber quais traços são essenciais, quais devem ser acentuados ou eliminados, quais devem ser às vezes inteiramente inventados para completarem um rendilhado confuso; a arte do cineasta é a de saber quais são os elementos, de um espetáculo ou de um fato, indispensáveis ao equilíbrio da figura, isto é, da cena tal como inscrita em seu lugar definitivo no filme. Se essa noção de invenção, na qual se resume toda a grande arte, lhes parece confusa, digamos que ela é precisamente o que separa um Preminger do autor, por exemplo, de Kanal [4], trabalho de escola em que o cuidado é sempre discernível, e em que o assunto mais alto vira um desenrolar retórico; se é bom aplicar um método, que seja sem ostentar a aplicação.
A facilidade passa facilmente por superficial; é o que faz sua força, pois não se desconfia dela; ela toca o peito antes que ele apareça fendido. Se Preminger, que talvez jamais tenha escrito uma só linha de seus scripts, é porém plenamente digno do belo título de autor de filmes, é pelo gênio singular que lhe permite encarnar o espírito nas criaturas mais teóricas, sejam elas as medíocres marionetes de uma pequena comédia licenciosa ou de um romance policial qualquer, sejam os espectros altivos de Bernard Shaw. Carne fraternal, animada por uma mesma paixão, por um mesmo gosto do absoluto, seja o da infelicidade, o da queda ou o da revolta; heróis irmãos de seu Pigmaleão, todos seduzidos igualmente pela aposta, a mesma vontade de negar o impossível, prestes a pagar o preço do desafio: donde sua tristeza, outro nome da lucidez.
Os nomes reunidos de Ophuls, Mizoguchi, Astruc, Preminger (ophulsiana é a abertura; astruciana, a farândola – ou o inverso –; mizoguchiano, o último plano) definem uma nova noção do cinema “puro”, jogo de espelhos em que o objeto, longe de ser destruído, revela e superpõe todos os seus rostos. Levando nossa arte ao ponto a que Picasso conduziu a pintura, essa ideia do cinema moderno é também um absoluto, ao qual tudo pode ser sacrificado. Eis, aliás, o perigo: eis por que, por maiores que sejam estes cineastas, o único que permanece exemplar é Rossellini, que, possuindo também este segredo, ousa sacrificá-lo a outra coisa, para servir àquilo que redireciona [5] seu poder de tudo submeter às suas metamorfoses.
Notas:
1 “Sainte Cécile”, Cahiers du Cinéma, n.82, abril de 1958, pp. 52-54. Traduzido do francês por Íris Araújo e Mateus Araújo e extraído do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”.
2 No original, “l’art de la mise-en-scène est d’abord un art de mise en place, ou en temps, voulus”. [N.d.T.]
3 No original, “... la mieux soumise aux flancs du vase”. [N.d.T.]
4 Kanal (1957) era o segundo longa-metragem de Andrzej Wajda. [N.d.T.]
5 No original, “tire ailleurs”. [N.d.T.]
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