domingo, 1 de fevereiro de 2015

O SANGUE, Pedro Costa, 1989



Por João Bénard da Costa

De O Sangue se tem falado como de um filme obscuro. Melhor seria falar de um filme escuro, nome do cão que quase logo no princípio conhecemos. Alguma atenção - mas já estamos tão desabituados que no-la peçam assim - dissipará as aparentes obscuridades do filme. A mesma atenção só lhe reforça o lado escuro, que, neste caso nada tem que ver com o lado negro. É escuro porque é noite - é quase sempre noite - e é em noites destas que há sonhos e pesadelos e vem lá o lobo mau. De noite - em noites dessas - não vemos as cores e por isso este filme - contra quaisquer modas, modernismos ou pós-modernismos - só podia ser um filme a preto e branco, ou a escuro e claro, no escuro tão escuro e no claro tão claro da prodigiosa fotografia de Martin Schäfer.

Distraio-me por um bocado no cinema português (já volto) e se há filmes que O Sangue me fez vir à cabeça são obras tão diversas como The Night of the Hunter de Charles Laughton, La nuit du carrefour de Jean Renoir ou Stars in My Crown de Jacques Tourneur. Ogros e meninos, medos tão antigos, névoas tão baixas. E Clara. Tão Clara como a branca das neves do filme de Renoir (“pede-me coisas”). E o tio marcado na orelha como Mitchum nas mãos, no filme de Laughton, e talvez como ele, ocultando a conciliação do murder e do love. Repare-se que chegou no Natal e diz que no Natal chegava sempre, muito antes que Nino, que se lembrava de tudo, dele se lembrasse.

Muito antes do genérico, este filme é cortado de planos negros - planos inteiramente escuros - que jamais são fondus. É depois do primeiro deles que vemos Vicente em grande plano de frente para nós e de frente para o pai (Canto e Castro). Por um breve instante ficam assim, sem dizer nada. Até que o pai levanta o braço e nos dá a primeira bofetada do filme, inesperada e rápida. Vicente não esboça um gesto de defesa ou de fuga: “Faça de mim o que quiser”. Depois passamos aos ruídos (trovoadas, ventos, motores) e aos sonhos e pesadelos de Nino, e das várias outras crianças que nunca mais veremos e sonham os mesmos sonhos ou estão dentro do mesmo sonho. A luz apaga-se e acende-se, como se acorda e adormece, até que finalmente - em eco de bofetada inicial e quase provocando o mesmo efeito de surpresa - surgem, muito brancas, as letras do genérico. Passou uma eternidade. E dela vem, na escola, Clara, num fabuloso contra-luz. Passará outra eternidade, até vermos a luz do dia.

Eram dois adolescentes e uma criança e se se voltasse ao cinema americano há entre eles a mesma secreta aliança que havia entre as rebeldes de Ray. Mas não são rebeldes, embora se separem do indissolúvel na noite do cemitério quando roubam a Nino o segredo que não compartilham. E nessa divisão começa a divisão deles, o percurso que no final os isolará, sem raízes, tão perdidos do espaço como o estiveram daquele tempo.

Antes, muito antes, tentara Vicente suportar sozinho o peso do seu sangue (seqüência da farmácia) quando procura ocultar de Clara a ferida da primeira solidão. E só quando esta lhe agarra a mão - porventura o mais belo grande plano do filme, ou o mais belo plano do filme - se lhe entrega com o pedido de salvação, precedendo a noite do cemitério.

É a seqüência mais onirizante do filme (durante ela, Nino dorme); é também a seqüência mais elíptica, como se os dois tentassem redimir uma culpa oculta, sabendo já da impossibilidade da mancha do corpo não alastrar. “Os sonhos existem mesmo?” E a resposta é a árvore assombrada, a dívida reclamada, e as figuras de substituição paterna (credores, tio) minando o incesto sangrento. O homem com um grande termômetro no chapéu, sonhar e inventar são coisas muito diversas. Não há mundos sem dívidas, como não há mundos sem culpas. Na noite mítica do amor, Vicente e Clara descobrem-se sós e têm medo. Se ninguém será como eles, tudo e todos existem para o mal. “Estás a tremer... Pede-me coisas... Mais perto... Mais”. Depois só resta a névoa da festa, a profundidade de campo e a posse por Clara do corpo de Vicente, enquanto um outro fio de sangue - ferida do tio - os conduzirá para a cidade junto de bichos mais antigos e mais famintos (as piranhas e as tartarugas do aquário, Isabel de Castro) que nos ritos da magia negra ofuscam a magia escura dos juncos e dos pântanos e da noite em que Nino dormiu com a cabeça pousada no colo de Vicente e Clara. São os décors de Alphavillevisitados pelos foragidos da noite, em termos de cinema outra aliança secreta dos mundos de Ray e de Godard, dos amantes assustados do primeiro plano de They Live by Night ao Rimbaud citado por Belmondo, junto ao mar, no último plano de Pierrot le fou.

Morremos tanto pelo sangue que herdamos como pelo sangue que fizermos jorrar. É uma obscura consciência disso aquela a que o filme de Pedro Costa introduz, como se cada violação das regras ancestrais (em termos míticos e em termos de cinema) assumisse a terrível responsabilidade do parricídio, sabendo-o inelutável mas também fatal. Por isso este filme, repetindo o movimento do aparelho dito circulatório, se detém perante as portas que abre tanto quanto ou tanto como sobre as portas que fecha. É simultaneamente a afirmação da impossibilidade de fuga e a proclamação da necessidade dela. Não há saídas para frente, como não há saídas para trás. Mas se não fossem estas viagens, esta não seria possível. É sobretudo a memória delas que este filme bruxuleante cerca. Talvez com ele se feche o círculo mais secreto do nosso imaginário. Talvez seja apenas um esboço de outras formas que ainda não conhecemos.

Como em tempos escreveu Cristoven Paiva talvez não haja mais horizontes para estas imagens do que as nossas pálpebras. “Glicínia iluminada pela noite / E metade da minha solidão”. Só as pessoas muito antigas e as obras muito novas, podem evocar assim o sangue fresco e fundo. E cortar a negro os corpos que habitam.

Texto publicado em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-sangue.htm

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Pedro Costa sobre "O Sangue":

Nunca quis falar disso abertamente, são resistências que tenho, mas o pesadelo de O sangue tinha a ver com a minha infância. Vê-se que é um filme de um tipo solitário, ensimesmado e que viveu em salas de cinema sozinho. Uma história à Truffaut. Um miúdo que se abandona ou é abandonado pela família e que passa a viver em salas de cinema a partir dos oito anos e segue por aí, infância e adolescência afora. E é também um filme feito por uma pessoa que tem medo de perder o cinema, de que a infância e o crescimento das pessoas não tenham filmes, não tenham livros e não tenham cinema e de que a sua solidão não seja preenchida por isso. A biografia do realizador é essa. O filme contém uma parte escura, sórdida, aquela dos velhos credores, que eram pessoas com quem eu cruzava ou que eram do meu círculo familiar, que já eram pessoas assustadas. Esse medo hoje está cumprido: já há crianças que não sabem o que é o cinema. Sempre fui muito metafórico, mas sempre disse – principalmente quando me referia à Pide (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) –, que havia uma polícia, havia um silêncio quotidiano... metaforicamente era isso, o evacuar o cinema.

Texto publicado em "O Cinema de Pedro Costa". 

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