sábado, 14 de outubro de 2023

Clube do Filme: Correspondências + O Filho de Joseph

O Clube do Filme do Atalante continua com seu novo ciclo: o Cinema de Eugène Green.

De volta para a quarta quarta-feira do mês, nos reunimos para uma discussão de um filme e textos relacionados, agora abordando a obra de um dos cineastas mais interessantes e encantadores deste século.

Em outubro, um programa duplo: "Correspondências" (2009, 36 min.) e "O Filho de Joseph" (2016, 113 min.).

Nosso encontro será no dia 25 de outubro, quarta-feira, às 19h15, via Jitsi, ao vivo, entrada livre e gratuita.

O movimento mais próprio do cinema de Green é levar o ser ao limite do desaparecer e o sagrado ao limite do aparecer. Se a experiência dos seus filmes é tão epifânica, é sobretudo porque o próprio filme é o circuito pelo qual o ser e o divino estão a ponto de se confundirem. Sempre segundo um método rigoroso para que a obra não simplesmente faculte o entendimento, mas manifeste sensivelmente a presença da ordem divina através de procedimentos do cinema. Seja numa imagem flutuante do céu ou no rosto inexpressivo de um personagem. Seja no conteúdo da fala reagindo à forma cabal do personagem expressá-la, e vice-versa, indefinidamente. Em cada momento, uma relação tão absoluta que libera continuamente esta força metafísica que assombra todos os princípios do cinema de Green.
- Rodrigo de Abreu Pinto, em um dos textos recomendados para leitura deste mês.

Os filmes encontram-se disponíveis aqui. Qualquer problema, só avisar.

Textos recomendados para leitura:

A) Crítica de "O Filho de Joseph" por Francisco Noronha, disponível aqui.

B) Entrevista com Eugène Green, da época de "O Filho de Joseph", por Diego Olivares, disponível aqui.

C) "A Metafísica do cinema de Eugène Green" por Rodrigo de Abreu Pinto, disponível aqui.  

Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Devido a limitações de tempo do Meet, voltamos com nossa sala do Jitsi. O Jitsi dispensa downloads de aplicativos e senhas no PC, mas caso acesse pelo celular, recomendamos o download do aplicativo (gratuito).


Serviço:

Clube do Filme:"Correspondências" (2009) e "O Filho de Joseph" (2016) (2018), de Eugène Green
Dia 25/10 (quinta-feira)
Das 19h15 às 21h30
Via Jitsi:
https://meet.jit.si/ClubedoFilmeAtalante
ENTRADA FRANCA

Coordenação e mediação: Giovanni Comodo
Realização: Coletivo Atalante

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Le fils de Joseph (2016), de Eugène Green

 por Francisco Noronha

Curioso ovni, este, o que passou na sala 3 do Cinema São Jorge, desde logo pelo modo como se constitui num puzzle artístico onde cinema, pintura e música clássica se interpenetram, nunca pretensiosamente mas sempre com um propósito substancial (ainda que enigmático). Quando o filme terminou, a minha companhia disse que era “muita manteiga para pouco pão” (ou ao contrário, o ditado não consta do Google e a minha avó, sempre cirúrgica neste tipo de dúvidas, não atende o telefone), mas o certo é que, já cá fora e enquanto íamos comentando o filme, o slogan de Fernando Pessoa ganhou força – o último filme de Eugène Green (dramaturgo, além de cineasta) é um daqueles objectos que primeiro se estranham e depois se entranham, imagens e sons que ficam a reverberar nas nossas cabeças no caminho para casa. Essa estranheza deve-se, por um lado, à bressionana direcção de actores e, por outro, por mais paradoxal que isto seja relativamente à filosofia dos modèles de Bresson, à coreografia teatral que Green imprime às cenas e aos diálogos, filmando muitas vezes duas personagens em plano americano, de frente uma para a outra, falando com um ritmo e uma erudição absolutamente anti-naturalistas.

É isso que, de resto, confere um humor insólito ao filme e faz dele uma grande “comédia bíblica” (além das alfinetadas aos críticos), mais concretamente, uma alegoria da história do nascimento de Jesus Cristo situada na nossa contemporaneidade, com Vincent (Victor Enzenfis) no lugar de Jesus e Marie e Joseph a interpretar as correspondentes figuras bíblicas (e nem falta o burro, que aparecerá já quase no final do filme). E quem é, afinal, Oscar Pormenor (Mathieu Amalric), o pai que rejeitou Vincent, o homem que inseminou Marie? Será Deus, na contemporânea versão do Dinheiro-Todo-Poderoso? E se não for… quem é Deus, então? A sua eventual ausência do filme quererá sugerir a sua não existência? Joseph afirma que não foi Deus quem ordenou a Abraão que matasse o seu filho; que foi Abraão quem tomou essa decisão e que foi Deus, sim (e não um Anjo), que lhe disse para não o fazer. Com excepção desta “tese”, nada é explicativo ou assertivo no filme, tudo simbólico e especulativo, muito a lembrar o P’tit Quinquin (O Pequeno Quinquin, 2014) de Bruno Dumont (ele próprio um autor tributário de Bresson) no que de teológico ele carrega: a culpa (logo no primeiro roubo, só por “desporto”, de Vicent ressoando o Pickpocket de Bresson), a vingança e a violência (a degolação que Vincent, iluminado por uma imagem alva, aborta no último instante), a misericórdia, a redenção (a ilibação de Pormenor ao seu filho perante a presença da polícia).


