sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Um menino sobre o muro


O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho (Brasil, 2012)


Há um personagem misterioso em O Som ao Redor, sempre às margens da trama, um garoto negro visto em posições que sugerem que ele está pronto para transpassar a propriedade privada alheia, até o momento em que a equipe de segurança finalmente intercede. Como muitos outros elementos do filme, o garoto surgiu direto da história local, um jovem chamado Tiago João da Silva, que se notabilizou na virada dos anos 2000 por assaltar apartamentos do Recife e ganhou o apelido de Menino Aranha. Muito do que O Som ao Redorfaz pode ser traçado de volta a esta figura a principio marginal, a começar pelo fato de ele tanto existir na história como ao mesmo tempo ser inserido dentro do filme como uma criatura de mito, um vulto que surge de relance num plano numa casa vazia, como uma espécie de bicho papão em miniatura de um filme de horror à brasileira.
Desde que O Som ao Redor começou a circular pelos festivais brasileiros, no segundo semestre do ano passado, já se falou muito do seu caráter ressonante e, se é verdade que possivelmente não vemos este tipo de evento crítico desde que Cronicamente InviávelLavoura Arcaica e O Invasor foram lançados em sequência no começo da década passada (desde então, nossos eventos cinematográficos me parecem ou muito mais massificados ou restritos a um gueto bem específico), não se falou muito de como o filme alcançou tal ressonância. Sim, é um filme sobre o nosso contrato social, uma espécie de Casa Grande & Senzala vai a Boa Viagem nos Anos Lula, mas não é como se fosse o único filme a tratar de tal universo com um olhar incisivo. Do contrário, onde estariam os artigos laudatórios sobre um filme como Os Inquilinos, do mesmo Sergio Bianchi, cujo cinismo servira como grande válvula de escape do sentimento de fracasso nacional durante o segundo governo Fernando Henrique, e cujo Cronicamente Inviável foi varias vezes comparado a este O Som ao Redor em textos um tanto desastrados? Há algo que O Som ao Redor faz que lhe é muito particular, e a figura do Menino Aranha diz muito sobre este processo.
A pergunta inicial que orienta o filme é: como representar um estado de relações violentas em que o modo dominante é o do não-dito? – principalmente, num momento em que a ideia de ascensão social do governo Lula criou em setores consideráveis da nossa classe média um sentimento de encastelamento. Diante de tal problema, Kleber Mendonça Filho encontra imagens que surpreendem justamente porque se revelam carregadas ao mesmo tempo de uma força simbólica muito forte e de uma casualidade que desarma. O Som ao Redor procede em normatizar o gosto do cinema brasileiro pela alegoria, daí uma figura como o Menino Aranha ao mesmo tempo trazer com ela o caráter de personagem mitológico, o grande invasor, e poder ser mostrada de forma tão natural como um moleque a levar palmadas de um par de seguranças. É um equilíbrio que se aproxima muito de como este mesmo não-dito domina as relações: tudo em O Som ao Redorsignifica muito e ao mesmo tempo é esvaziado deste mesmo significado. Uma das imagens mais felizes do filme é aquela em que acompanhamos uma empregada domestica ir até seu quarto para trocar seu uniforme pelas suas roupas cotidianas e, naquele momento, toda uma história de relações de poder contida naquele uniforme se descortina sem que o filme jamais pareça sobrecarregar o momento de sentido.
Não existem no cinema brasileiro muitos outros casos de filmes que apresentam esta ideia de repressão social numa chave que sugere que ela é essencialmente um dado com o qual todos convivem e há muito internalizaram. Pode se questionar se O Som ao Redor não padece do mal de boa parte do cinema brasileiro contemporâneo de emoldurar as relações num excesso de bons modos derivados do “bom cinema de festivais”, e se isso acontece em alguns momentos (por exemplo, a sequência em que Gustavo Jahn guia Irma Brown pela antiga cidade dissipa sua força numa estetização um tanto forçada), desta vez a ausência de agressão chega naturalmente como recorrência do que o filme vê e não como um escape de boa arte que o filmes buscam apesar de si mesmos.

