domingo, 1 de outubro de 2023

William Friedkin: A moral amoral

 por Giovanni Comodo

Em setembro, o Cineclube do Atalante celebra a vida e obra de William Friedkin, falecido em agosto deste ano aos 87 anos. Um dos nomes centrais da chamada Nova Hollywood, Friedkin foi responsável por alguns dos títulos mais célebres da breve invasão bárbara no império da capital do cinema. É de sua pena Operação França (1971) e O Exorcista (1973), sucessos absolutos que moldaram tudo o que veio a seguir em seus gêneros – e também filmes que ajudaram a encerrar este período, obsessões pessoais como Comboio do Medo (1977) cujos fracassos enormes colocaram o poder de volta para os executivos dos estúdios. Entretanto, tantas décadas depois, o nome e a carreira de Friedkin parecem menores que muitos dos seus colegas de geração, injustamente.

Nos anos 1980, Friedkin (e toda a Nova Hollywood) vê sua maré virar totalmente. Seus fracassos comerciais acabam com o prestígio da década anterior e marcam sua descida do Olimpo hollywoodiano para trabalhos na televisão e em projetos com muito menos liberdade de escolhas nos anos seguintes. Contudo, ali encontram-se algumas de suas apostas mais ousadas e em total domínio e maturidade. Dentro do gênero policial, Friedkin reinventa-se ao mesmo tempo em que busca novas possibilidades para todo o cinema. É também neste gênero que se sente mais à vontade para exercer sua visão de mundo, repleta de desilusão e pessimismo: desdenhoso de instituições, seu cinema se concentra nas fragilidades e zonas escuras das pessoas.

Viver e morrer em Los Angeles
(1985) é exemplar neste sentido: seu departamento de polícia é engessado, quase preguiçoso, incompetente em diversas vezes (seus policiais dormem fazendo tocaia e perdem o investigado), parte de um sistema arcaico e inquestionável maior que todos os que vivem abaixo dele. No mundo de Los Angeles – e Friedkin não hesitaria em dizer o mesmo sobre Hollywood – os agentes são dispensáveis e intercambiáveis e todos estão à serviço de somente uma coisa, grana (a sequência de créditos iniciais consegue resumir com precisão o enorme painel coletivo da cidade unido em volta das verdinhas). Não por acaso, sua maior ameaça é quem consegue perturbar esta ordem, alguém que consegue fazer surgir mais dinheiro do nada, um falsificador – que é, por consequência, um artista (uma boa defesa do diretor do papel da arte em geral, e não por acaso um personagem pelo qual o filme tem enorme simpatia). Ao final do filme, mesmo após tanto sangue, tantos carros batidos e avenidas em guerra, tantos incêndios, fica tudo como dantes no quartel d’Abrantes. Friedkin é um herdeiro declarado de Howard Hawks em seu gosto por seguir e observar o trabalho dos homens, porém por sua vez vê sua inutilidade, seus frutos gerarem apenas cinzas o tempo todo.

E, tal como Hawks, é um diretor afeito e sem julgamentos da sexualidade humana, que não hesita em incluir em seus filmes. Em Cruising – Parceiros da noite (1980), Friedkin coloca a plateia nos clubes privados da cena gay nova-iorquina da época. Obcecado com a fidelidade ao mundo material, o diretor grava sempre nos lugares reais em que acontece sua história: estamos de fato no necrotério da Polícia de Nova York, estamos de fato nos bares de members only – que eram de propriedade e esquema da máfia, com quem Friedkin foi conversar várias vezes para conseguir colaboração, assim como frequentou estes bares para elaborar seu roteiro (aliás, os frequentadores que vemos são de fato os habitués desses lugares, o que torna o filme um documento inesperado da cena queer realizado por um grande estúdio de cinema). Para os espectadores incautos que entraram na sessão para ver o novo filme de Al Pacino, só podemos imaginar como foram os primeiros 15 minutos de projeção.

No mergulho neste mundo repleto de códigos, segredos e identidades múltiplas, o perigo verdadeiro em Cruising é a violência que parece intrínseca ao homem, em um ciclo perpétuo que parece seduzir e se incutir a tudo e todos. Pois Friedkin entende o poder do olhar em sua capacidade de absorver o mundo e ser transformado pelo mesmo (o cineasta sabe filmar violência e sexo – e tão importante quanto o que é exibido, é o que não é mostrado).

Não só isso, Friedkin nos oferece a devolução do olhar: são muitas as cenas em que a plateia é encarada pelas pessoas em tela, inclusive o último instante de Pacino. Somos convocados. No cinema de Friedkin, não apenas se observa o abismo, ele nos olha de volta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário