sábado, 31 de outubro de 2015
O BEM-ESTAR DO HOMEM, COMPORTAMENTO & A DIFUSÃO DO CONHECIMENTO
por Roberto Rossellini
A hora da verdade chegou para o homem. Algumas pessoas acreditam que os eventos conducentes ao fim da existência humana em nosso planeta já começaram. Exatamente o que acontecerá e quando é conjectura, mas homens que sabem mais a respeito dessas coisas do que a maioria de nós - aqueles que lidam cientificamente com o comportamento humano, a saúde mental ou a poluição do meio ambiente - concordam que a humanidade está lançando-se para a destruição em uma velocidade vertiginosa.
O envenenamento progressivo da atmosfera, das águas e de todo o meio ambiente, embora real o suficiente, não chega a ser o problema principal. O maior perigo do homem brota do seu comportamento (o qual é causador da poluição). É bem verdade que o comportamento humano torna-se cada vez mais patológico, como apontariam alguns exemplos da vida cotidiana. A popularidade de uma psiquiatria superficial e diletante indica ao menos que estamos cientes das aberrações no nosso comportamento. Há o crescente conflito entre gerações, entre pai e filho. Além disso, os absurdos do nosso comportamento sexual.
Tornou-se costumeiro passar a promover tudo isso como evidência da nova liberdade do homem e um retorno à inocência; na realidade, isto ilustra o grau em que nosso comportamento animal vem esmagando aquilo que nos torna humanos. O tráfego caótico nas ruas e a carnificina diária nas rodovias (a agressividade do homem está aproximando-se de um nível suicida!) são produtos diretos de um comportamento aberrante. E há ainda a conduta baseada em um mal entendido e obsoleto sistema econômico e jurídico, em orgulho, egoísmo e preconceito, todos os quais são de caráter anti-social. O paradoxo é que nós, que somos criaturas sociais, continuamos cometendo ações que parecem voluntariamente destinadas contra nossas próprias vidas e que não possuem nenhuma relação com a nossa inteligência. Afinal de contas, o intelecto, tendo a chance de manifestar-se por si só, é uma medida exata do que é autenticamente humano em nós. Como disse Bergson, a inteligência parece caracterizar-se por uma incompreensão natural da vida. O que escrevi até agora talvez possa parecer que augura um discurso moralizador, mas não se trata disso. Apenas citei alguns fatos reais que precisam ser analisados cientificamente em conjunção com aquilo que nós já sabemos. (Etimologicamente, “ciência” deriva do latim sciens, “saber”.) Por exemplo - e as razões para isso são muitas - a sociedade humana mudou profundamente nos últimos anos: a mortalidade infantil foi reduzida a um número muito baixo; o número de vidas salvas aumentou; antibióticos e vacinas restringem epidemias; as técnicas cirúrgicas têm se desenvolvido das de transplantes para as de reanimação. O resultado é que a média de vida está aumentando, e de tal modo que a sociedade de hoje inclui uma vasta gama de pessoas de todas as idades.
No passado, quando o tempo de vida era mais curto, os idosos eram raros. Eles foram honrados, reverenciados e ouvidos pela autoridade proveniente de suas experiências. As palavras “senador” e “signore” vêm do latim senex, senis ou “velho”. Visto que a mortalidade infantil era alta, os homens que sobreviviam aos acasos da infância e da puberdade atiraram-se na vida, dando vazão a toda a sua vitalidade. Os homens sentiam contentamento por emergirem da idade mais precária de suas existências, mas também sabiam que, em poucos anos, estariam destinados a serem eliminados pela morte.
Para entender como a sociedade mudou significantemente, basta lembrar que até 1.800 não havia mais que 800 milhões de pessoas na Terra e que, no século seguinte, esse número dobrou. No início do século XX, de fato, numerávamos um bilhão e 600 milhões. Em cerca de cinqüenta anos duplicamos novamente (3 bilhões e 200 milhões) e esse número será dobrado nos próximos 25 anos. Até o final deste século, vamos numerar mais de seis bilhões, e no ano de 2013, em torno de 13 bilhões!
