por Vera Lúcia de Oliveira e Silva
Na investigação da alma humana,
muitas vezes Freud prestou homenagem aos artistas pela sua admirável capacidade
de chegar, de forma imediata, a um saber que, só com muito trabalho, podia ser
acessado pelos que atravessam uma análise.
Em diversos textos, depois de
assentar um conceito laboriosamente construído na clínica analítica, o pai da
psicanálise introduz um fragmento de poema, onde aquele saber já estava
declarado pelo seu autor.
De fato, é surpreendente que a
produção artística tantas vezes ponha às claras conceitos analíticos que só
foram construídos a partir de uma investigação atenta e de uma intenção de
formalizar rigorosamente os achados clínicos. Mais surpreendente ainda que, às
vezes, o próprio artista tenha objeções conscientes - muito duras e muitas
vezes pertinentes - à psicanálise.
Dando fé ao que diz Pedro Faissol,
este é o caso de Eugène Green. Lemos no artigo do Pedro, Os sinais no cinema
de Eugène Green, publicado na Folha de São Paulo em 2014:
A
busca pelo conhecimento deve ser travada pelo homem, não no interior de seu
inconsciente (o que explica seu desprezo - de Eugène Green - pela psicanálise),
mas na objetividade contingente da natureza.
Este enunciado até mostra que a
psicanálise pode ser desprezada (não é proibido), mas a frase em si em nada
contradiz a psicanálise: a busca pelo conhecimento deve ser travada pelo homem,
não no interior do seu inconsciente, mas na objetividade contingente da
natureza.
Quem fala em “busca pelo
conhecimento” está falando em natureza, ciência e leis universais – e a
psicanálise não é uma ciência, não está interessada em conhecer outra natureza
que não a do homem e, avessa ao universal, visa tão somente o mais particular
de cada sujeito, ou seja, o inconsciente individual, construído naquela
história em particular.
Com ou sem desprezo, fato é que a
obra de Eugène Green poderia ser usada para ilustrar o texto freudiano em mais
de um conceito fundamental, o que só faz ecoar o que Freud já dizia dos
artistas há um século.
De memória vou evocando o lobisomem,
de O nome do fogo, e o ogro, de O mundo vivente, como metáforas
do “Isso”, pomposamente designado por “Id” na tradução inglesa; o poder da
Cultura, manifesto na transformação de um cão em leão pela incidência do
significante; Sarah, de A ponte das artes, encarnando o quadro clínico
da Melancolia; a mesma Sarah, em seu Sonho de Angústia; intelectuais franceses,
neste mesmo filme, protagonizando a estrutura da Perversão, no que ela tem de
mais sintomático – a falta de abertura ao Outro... Se eu consultasse o conjunto
da obra de Green numa busca intencional, as ilustrações certamente se
multiplicariam.
***
A psicanálise não é para todos. Nem
todos precisam dela: só os que sofrem demais e não encontram alívio nem na
ciência, nem na religião, nem na magia. E nem todos podem atravessá-la, pois há
estruturas clínicas não-analisáveis. Situo os artistas no primeiro grupo, o daqueles
que não precisam dela.
Aqui ficam aqueles que, no
instante de declarar a própria posição no mundo, tiveram o que Freud chama de coragem
moral e puderam configurar sua estrutura já despida dos ideais que afastam o
“Eu” consciente do si-mesmo.
A manutenção de um certo vínculo
com a própria verdade proporcionaria ao sujeito alguma distância dos modos de
sofrimento da alma – Inibição, Sintoma e Angústia – pavimentando um caminho
para a Sublimação da miséria neurótica em infelicidade comum, onde são
possíveis o amor e o trabalho.
Assim, haveria sujeitos livres
para se dedicar à produção artística, como um dos recursos do Simbólico para se
lidar com o Real. E isso é o que Pedro Faissol diz que Eugène Green faz em seu
cinema. Cito do seu artigo:
... Green
oferece uma obra marcada pela concisão, pelo bom humor e pela força da palavra.
Para apreciá-la, não é preciso erudição ... A recompensa é alta: a
clarividência.
Pedro segue, citando Foucault em As
palavras e as coisas, sobre a episteme do homem renascentista (e quem diz
“renascentista” num texto dedicado a Eugène Green pede que a gente levante as
orelhas):
Diferente
da disposição binária dos signos, tal como foi difundida no século 17, definida
pela ligação do significante ao significado, as "assinalações" no
século 16 correspondiam ao terceiro vértice de uma relação epistemológica
ternária.
Mas por que
essa mediação se o mundo visível já se apresentava por inteiro ao nosso
conhecimento? A importância desse terceiro elemento, que existia desde o
estoicismo sob a denominação de "conjuntura", se deve à distância
entre as duas outras partes.
A busca do
conhecimento estaria, assim, intimamente ligada à decifração de sinais.
Um pouco à
maneira do que se dava na epistemologia renascentista, e muito na contramão do
cinema autoral contemporâneo, Eugène Green faz hoje filmes que solicitam de seu
espectador um investimento intelectual na decifração de semelhante categoria de
signos. Em seu primeiro filme, "Todas as Noites" (2001), por exemplo,
Green recoloca o seu espectador diante de uma rede de sinais luminosos cuja
leitura fará com que compreenda o sentido do filme.