É útil comparar a personagem de Irandhir Santos, aqui, com o matador profissional que Paulo Miklos interpretou em O Invasor (outro filme construído sobre o medo da classe média). Ambos se apresentam a nós como seguranças que estão ali para garantir a proteção dos demais personagens centrais. Mas se tudo na atuação agressiva de Miklos é transparente – não restam dúvidas que a proteção que ele vende é contra ele mesmo, assim como nada esconde que seu desejo é justamente tomar para si o que os dois outros protagonistas possuem –, a presença de Santos sugere pura dissimulação. Se Miklos é um profissional do medo, Santos chega até nós como um comerciante desse mesmo medo. Parte da sabedoria de O Som ao Redor se localiza justamente em reconhecer que o que há de concreto no temor hoje não é o corpo de outro como Miklos, mas toda a parafernália que supostamente nos oferece segurança. Quando o filme finalmente abre sua mão e deixa todas suas motivações claras, e o segurança de Santos se revela menos o invasor agressivo do que o coro histórico que completa o contexto de toda a violência de relações apaziguadas que vimos até ali, ele até vem acompanhado de uma carga política-histórica extra com um pai assassinado dois dias depois da votação das Diretas Já. O verdadeiro outro permanecia uma abstração, um vulto como o Menino Aranha ou um pesadelo infantil, peça de ficção presente no nosso noticiário policial.
Existem dois elementos que Kleber Mendonça Filho lança mão que muito ajudam todo este processo. O primeiro é arquitetura. “Má arquitetura é eminentemente cinematográfica”, o realizador afirmou numa entrevista recente, e podemos estender a noção para “má arquitetura é essencialmente histórica”. Por vezes,O Som ao Redor sugere uma expansão daquele momento do curta-metragem anterior de Kleber Mendonça Filho, Recife Frio, no qual o filme revela que, com a radical mudança de clima, um homem trocou de quartos com a doméstica porque o quarto de empregada, acanhado e construído sem qualquer preocupação com a circulação de ar, é o único quarto quente que restou na casa. A má arquitetura sobre a qual O Som ao Redorse desdobra é justamente a representação concreta do não-dito que o filme mostra.

Se todos os personagens de O Som ao Redor procuram sempre se desviar da sua violência diária, cada um dos três apartamentos que lhes servem de locações principais carrega neles esta mesma violência o tempo todo. A já mencionada sequência em que a empregada troca de uniforme, por exemplo, é muito reforçada por acompanharmos o longo e estreito trajeto que ela tem que fazer até seu quarto, e a forma como ele explicita que, mesmo num apartamento enorme em que sobra espaço, a última das preocupações é o espaço privado da doméstica. Cada cômodo em O Som ao Redor, das salas de estar aos quartos, das cozinhas às áreas de serviço, é igualmente escrutinado pela câmera do cineasta; a cada espaço, sua função, e desta constatação surge menos algo natural e mais a extensão da violência da mesma plantação de açúcar que ajudou a financiar estes mesmos imóveis (as tentativas de os personagens em parecerem cosmopolitas e fugirem da sua história só revelam mais do seu próprio desespero). A violência arquitetônica é a única violência honesta do filme. A feiúra do processo de urbanização, seu elemento de cena mais agressivo.
O outro elemento recorrente é o do filme de horror. Laura Canepa, num belo artigo publicado em Interlúdio, já atentara para a forma como o filme se juntava a Os Inquilinos e Trabalhar Cansa, da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra, numa nova onda de filmes aparentados ao horror que usavam recursos de gênero para tentar melhor representar um mal-estar social. Poderíamos ainda acrescentar à lista de Canepa a forte influência de Polanski no Meu Nome é Dindi, do Bruno Safadi (cujo mais recente Éden também apresenta um trabalho de câmera que às vezes sugere uma filiação de gênero), e de forma ainda mais radical na maneira como O Fim da Picada, de Christian Saghaard, reimagina São Paulo como um parque de diversões de horror. O próprio Kleber Mendonça Filho faz sempre questão de mencionar O Som ao Redor e Trabalhar Cansa como se fossem espécie de obras irmãs, e o filme de Rojas e Dutra é justamente o único entre todos estes títulos que faz questão de explicitar sua filiação de gênero. É uma ideia que diz bastante sobre a preferência de uma parte dos nossos jovens cineastas pelo cinema marginal, cuja vertente mais agressiva por vezes sugeria uma chanchada relida pelo cinema de horror, e algo que já se revelava em vários dos curtas que a produtora paulista Paraísos Artificiais realizou ao longo da década de 1990, cujo flerte com o gênero como forma de amplificar uma agressividade política era sempre muito aparente.
O Som ao Redor retrabalha o horror numa chave de menos confronto do que, por exemplo, os curtas de Paulo Sacramento, em um tom que melhor condiz com este não-dito que domina suas relações. Sua influência é menos os filmes de horror social de George Romero ou os terrores rurais de Tobe Hooper e Wes Craven, em que o reprimido frequentemente retornava com violência, mas os à primeira vista muito mais discretos filmes de John Carpenter, uma das referencias mais fortes do filme, rebatido diretamente na limpidez dos enquadramentos e também na cuidadosa banda sonora, sempre pronta para ecoar essa ameaça constante. De Carpenter, surge a ideia de que a ameaça, este outro, só pode dar as caras no terreno do não-dito pelas vias do fora do quadro (lição que o cineasta americano absorveu dos filmes de terror da dupla Tourneur/Lewton), ou de um corpo estranho mitológico que não existe sob a mesma lógica da dos demais atores. Há, no filme, a impressão constante de um desastre prestes a acontecer, a certeza de que os bons tons que regem as relações entre seus personagens vão ser rompidos a qualquer momento quando alguém pesar demais a mão. O Som ao Redor é um quase thriller regido por uma frustração constante sobre seu desejo de assumir ou não a abrasividade típica do filme de horror político. Vendo seus prédios uniformes, é fácil pensar no arranha-céu de luxo de Terra dos Mortos, de George Romero, ou de forma ainda mais incisiva no condomínio do Calafrios, de David Cronenberg. A diferença é que, ao contrario destes filmes, na Recife de O Som ao Redor a trama de contágio que rege todos estes filmes é mantida em suspenso, enquanto todos fingem não ver a tensão que se acumula.
Assim como, antes, Trabalhar Cansa já revisara as relações trabalhistas por via de um supermercado assombrado, O Som ao Redor termina por se impor ele próprio como uma história de fantasma. Só que, se o filme de Rojas e Dutra tinha um foco bem mais fechado e ao mesmo tempo muito mais alegórico, o filme de Kleber Mendonça Filho tenta dar conta de um processo histórico muito mais amplo e incontornável. É um sentimento de horror que dá as caras, por exemplo, na figura do Menino Aranha que a principio é tudo menos assustadora, mas que nossa convenção social nos manda olhar como uma ameaça. Estamos no território do filme de fantasma, e o que há de mais potente em O Som ao Redor é justamente a facilidade com que ele volta da paranóia de segurança da nossas classes mais favorecidas para um processo de violência histórica. É um ponto obvio, mas ao qual raramente se permite insurgir de forma tão direta. O vulto do Menino Aranha é um corpo mitológico que traz nele muitas violências passadas e cuja existência – constantemente fora do quadro; uma ideia muito mais do que uma presença – ajuda a justificar uma série de outras violências presentes e futuras (muitas das quais cometidas contra nós mesmos).