Texto parte de “IndieLisboa 2016: Cinema, em ti cremos”, publicado em 28 de abril de 2016 e disponível em https://apaladewalsh.com/2016/04/indielisboa-2016-cinema-em-ti-cremos/. Mantivemos a grafia como no original de Portugal.

domingo, 1 de outubro de 2023

William Friedkin: A moral amoral

 por Giovanni Comodo

Em setembro, o Cineclube do Atalante celebra a vida e obra de William Friedkin, falecido em agosto deste ano aos 87 anos. Um dos nomes centrais da chamada Nova Hollywood, Friedkin foi responsável por alguns dos títulos mais célebres da breve invasão bárbara no império da capital do cinema. É de sua pena Operação França (1971) e O Exorcista (1973), sucessos absolutos que moldaram tudo o que veio a seguir em seus gêneros – e também filmes que ajudaram a encerrar este período, obsessões pessoais como Comboio do Medo (1977) cujos fracassos enormes colocaram o poder de volta para os executivos dos estúdios. Entretanto, tantas décadas depois, o nome e a carreira de Friedkin parecem menores que muitos dos seus colegas de geração, injustamente.

Nos anos 1980, Friedkin (e toda a Nova Hollywood) vê sua maré virar totalmente. Seus fracassos comerciais acabam com o prestígio da década anterior e marcam sua descida do Olimpo hollywoodiano para trabalhos na televisão e em projetos com muito menos liberdade de escolhas nos anos seguintes. Contudo, ali encontram-se algumas de suas apostas mais ousadas e em total domínio e maturidade. Dentro do gênero policial, Friedkin reinventa-se ao mesmo tempo em que busca novas possibilidades para todo o cinema. É também neste gênero que se sente mais à vontade para exercer sua visão de mundo, repleta de desilusão e pessimismo: desdenhoso de instituições, seu cinema se concentra nas fragilidades e zonas escuras das pessoas.

Viver e morrer em Los Angeles
(1985) é exemplar neste sentido: seu departamento de polícia é engessado, quase preguiçoso, incompetente em diversas vezes (seus policiais dormem fazendo tocaia e perdem o investigado), parte de um sistema arcaico e inquestionável maior que todos os que vivem abaixo dele. No mundo de Los Angeles – e Friedkin não hesitaria em dizer o mesmo sobre Hollywood – os agentes são dispensáveis e intercambiáveis e todos estão à serviço de somente uma coisa, grana (a sequência de créditos iniciais consegue resumir com precisão o enorme painel coletivo da cidade unido em volta das verdinhas). Não por acaso, sua maior ameaça é quem consegue perturbar esta ordem, alguém que consegue fazer surgir mais dinheiro do nada, um falsificador – que é, por consequência, um artista (uma boa defesa do diretor do papel da arte em geral, e não por acaso um personagem pelo qual o filme tem enorme simpatia). Ao final do filme, mesmo após tanto sangue, tantos carros batidos e avenidas em guerra, tantos incêndios, fica tudo como dantes no quartel d’Abrantes. Friedkin é um herdeiro declarado de Howard Hawks em seu gosto por seguir e observar o trabalho dos homens, porém por sua vez vê sua inutilidade, seus frutos gerarem apenas cinzas o tempo todo.

E, tal como Hawks, é um diretor afeito e sem julgamentos da sexualidade humana, que não hesita em incluir em seus filmes. Em Cruising – Parceiros da noite (1980), Friedkin coloca a plateia nos clubes privados da cena gay nova-iorquina da época. Obcecado com a fidelidade ao mundo material, o diretor grava sempre nos lugares reais em que acontece sua história: estamos de fato no necrotério da Polícia de Nova York, estamos de fato nos bares de members only – que eram de propriedade e esquema da máfia, com quem Friedkin foi conversar várias vezes para conseguir colaboração, assim como frequentou estes bares para elaborar seu roteiro (aliás, os frequentadores que vemos são de fato os habitués desses lugares, o que torna o filme um documento inesperado da cena queer realizado por um grande estúdio de cinema). Para os espectadores incautos que entraram na sessão para ver o novo filme de Al Pacino, só podemos imaginar como foram os primeiros 15 minutos de projeção.

No mergulho neste mundo repleto de códigos, segredos e identidades múltiplas, o perigo verdadeiro em Cruising é a violência que parece intrínseca ao homem, em um ciclo perpétuo que parece seduzir e se incutir a tudo e todos. Pois Friedkin entende o poder do olhar em sua capacidade de absorver o mundo e ser transformado pelo mesmo (o cineasta sabe filmar violência e sexo – e tão importante quanto o que é exibido, é o que não é mostrado).

Não só isso, Friedkin nos oferece a devolução do olhar: são muitas as cenas em que a plateia é encarada pelas pessoas em tela, inclusive o último instante de Pacino. Somos convocados. No cinema de Friedkin, não apenas se observa o abismo, ele nos olha de volta.