E sempre
haverá um sentido, não devemos perder isso de vista: como na epistemologia
renascentista, a interpretação corresponde a uma etapa fundamental da busca
pelo conhecimento. A realidade ficcional torna-se para o espectador de cinema mais
ou menos o que o mundo sensitivo é para o homem místico: campo de ação para a
busca de um sentido. Nada acontece por acaso, a vida não é um "acidente da
matéria". Tudo tem um propósito, embora nem sempre se ofereça a nós
passivamente.
E assim Pedro Faissol vai alinhando
argumentos que a psicanálise, como eu a apreendo, poderia subscrever – mesmo
sabendo-se que uma análise acaba por levar ao absoluto sem-sentido do gozo,
esse modo enigmático de satisfação.
***
Voltando ao título desde artigo – O
artista, esse “analista” involuntário.
Se um analista é aquele que, por
meio da Interpretação – entendida como intervenções intencionais, na direção da
cura, que produzem novas associações por parte do analisante – então Eugène
Green pode ser incluído exatamente aí, tomando as palavras do próprio Pedro
Faissol:
... os
sinais espalhados por Eugène Green em seus filmes são como espelhos do
inteligível, cujos reflexos (perfeitamente legíveis) se apresentam ao homem
como pura exterioridade.
Esses
sinais, de fato, nunca se dão por inteiro. Eugène Green deixa algumas brechas
pelo caminho, algumas pistas inacabadas. Cabe ao espectador se empenhar
ativamente para completar o que não lhe é inteiramente dado. Assim, não lhe
restará outra forma de se relacionar com o filme senão pela fé. O espectador
deve ser capaz de decifrar esses signos especiais à maneira de um vidente que
busca nas sementes das plantas, ou ainda nas constelações do firmamento,
reflexos visíveis de um mundo espiritual invisível. É o cinema da
clarividência.
O texto do Pedro, referido ao
Eugène Green, para mim está falando de Transferência, de Livre Associação, de
Atenção Flutuante, de Interpretação e de Trabalho Analisante – conceitos
próprios do trabalho de uma análise.
O mesmo texto também pode ser
remetido ao conceito de Ma, recentemente citado em nossas conversas no
Clube do Filme, lindamente descrito pela nossa colega Marcia Drehmer De Mello e
Silva – e generosamente cedido para publicação neste artigo (ela usou o Ma
para falar de conceitos psicanalíticos em um trabalho inédito):
Ma é um
princípio intrínseco à cultura nipônica, que se expressa nas artes, conjugando
conceitos sobre tempo e espaço. Dentre os múltiplos significados que possui,
destaco alguns, como o de intervalo entre as coisas, espaço entre os objetos,
silêncio entre os sons ou quietude entre as ações. Refere, portanto,
espaço-entre, espaço negativo, intervalo, pausa. Também pode ser compreendido
como espaço de possibilidade e disponibilidade. E como noção de “espaços
intervalares, que desconstrói o pensamento dual e aposta na possibilidade de um
espaço intermediário que pode ser concomitantemente as duas coisas". Para
o arquiteto Arata Isozaki, “é um lugar onde uma vida é vivida, um espaço que só
começa a fazer sentido quando existem indicações de vida humana." Para
ele, “é um alinhamento de sinais. Um lugar vazio onde todos os tipos de
fenômenos aparecem, passam e desaparecem, onde vários símbolos de arranjo de
fenômenos e formas altamente elásticas surgem". Ma
é o elemento que mostra uma outra forma de ver e conceber o mundo, pautado pela
indeterminação e pela incompletude. Um vazio que não remete à ausência de algo,
mas está repleto de energia e potência, existindo como possibilidade.
***
Não posso negar que corresponde a
uma licença poética chamar um artista de analista, já que, de onde eu venho, o
analista não existe
Alguém apenas pode ser nomeado
analista num tempo verbal muito particular (terá sido, terá havido...
um analista), caso tenha dirigido uma cura reconhecida, ao final, como uma
análise, ou seja, como a produção de uma diferença absoluta no modo de se estar
no mundo.
Também está claro que ver um
filme, mesmo de Eugène Green, não corresponde e nem pode corresponder a uma
análise - mas não por uma falta conceitual do cineasta.
Agora, quando eu digo “involuntário”,
parece-me que estou sendo muito precisa.
Porque Eugène Green só quer
dirigir seu filme: ele não quer dirigir nenhuma cura (que é o esperado de
um analista), nem quer dirigir o sujeito (o que não passa de terapia por sugestão
grosseira). Ele não está animado pelo desejo-de-analista.
Como seus filmes demonstram o
quanto está livre o seu caminho para a alma humana e o quanto de associações
ele convoca o espectador a fazer – se quiser e se puder – evoco um verso de Fernando
Pessoa/Álvaro de Campos no poema Mestre, meu mestre querido!
... seguro
como um sol, fazendo o seu dia involuntariamente...
e reafirmo o título que escolhi
para este texto: O artista, esse “analista” involuntário.
Curitiba, 4 de agosto de
2023.
Coletivo Atalante / Clube
do Filme.