O horror se revela, principalmente, nas duas únicas sequências em que o filme rompe radicalmente com seu olhar de observação, em que o tom menor das idas e vindas do cotidiano da rua é infectado pela ficção e Kleber Mendonça Filho se permite abraçar por completo uma linguagem mais agressiva: no primeiro, a viagem de volta ao engenho termina num banho de cachoeira em que a água é substituída por um rio de sangue; e depois, naquela que é a sequencia mais memorável de todo o filme, uma pré-adolescente imagina sua casa aos poucos invadida por uma série de vultos negros, não um ou dois assaltantes, mais uma verdadeira insurreição que rompe a ordem social. São duas imagens que poderiam tranquilamente estar numa ficção passada no século XIX, o que ajuda a reforçar a ideia que este filme tão contemporâneo se encontra também suspenso no tempo. Em ambos estes momentos, o que O Som ao Redor consegue, com uma clareza que a ficção brasileira como um todo sempre teve grandes dificuldades de afirmar, é encontrar imagens que tornam este não-dito que rege a nossa opressão social de todos os dias um dado concreto físico, muito cruel e inescapável (não é por coincidência ou acidente que elas pertencem a pesadelos de duas das personagens mais simpáticas do filme, e não a tipos que o filme facilita o espectador de se afastar). É só pelo sobrenatural que este não-dito finalmente pode retomar até nós sem filtros, que a nossa história de violência pode finalmente se afirmar. A arquitetura nova-rica grosseira e os sustos de filmes B podem parecer, à primeira vista, objetos muito vulgares para carregarem um filme como este, mas é neles que O Som ao Redor encontra sua mais direta expressão.



