sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Le fils de Joseph (2016), de Eugène Green

 por Francisco Noronha

Curioso ovni, este, o que passou na sala 3 do Cinema São Jorge, desde logo pelo modo como se constitui num puzzle artístico onde cinema, pintura e música clássica se interpenetram, nunca pretensiosamente mas sempre com um propósito substancial (ainda que enigmático). Quando o filme terminou, a minha companhia disse que era “muita manteiga para pouco pão” (ou ao contrário, o ditado não consta do Google e a minha avó, sempre cirúrgica neste tipo de dúvidas, não atende o telefone), mas o certo é que, já cá fora e enquanto íamos comentando o filme, o slogan de Fernando Pessoa ganhou força – o último filme de Eugène Green (dramaturgo, além de cineasta) é um daqueles objectos que primeiro se estranham e depois se entranham, imagens e sons que ficam a reverberar nas nossas cabeças no caminho para casa. Essa estranheza deve-se, por um lado, à bressionana direcção de actores e, por outro, por mais paradoxal que isto seja relativamente à filosofia dos modèles de Bresson, à coreografia teatral que Green imprime às cenas e aos diálogos, filmando muitas vezes duas personagens em plano americano, de frente uma para a outra, falando com um ritmo e uma erudição absolutamente anti-naturalistas.

É isso que, de resto, confere um humor insólito ao filme e faz dele uma grande “comédia bíblica” (além das alfinetadas aos críticos), mais concretamente, uma alegoria da história do nascimento de Jesus Cristo situada na nossa contemporaneidade, com Vincent (Victor Enzenfis) no lugar de Jesus e Marie e Joseph a interpretar as correspondentes figuras bíblicas (e nem falta o burro, que aparecerá já quase no final do filme). E quem é, afinal, Oscar Pormenor (Mathieu Amalric), o pai que rejeitou Vincent, o homem que inseminou Marie? Será Deus, na contemporânea versão do Dinheiro-Todo-Poderoso? E se não for… quem é Deus, então? A sua eventual ausência do filme quererá sugerir a sua não existência? Joseph afirma que não foi Deus quem ordenou a Abraão que matasse o seu filho; que foi Abraão quem tomou essa decisão e que foi Deus, sim (e não um Anjo), que lhe disse para não o fazer. Com excepção desta “tese”, nada é explicativo ou assertivo no filme, tudo simbólico e especulativo, muito a lembrar o P’tit Quinquin (O Pequeno Quinquin, 2014) de Bruno Dumont (ele próprio um autor tributário de Bresson) no que de teológico ele carrega: a culpa (logo no primeiro roubo, só por “desporto”, de Vicent ressoando o Pickpocket de Bresson), a vingança e a violência (a degolação que Vincent, iluminado por uma imagem alva, aborta no último instante), a misericórdia, a redenção (a ilibação de Pormenor ao seu filho perante a presença da polícia).


Texto parte de “IndieLisboa 2016: Cinema, em ti cremos”, publicado em 28 de abril de 2016 e disponível em https://apaladewalsh.com/2016/04/indielisboa-2016-cinema-em-ti-cremos/. Mantivemos a grafia como no original de Portugal.

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