Revoluções em nosso modo de vida também foram aceleradas: levou 40.000 anos para chegarmos à Revolução Agrícola, menos de 10.000 para alcançarmos a Revolução Religiosa, outros 1.600 anos para chegarmos à Revolução Científica, e menos de 300 anos para entrarmos na Revolução Eletrônica. E o ritmo continua a acelerar. Há quinze anos a idéia de conquistar o espaço interplanetário parecia um assunto para a ficção científica; neste ano, um homem conduziu um veículo na lua. O futuro se fecha sobre nós com uma velocidade meteórica. Seus efeitos são traumáticos. No passado, o futuro parecia distante. O homem dispunha do luxo da profecia, e recebíamos alertas de gráficos antes que situações de emergência ocorressem. Hoje o futuro está diante de nós e ninguém se atreve a encará-lo. Entender isso ajuda a explicar aquilo que, de outro modo, pode parecer apenas um comportamento aberrante.
Há, por exemplo, uma nova necessidade de selvageria. Barbas e cabelos compridos perderam o sentido que tiveram no século passado, quando eles eram símbolos de masculinidade, agressividade de espírito e romance. Os despenteados de hoje são justamente o contrário: são desnorteados e parecem prontos para desertarem a qualquer momento da humanidade. (Ainda mais expressivo deste “escapismo” é a tendência em direção ao unissex.) A disseminação de drogas que entorpecem e rebaixam o intelecto indica a extensão do nosso temor à parte mais humana do cérebro, a parte que nos faz pensar, que nos dá escolha e razoável capacidade de decisão, consciência e responsabilidade. São fatos que devem ser cuidadosamente avaliados. Precisamos olhar para os nossos padrões de comportamento aberrante com compreensão e compaixão, pois são alertas de que algo deve ser feito que nos redimirá e nos permitirá retornarmos ao ser humano; isto é, sermos conscientes, pessoas responsáveis e dotadas de julgamento.
Outrora o homem sobreviveu a uma aventura igualmente assustadora e emocional. Penso em 50 ou 60 mil anos atrás quando nós, homo sapiens, aparecemos na Terra. O cérebro naquele momento, com um número de neurônios equivalente a 2³³, diferenciava-se nitidamente daquele do nosso progenitor Pithecanthropus erectus, cujo número de neurônios fosse talvez o equivalente a 2³². A passagem de 2³² para 2³³ representou uma vasta mudança, deixando o homem vítima de temores que se difundiram a partir de sua inteligência expandida. A nova e repentina consciência nos transformou em seres que, ao invés de viver de acordo com a Natureza, começou a viver de acordo consigo, de acordo com a sua própria vontade e fantasia. No início, contudo, o desnorteamento deve ter sido imenso. (A massa cinzenta, a parte de raciocínio de nosso cérebro, desenvolveu-se por último, envolvendo e dominando o encéfalo subcortical, a parte original do nosso cérebro, a parte mais animal que regula as funções fisiológicas, tropismos e instintos.)
A invenção da linguagem deu ao homem recursos para romper com a vida de rebanho e encaminhar-se a uma vida social com suas novas formas de lidar com obstáculos e temores de dispersão. Sem defesas naturais, sem recursos ou uma maior proteção de pele, presas ou garras ou, ainda, uma aparelhagem especial de músculos, o que nós pobres bípedes poderíamos fazer para sobreviver em um ambiente hostil repleto de perigos os quais, agora, podíamos verificar e avaliar intelectualmente? Certamente devemos, naquele momento, ter ansiado um retorno à animalidade. Mas a inteligência nos salvou. Junto da linguagem veio a alegria de expressar capacidades criativas e senso de direção; isso nos ajudou a memorizar nossas experiências, a classificar, separar e sintetizar nossas observações e então transmiti-las. Ela certamente nos deu, como disse um escritor, a exultação de uma segunda criação. Isto acontecia há 50.000 anos, quando quase 4½ milhões de nós homo sapiens vivíamos nesta terra, divididos talvez em 150.000 pequenas comunidades de cerca de trinta pessoas cada. Através da inteligência, começamos a estabelecer a nossa dominação sobre a natureza, o que por sua vez iniciou a explosão demográfica. Com a humanidade concentrando-se em áreas adequadas para a agricultura, a comunicação entre as pessoas tornou-se cada vez mais difícil. Habilidades dialéticas diminuíram, e linguagem fervorosamente criativa converteu-se em eloqüência (ou “meios de persuasão”, como indica a etimologia da palavra). Há cerca de 5.000 anos atrás, quando 2 bilhões de homens estavam envolvidos na construção da Babilônia, um diálogo exato - comunicação entre cada um e todos - não era mais possível. A partir de então a retórica desenvolveu-se rapidamente. Os sofistas se multiplicaram e suas ferramentas mais persuasivas, o prazer e a emoção, deixaram grandes massas de homens perdidas e confusas.