HEY JOE

(Artigo sobre o cinema de Apichatpong Weerasethakul)

A história começa em 27 de setembro de 2002, na sala 1 do Estação Botafogo. Ao meio-dia. Eternamente Sua, o objeto misterioso daquele e de todos os festivais por que passou, nos convidava a uma sessão de hipnose. Um convite que aceitamos não se sabe exatamente como – o filme simplesmente acontecia, e nós simplesmente íamos aonde ele indicava. Era confirmada, de uma vez por todas, a sobrevivência do cinema para além de qualquer constrição que a cultura visual favorecesse. A "polícia dos signos", treinada durante décadas para que nada escapasse a seu arsenal analítico, nada tinha a fazer diante daquela experiência que, à parcela legível das imagens, antepunha a beleza crua e direta dos seus significantes primários. Ao final de Eternamente Sua(Blissfully Yours, prêmio Un Certain Regard em Cannes 2002), todos como que saídos de um sonho bom, não podíamos mais exigir muita coisa dos filmes seguintes do festival (arrebatamento que se repetiria dois anos mais tarde, com Mal dos Trópicos). 

Apichatpong Weerasethakul: soubemos de pronto que aquele nome esquisito deveria ser "aprendido" (logo, logo alguém teria o ímpeto de lhe emprestar um apelido internacionalmente pronunciável: Joe). Ao descobrir qual filme ele havia feito antes de Eternamente Sua, a conexão com o que, para nós, fora a "cena originária" não poderia ter sido maior: o primeiro longa-metragem de Apichatpong Weerasethakul se chama Objeto Misterioso ao Meio-dia. E é um filme que, apesar da câmera volta e meia assumir uma postura de reportagem, revela-se muito mais comobricolage do espaço e do imaginário nele incrustado (há mesmo algo de um "pensamento selvagem" no cinema de Apichatpong). Como todo filme dele, inclassificável; tanto documentário como ficção-científica – e nenhuma das duas coisas. A despeito de qualquer generalização que se possa tentar, a constatação fundamental é a de que Apichatpong filma o mundo num momento que antecede a separação e a organização diferencial de seus objetos. Um mundo em que as coisas ainda não receberam nomes, transposto para uma linguagem que, corrompendo a fórmula saussuriana ("em linguagem, existem apenas diferenças"), evolui por desdiferenciação. Antes de uma estrutura estática de nomes designando coisas, pessoas, lugares e eventos, os filmes de Apichatpong trazem um presente fugidio, composto por corpos que se banham na poesia imanente do tempo. Não há narrativa possível senão através do presente bruto, antinarrativo por excelência. 

É curioso que a história do que a obra desse cineasta desperta venha a ser uma história de intimidade. Ver Mal dos Trópicos cria o mais feliz dos paradoxos: de uma hora para outra, somos íntimos de um mistério. Conhecemos bem esse mistério: tão de dentro que se torna impossível transpor suas bordas. Como pode se dar isso, intimidade sem entendimento? Escrever-lhe uma carta não adiantaria, pois a experiência com Mal dos Trópicos é daquelas que não se pode partilhar nem com o autor. É muito mais uma experiência que se funda no contato direto com o sorriso do ator durante os créditos iniciais. Ele sorri olhando para nós; um sorriso tímido, mas infinitamente simpático.

A primeira parte de Mal dos Trópicos, que pode iludir o olhar com imagens relativamente conhecidas do cinema contemporâneo, não é em nada realista, não é uma abordagem objetiva a se contrapor à fábula mitopoética da segunda metade. Já está em jogo, mesmo nas passagens mais prosaicas daquela primeira parte, uma apreensão mágica do mundo (com a mesma carga naïf depois corroborada). Basta recapitular as cenas e perceber que tipo de relação o cineasta estabelece com esse espaço "não pré-estilizado": a visita à gruta, o cachorro encontrado na estrada, a cena musical com a cantora, a ida ao cinema, a sucessão de blocos narrativos mais ou menos soltos (desde um grupo de soldados achando um cadáver no meio do mato até o romance entre dois rapazes): tudo conflui para um sentimento oceânico de contigüidade total entre os seres, o tempo e o espaço.

Mal dos Trópicos foi prêmio da crítica na Mostra de São Paulo e, em maior ou menor intensidade, agradou também ao público em geral. Surpresa? Nenhuma: o contrário seria algo como não preferir vivenciar a imagem a apenas conhecê-la de vista. Seria tapar os ouvidos para aquela "canção de felicidade" que é cantada por "cada gota da alma". Seria deixar escapar por entre os olhos a chance rara de ver o mundo ser filmado enquanto está nu. E seria negar uma das maiores provas recentes da vitalidade do cinema. Dessa obra que vem se construindo de forma grandiosa, fica desde já a certeza de que dormir não é mais tão importante, pois Joe nos mostrou a possibilidade de sonhar ao meio-dia.


 Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/66/heyjoejunior.htm)

Nenhum comentário:

Postar um comentário