(Soylent Green. Richard Fleischer. EUA.
1973.)
Nova Iorque, 2022. É o que nos informa a legenda de
“Soylent Green”, mas o que ela quer situar e mostrar verdadeiramente é o fim
dos fins de uns inquilinos que passaram algures numa via láctea e não souberam
que fazer, o novo do novo que para aí remete, o inaceitável. Por isso, mais
perto de um Robert Bresson ou de um John Carpenter, a luz que se fecha e mais
evapora a cada segundo passado a pacto com a unificação a toda a força e
violência do estilhaço e do fragmento que corrói, do que visionarismos ou
criatividade da ficção dita cientifica ou da antecipação da humanidade e do
high tech, essa que normalmente limpa os prémios de efeitos especiais e
cataloga de freaks os autores envolvidos. Como chegámos a isto, o mundo era
melhor lá para muito atrás, eu estive lá, posso prová-lo, tudo isto são
interrogações e tristes afirmativas do mais velho ser que ainda paira e vai
resistindo num mundo que mais do que perto do colapso está insuportavelmente
possuído pela mais incrustada fealdade. Talvez por isso se chame Sol, e vá
dando uns toques latinos para mais disso se recordar, e tenha sido interpretado
por Edward G. Robinson, também no último papel da sua espantosa e combativa
carreira. Porque ali ele é o único jovem ainda, com sangue na veia e sede de
saber e comer bem comido. E é o que vai passando ao Thorn de Charlton Heston,
amor, conhecimento, beleza, o sabor antes de todo o pré-fabricado, plástico, de
todas as correntes de degustação asséptica, de limpeza corporal e moral e
sexual. Vendo agora, estamos de facto muito perto. Valha Deus aos macrobióticos
e aos saudáveis sem carne…
Uma simples maçã que parece reluzir fora do seu
esconderijo e exterminação, o espanto por um bife clandestino e com osso
suculento há muito apagado do mapa, saladinha verde na proporção contrária aos
raios queimados da panela de pressão que derreta as ruas, um refugado que
envergonha as barrinhas que se tornaram único fruto, meia garrafa de Whiskey do
divino gamada ao demo, uma colher rapada de morango desconhecido…um jantar a
dois entre o velho e o seu pupilo já maduro que olha para o que já foi habitual
e banal e ali é exotismo histórico…solenidade e ritual só a ver com o arroz
malandrinho e os jaquinzinhos que João César Monteiro sacralizava e convertia
na mais alta forma de sagrado nos seus sagrados banquetes. Música erudita
também já esquartejada pela eletrônica e muitos sorrisos matriciais e sibilinos
para um acto perfeitamente proibido, o de comer bem do que a terra oferece, a
animalidade ou bestialidade orgulhosa da sua origem. O embalo e o instante
perfeito ameaçados pelo fora e pelo bem geral que tudo calcou. Bem fundo
naquela casa de madeira partilhada e forrada a material alienígena, livros,
papel, material de escrita manual. Obviamente um último reduto a abater. Numa
hipotética actualização realizada por um vencido da vida que continua a socar
como a beber trocava-se a película pelo vídeo e pelos DCPs vigentes e era o
mesmo efeito? Como é que no tempo da Maria Cachucha se aguentavam riscos na
tela gigante demais, saltos daquelas coisas chamadas bobinas, quebras abruptas
e mesmo a possibilidade de incêndio? Eram felizes aqueles seres?
Até à morte de Robinson, talvez a mais fabulosa e
transcendentalmente terreste dos filmes de Richard Fleischer, grande cineasta
da morte, da arte de morrer e do percurso derradeiro, onde todos os pixels esborratados
da aparelhagem virtual que comeu peitos e coxas surgem devorados pelo que no
auge da grande arte e do autorismo seria só bilhete-postal. Naquela redoma
horrível e íntima o asseadinho vai ser vergado pelo onirismo, campos em flores
e beleza etérea de pacotilha são o aquecimento e a salvação possível, ao ritmo
da suavidade melodioso que hoje toca nos hipermercados. Momento em que o
sensível e o crescendo boquiaberto rima com a abertura fotográfica de imagens
congeladas da Magnum, que vão desde os sépias familiares da nossa descendência
e contentamento, de Ford (John ou Henry) até Faulkner ou similitudes confluindo
em fumos e lixo, fogo e máscaras do gás e do medo. Da sombra e do cinzel ao
Photoshop. Arco temporal e desembocar lógico para os cadáveres que nos darão de
comer, para os fornicamentos sem centelha, escravidão sem nome nem consciência.
Se nos momentos de “The Boston Strangler” a “10 Rillington Place” a cabeça
doente propagava ao meio, aqui, valha-nos Maria Santíssima, nem os mortos podem
aspirar ao eterno descanso ou a outra ascensão qualquer. Tudo a mata-cavalos e
no speed do áudio e do visual conforme? Precisamente não e tudo sequencialmente
e agrupado, puzzle em visão conjunta, para apreciarmos limpidamente e em
cristalina filigrana o êxito da expertise. E queima, queima, arde, como os mil
graus que na rua se adivinham. E só faz bem, se esta genial obra ainda puder
ser vista, será o melhor dos nossos remédios e das nossas rezas.
(Texto original: http://raging-b.blogspot.com.br/2013/12/nova-iorque-2022.html)
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