sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Sobre a miséria dos padrões da comunidade


Publicado em 18 de Junho de 1964

Na sexta-feira passada foi publicado um veredito na Corte Criminal de Nova York determinando como obsceno o filme FlamingCreatures, de Jack Smith. Uma decisão similar foi aprovada pela corte de Los Angeles sobre ScorpioRising, o filme de Kenneth Anger. Em termos práticos, o que isso significa é o seguinte: de agora em diante, pelo menos nessas duas cidades, será considerado crime exibir FlamingCreatures ou ScorpioRising, seja publicamente ou em ambiente privado. Na verdade, se Kenneth Anger ou Jack Smith fossem pegos assistindo aos filmes que eles mesmos fizeram, poderiam ser processados. O projetor e a tela, que foram apreendidos junto com o filme e são de propriedade de cineastas de Nova York, também serão apresentados como armas do crime.
Durante o julgamento, nós nos oferecemos – através de nós mesmos e através de Lew Allen, Willard van Dyke, Herman G. Weinberg, Susan Sontag, Shirley Clarke, Joseph Kaster, Allen Ginsberg, dr. E. Hornick e dr. John Thompson – para explicar alguns dos significados de FlamingCreatures e para trazer alguma luz para as discussões sobre arte em geral. O tribunal escolheu nos ignorar; preferiram julgar o filme a partir do que chamaram de “padrões da comunidade”.

Agora, essa expressão “padrões da comunidade”, cujas feiúra e falta de sentido só podem ser alcançadas por expressões como “cidadão idoso” e “meio de comunicação”, provou ser o critério estético mais importante na corte.

Foi tão altamente inacreditável e estúpido que eu nem consegui considerar como um insulto. Nós consideramos que era comédia.

Artistas de todos os tempos, assim como artistas dos dias atuais estiveram e estão engajados em questionar os “padrões da comunidade”, em elevar a alma humana, em levar o ser humano para um nível mais alto – mesmo que para isso seja preciso puxar o ser humano pelas orelhas.
Os padrões comunitários de hoje, como os de ontem, são baixos e vulgares. A comunidade permanece sentada sobre o próprio traseiro, como se fosse um pato doente. Os artistas, profetas, santos e idiotas continuaram lembrando aos homens sobre suas asas e sobre os portões sempre abertos que levam às mil e uma noites e ao Paraíso.
Medir arte a partir de “padrões da comunidade” significa medir arte pelos padrões daquelas quarenta pessoas do Brooklyn que ficaram paradas olhando enquanto um vizinho era assassinado. Esse é o padrão da comunidade.
O fato do tribunal estar medindo arte pelo que eles chamam de padrões da comunidade, e sobretudo o fato de estarem medindo apenas dessa forma, comprova que mesmo os nossos tribunais caíram na vala do nível dos padrões da comunidade. Isso mostra uma completa ignorância do que é a arte, ou como se deve compreender a arte, ou quais são os verdadeiros significados e origens da arte; na verdade, isso revela a ignorância sobre o que o homem é.
É a comunidade que deveria ser criticada a partir da arte, se fosse o caso, e não o contrário. A inocência e a beleza de Jack Smith ficam tão acima dos chamados padrões da comunidade que é um privilégio que o trabalho dele possa ser visto num tribunal.
A arte de qualquer tempo é criada por gerações mais jovens, de meia idade e mais velhas. Estas três vozes, estas três gerações têm coisas diferentes para dizer à humanidade de qualquer época – sempre há pelo menos três vozes a se ouvir. Há muitas mais, na verdade.
Essas três gerações continuam seus diálogos com o mundo simultaneamente. Nenhuma das três vozes deve ser considerada superior às outras; cada uma delas tem a sua própria sabedoria e suas visões para apresentar às pessoas.
O inconsciente de Jack Smith toca e atravessa o nosso inconsciente (e a consciência) em muitos pontos diferentes (nenhum homem é só): ele toca e revela algo de todas as gerações vivas ou mortas.
O filme de Jack (ou o de Kenneth Anger) não é apenas uma chave para si mesmo: é uma chave (uma das muitas) para as emoções, qualidades, medos, sonhos, abundâncias e necessidades das almas de todas as pessoas.
Artistas conseguem resumir as suas épocas, as suas raças, e são capazes de pegar em seus cabelos as raízes do futuro. Os significados de FlamingCreatures e de ScorpioRising deveriam ser compreendidos como nossos próprios significados profundos, como análises e previsões de coisas que acontecerão conosco.
De fato, todas as coisas em FlamingCreatures e ScorpioRising das quais temos tanto medo já estão aqui; os artistas viram elas através dos seus terceiros olhos e registraram-nas integralmente em seus filmes.
Nós deveríamos agradecer a Jack e Kenneth por serem profetas, por trazerem aos nossos sentidos mais diretos coisas – algumas feias, outras bonitas; mas todas sendo parte de nós mesmos – coisas que se não fosse assim nós não iríamosver.

Arte é ritualística nas suas origens, nos seus sentidos e nas suas formas; obras de arte existem para serem aproveitadas, para decifrar com o nosso próprio terceiro olho, para interpretar, para crescer com elas – elas são as nossas chaves e as nossas sementes.
Os juízes e a polícia que queimam essas chaves e mensagens dos deuses estão queimando as nossas bibliotecas de Alexandria. Eles estão cometendo atos monstruosos contra a humanidade. Conscientemente ou não, eles são verdadeiros instrumentos do mal.
Quem quer que suprima uma obra de arte por qualquer razão está construindo uma nova armadura, um novo câncer no subconsciente humano; ele priva a humanidade do seu conhecimento mais profundo sobre si mesma; ele tira uma parte da sua alma; ele impede o homem de crescer rumo aos céus; ele mantém a humanidade na escuridão e na vulgaridade.
Este é o verdadeiro crime contra o homem: o crime contra a sua alma. Essas são as conseqüências verdadeiras dos julgamentos de FlamingCreatures e ScorpioRising.
O caso é que nós não deveríamos ficar julgando os próprios juízes (nem podemos): já basta que nós saibamos as conseqüências; porque as leis da vida são tais que uma pessoa não pode cometer um crime contra a alma de outra pessoa sem cometer um crime contra a sua própria alma. Enquanto isso, FlamingCreatures e ScorpioRising estarão sendo exibidos por anjos no paraíso, com os projetores perfumados da eternidade.


Jonas Mekas, em tradução de Daniel Caetano
(texto original: 
http://www.revistacinetica.com.br/comunidademekas.htm)

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