Em setembro, o Cineclube do
Atalante celebra a vida e obra de William Friedkin, falecido em agosto deste
ano aos 87 anos. Um dos nomes centrais da chamada Nova Hollywood, Friedkin foi
responsável por alguns dos títulos mais célebres da breve invasão bárbara no
império da capital do cinema. É de sua pena Operação
França (1971) e O Exorcista (1973),
sucessos absolutos que moldaram tudo o que veio a seguir em seus gêneros – e
também filmes que ajudaram a encerrar este período, obsessões pessoais como Comboio do Medo (1977) cujos fracassos
enormes colocaram o poder de volta para os executivos dos estúdios. Entretanto,
tantas décadas depois, o nome e a carreira de Friedkin parecem menores que
muitos dos seus colegas de geração, injustamente.
Nos
anos 1980, Friedkin (e toda a Nova Hollywood) vê sua maré virar totalmente.
Seus fracassos comerciais acabam com o prestígio da década anterior e marcam sua
descida do Olimpo hollywoodiano para trabalhos na televisão e em projetos com
muito menos liberdade de escolhas nos anos seguintes. Contudo, ali encontram-se
algumas de suas apostas mais ousadas e em total domínio e maturidade. Dentro do
gênero policial, Friedkin reinventa-se ao mesmo tempo em que busca novas
possibilidades para todo o cinema. É também neste gênero que se sente mais à
vontade para exercer sua visão de mundo, repleta de desilusão e pessimismo:
desdenhoso de instituições, seu cinema se concentra nas fragilidades e zonas
escuras das pessoas.
Viver e morrer em Los Angeles (1985) é
exemplar neste sentido: seu departamento de polícia é engessado, quase
preguiçoso, incompetente em diversas vezes (seus policiais dormem fazendo
tocaia e perdem o investigado), parte de um sistema arcaico e inquestionável
maior que todos os que vivem abaixo dele. No mundo de Los Angeles – e Friedkin
não hesitaria em dizer o mesmo sobre Hollywood – os agentes são dispensáveis e
intercambiáveis e todos estão à serviço de somente uma coisa, grana (a sequência
de créditos iniciais consegue resumir com precisão o enorme painel coletivo da
cidade unido em volta das verdinhas). Não por acaso, sua maior ameaça é quem
consegue perturbar esta ordem, alguém que consegue fazer surgir mais dinheiro
do nada, um falsificador – que é, por consequência, um artista (uma boa defesa do diretor do papel da arte em geral, e não
por acaso um personagem pelo qual o filme tem enorme simpatia). Ao final do
filme, mesmo após tanto sangue, tantos carros batidos e avenidas em guerra, tantos
incêndios, fica tudo como dantes no quartel d’Abrantes. Friedkin é um herdeiro
declarado de Howard Hawks em seu gosto por seguir e observar o trabalho dos
homens, porém por sua vez vê sua inutilidade, seus frutos gerarem apenas cinzas
o tempo todo.
E, tal como
Hawks, é um diretor afeito e sem julgamentos da sexualidade humana, que não
hesita em incluir em seus filmes. Em Cruising
– Parceiros da noite (1980), Friedkin coloca a plateia nos clubes privados
da cena gay nova-iorquina da época. Obcecado com a fidelidade ao mundo material,
o diretor grava sempre nos lugares reais em que acontece sua história: estamos
de fato no necrotério da Polícia de Nova York, estamos de fato nos bares de members only – que eram de propriedade e
esquema da máfia, com quem Friedkin foi conversar várias vezes para conseguir
colaboração, assim como frequentou estes bares para elaborar seu roteiro
(aliás, os frequentadores que vemos são de fato os habitués desses lugares, o
que torna o filme um documento inesperado da cena queer realizado por um grande estúdio de cinema). Para os
espectadores incautos que entraram na sessão para ver o novo filme de Al
Pacino, só podemos imaginar como foram os primeiros 15 minutos de projeção.
No mergulho
neste mundo repleto de códigos, segredos e identidades múltiplas, o perigo verdadeiro
em Cruising é a violência que parece
intrínseca ao homem, em um ciclo perpétuo que parece seduzir e se incutir a
tudo e todos. Pois Friedkin entende o poder do olhar em sua capacidade de
absorver o mundo e ser transformado pelo mesmo (o cineasta sabe filmar violência
e sexo – e tão importante quanto o que é exibido, é o que não é mostrado).
domingo, 1 de outubro de 2023
William Friedkin: A moral amoral
por Giovanni Comodo
Não só isso, Friedkin nos oferece a devolução do olhar: são muitas as cenas em que a plateia é encarada pelas pessoas em tela, inclusive o último instante de Pacino. Somos convocados. No cinema de Friedkin, não apenas se observa o abismo, ele nos olha de volta.
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