É um fato comum que o homem, como animal, precisa satisfazer sua fome, sede, cansaço e apetites sexuais; contudo, isso apenas não basta para nos sustentar. Para o homem, o equilíbrio depende acima de tudo da satisfação de necessidades especificamente humanas: estabilidade, correlação, transcendência e identidade. Fortíssima é a necessidade de um senso de orientação e devoção. Quando nos sentimos perdidos e quando, pela falta de fatos e conhecimento, somos incapazes de satisfazer as nossas necessidades humanas, construímos pequenas pseudo-realidades, pequenos mundos, conchas em que nos fechamos e que nos dão a ilusão de satisfação. Superstições, mitos, crenças e dogmas são abrigos alternativos aos quais nos agarramos desesperadamente.
A educação da maneira que foi praticada até agora complica ainda mais as coisas. A raiz latina da palavra, educere, também significa “castrar” e certamente a educação começa pela castração, pela simples razão de que ela não consegue dar conta da singularidade de cada ser humano. Deixe-me explicar. Sabemos, e isso pode ser provado, que cada indivíduo, embora seja similar a outros homens, é distinto. Cada filho do mesmo casal é diferente dos seus irmãos e irmãs, ainda que cada um possua alguma semelhança com seus pais. Possíveis semelhanças equivalem ao número 10 elevado à potência de 2 bilhões e 400 milhões. (Para se ter uma idéia tímida do que isso significa, retenha que 10 à potência de 8 é um bilhão!). Assim, uma variedade infinita de indivíduos, cada um com suas próprias tendências e caprichos, qualidades específicas, talentos, lógica e gostos, resulta em uma contribuição contínua e essencial para a riqueza da inteligência humana, fato que a educação de massa, tal como é praticada, é forçada a ignorar. Vejam a situação como ela realmente é: um homem é mais intuitivo, outro mais matemático; um terceiro é um sonhador, um quarto é sólido com poucos caprichos; outro é cheio de imaginação; um sexto é astuto e outro cheio de humor; um oitavo tem um sentido dramático de vida, e assim por diante, em uma série de variantes infinitas até as formas das características faciais, mãos e pés, de tamanha variedade que cada um de nós consegue reconhecer um amigo mesmo estando em uma multidão.
A educação também castra por escolher certos estilos de vida e certos modos de pensar que procura nos impor como modelos. Mas há ainda mais: os sistemas educacionais, conforme são orientados hoje em dia, preocupam-se em refazer o homem de ontem ao invés de construir o homem de amanhã. No passado esse sistema educacional pode ter respondido a certa lógica, porque a vida, as idéias e as civilizações permaneceram estacionárias por séculos. Numa sociedade estática o exemplo do homem de ontem era utilitário. Hoje, no entanto, a vida nos projeta para o futuro e temos que repensar e modificar nossos sistemas de ensino para nos prepararmos para aquilo que está por vir. A função da história seria, então, não uma celebração do passado, mas usá-lo como um guia para guiar-nos, e guiar-nos melhor, em direção ao futuro. Devemos ter conhecimento do que já foi feito, mas apenas com o intuito de irmos além. Devemos evitar a formação (como tem sido o caso até agora) de falsas orientações que nos dão conforto, não importa se impelidos pela vaidade, fraqueza ou covardia.
O homem deve estar ciente de que a vida para seres inteligentes é a recorrência contínua do início de uma excitante aventura na qual devemos constantemente reorientar-nos. Neste contexto, deve-se dizer que a educação - que eu prefiro chamar de difusão do conhecimento por achar que é uma expressão mais útil - não deveria mais ser considerada uma preparação para se viver, mas um componente permanente da vida. (A própria UNESCO acabou por aceitar esta maneira de se pensar a questão.) A difusão do conhecimento deve envolver os adultos imediatamente, pois eles também devem estar preparados para reorientarem-se, já que é no ambiente familiar que o jovem aprende e cresce.
A ironia é que cada tentativa de reorientação se vê frustrada pelos avanços enormes na comunicação cuja pretensa “informação” se faz presente opressivamente a cada minuto do nosso dia. É minha opinião que o mais grave problema de poluição do homem hoje vem da mídia. Considere a forma como eles nos envenenam e, ao mesmo tempo, afetam nosso comportamento. Os produtos que a mídia nos oferece são sempre os mesmos, mesmo quando pretendem ser diferentes na forma. Eles são sofisticados e retóricos; em outras palavras, divertidos e comoventes. Na maioria das vezes a mídia nos alimenta com simples estupidez, inútil para a mente, e ainda mais prejudicial por fornecer as bases da evasão, da deserção e do comportamento irresponsável. Freqüentemente, a mídia estimula nossas atitudes destrutivas ao alimentar o cinismo ou o pessimismo, produtos tóxicos porque idealizam e, por conseguinte, nutrem tanto a superficialidade como o falso intelectualismo. Isso me remete a uma declaração do Dr. Omar Moore: “Aos dois impulsos elementares que norteiam a nossa conduta - o medo e o desejo - adiciono um terceiro, o falso conhecimento.” Se isso for verdade, podemos entender o efeito paralisante da pseudo-intelectual, alegadamente “artística” produção da mídia.
Até mesmo as “notícias” como nos são veiculadas criam danos. Quem trabalha, como eu, no campo do cinema e da televisão, sabe que em “noticiários” televisionados ou filmados, assim como na imprensa de informação, deve-se aderir a certas regras que se tornaram moda. A busca interminável pela novidade restringe o homem ao sensacionalismo, o momentâneo e o controverso. O que, no meio tempo, aconteceu com os noticiários, que deveriam nos permitir a correção dos nossos critérios atuais e nos reorientarmos? Toda a operação da “informação” está contaminada por uma doença crônica sutil: a propaganda. Porém, ainda pode haver uma importante reviravolta neste campo. Percebemos indícios aqui e ali: em determinados programas televisivos na Itália; alguns na França; e a criação da difusão pública nos Estados Unidos. Estes indícios são encorajadores, e há outros. Meu sonho, no entanto, é de que as vozes poderosas do rádio, da televisão, do cinema e da imprensa se tornassem veículos que, além de nos entreter, também difundissem o conhecimento; pela invenção de novas fórmulas eles poderiam servir ao reestabelecimento de um diálogo entre cada um e todos. Se um dia chegássemos nisso, como seria inebriante participarmos de um novo e vasto diálogo humano.
Gostaria, neste momento, de dizer algumas palavras aos meus colegas. Expressei minhas opiniões sem intencionar qualquer acusação. Se aquilo que eu disse tiver valor crítico, talvez leve cada um a um exame de consciência ou auto-crítica (que são substancialmente a mesma coisa). Por isso, examinemos o problema e nos perguntemos: neste momento histórico de enorme confusão em que perdemos contato com uma galopante realidade, seriam os meios de informação, como agora utilizados, os principais veículos da infecção que agrava a patologia do nosso comportamento?
Texto retirado do site http://www.focorevistadecinema.com.br/jornalrossellini.htm
(Originalmente publicado na revista Film Culture nº 56-57, 1973, pp. 17-23. Traduzido por Felipe Medeiros)
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