quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Richard Fleischer


Não podemos contar com Richard Fleischer, nascido no Brooklyn em 1916, filho de um dos mestres da animação em Holywwod, criador de Betty Boop e Popeye, rival de Walt Dysney, etc, se quisermos gemer de forma romântica , hipócrita ou imatura sobre os obstáculos intransponíveis aos quais teremos de enfrentar quando carregamos um nome célebre e nascemos célebres.

Assim Fleischer inicia o livro que escreve sobre seu pai ( Out of the Intwell, 2005), livro que nos informa abundantemente sobre sua família e suas origens, complementando suas memórias( Just tell me when to cry, aparecidas em 1993): ‘Dizem que é difícil ser o filho de um homem célebre, que vc vive à sombra dele, que as comparações com ele são insuportáveis. Bem, eu fui o filho de um homem célebre, e não achei nada difícil esta experiência. Na verdade, foi formidável. (...)Longe de dolorosamente viver à sua sombra, eu me aproveitei da chance de poder me banhar na luz de sua glória.Quando eu era pequeno, bastava dizer ao dono de um cinema que eu era filho de Max Fleischer para ter uma entrada gratuita.”. E Fleischer continua, neste tom amável, reconhecido, sereno, a evocação da carreira de seu pai e, indiretamente, da sua.

Dirse-ia que o fato de ter nascido num meio confortável acentuou ainda mais neste homem qualidades sem dúvidas inatas: a serenidade de suas relações com seu próprio ego, a discrição, a modéstia, uma forma de equilíbrio íntimo na forma de trabalhar, de abordar e aprofundar um tema, do mais anódino ao mais atroz. Antes mesmo de abordar o que em sua obra releva da noção de autor no sentido estético-filosófico que este termo adquiriu no interior da expressão “política dos autores”, convém encarecer em Fleischer o autor de uma série de sucessos, o superdotado da mise em scéne que, em cada gênero que ilustrou, ( e Deus sabe o quão numerosos foram!) , buscou, consciente ou inconscientemente, mas sempre com a mesma paradoxal humildade, a inscrever o filme mais bem realizado, mais desconcertante, mais inventivo , mais definitivo. A tal ponto que muitos espectadores que mal conhecem seu nome reservam à camada mais profunda de suas lembranças cinematográficas um lugar à parte para uma ou outra obra-prima sua. Citemos casualmente alguns de seus sucessos: devemos-lhe entre outros o melhor filme de aventuras ( Os Vikings, documental e lírico, e jamais ultrapassado em seu gênero), a melhor adaptação de Jules Verne ( Vinte mil léguas submarinas), obra que se constitui também em um dos melhores filmes para crianças na dupla acepção do termo, ou seja: filme que deve encantar a crianças e adultos; um dos melhores filmes de guerra jamais realizados ( Between heaven and hell) , com seus personagens perturbadores, ambíguos, descritos com uma audácia insólita para a época, qualidade que vamos reencontrar em La fille sur la balançoire, evocação brilhante de um fato criminal e mundano. Não esqueçamos Soleil vert, fábula de ficção científica ecológica, intrigante e eficaz, e muito menos Barabbas talvez o melhor filme bíblico dos anos 60, filme ao mesmo tempo subestimado e muito imitado, que aqueles que o puderam ver em sua versão original em 70 mm jamais esquecerão.
Em todas as instâncias age o virtuosismo de Fleischer, tanto nas profundezas como nas superfícies. Ora ela delimita definitivamente certa tendência de um gênero afirmado ( a claustrofobia do filme noir encontra sua ilustração limite em The narrow margin, rodado em sua maioria em um vagão de trem), ora ela abre possibilidades que irão servir tanto a obra de Fleischer quanto a de outros. Desde 1949, com Follow me quietly, Fleischer inaugura, no interior do filme noir, a narrativa baseada na busca de um assassino psicopata ( ou “serial killer”), fundando um gênero à parte, que ele retomará em O estrangulador de Boston, e em The Rillington place, obra-prima absoluta na reconstituição documental de um incidente atroz, que coloca em causa a própria noção de humanismo. Em Viagem fantástica, ele lança o filme de miniaturização que se passa no interior do corpo humano, tentativa que Joe Dante vai concretizar de maneira brilhante vinte anos mais tarde, com Adventure interiérieure.

Durante muito tempo, acreditei que Fleischer havia aperfeiçoado seu virtuosismo nos filmes de ação de orçamento precário dos anos 40, feitos na RKO, em Eagle Lion. De fato, isto não é verdade. Ele já estava em seu primeiro filme, e desde este, Child of divorce ( 1947), permaneceu invisível por anos ( este primeiro Child eu vi apenas em 1980, quase um quarto de século depois da descoberta de Fleischer , autor brilhante de Violent Saturday e La fille sur la balançoire). Em Child of divorce, todo Fleischer já está presente, em tudo o que possui de melhor e mais original. ( É preciso sempre escrutar com atenção os primeiros filmes dos grandes cineastas: são com frequência eles que nos informam mais essencialmente sobre eles). Child não é de forma alguma um filme de ação, mas antes uma espécie de poema sociológico, ao mesmo tempo perspicaz e comovente, que mostra as conseqüências do divórcio de seus pais em crianças , deixadas pouco a pouco, não sem uma certa hipocrisia, num abandono afetivo quase total. Child of divorce antecipa os filmes ulteriores de Fleischer ao revelar em plena luz suas intenções ocultas, a saber, que para ele a utilização, a mise en valeur ( a colocação em relevo) características do filme de ação ( tempo vívido e cativante, acuidade e riqueza narrativas, crueldade insidiosa, violência) são apenas um meio eficaz para penetrar em profundidade em uma realidade moral e social que o interessa antes de tudo. E todo progresso técnico que possa servir a esta ambição, como o Cinemascope, será bem-vindo.
Como Preminger, Fleischer vê imediatamente como o novo formato pode ser usado para enriquecer suas intenções. Ele vai ajudar, por exemplo, em Violent Saturday a exteriorizar os diferentes aspectos de um tecido social particular, religando mais estreitamente e de forma mais natural , as evoluções dos personagens uns em relação aos outros no interior do plano, e permitindo que bom número de planos, aparentemente simples a visualizar, tenham de fato a mesma densidade e complexidade de certos planos seqüência ultra-sofisticados realizados no antigo formato ( 1’66). Com efeito, nos melhores filmes de Fleischer a descrição do tecido social onde evoluem os personagens ( ou seja, a mise au jour- a atualização- de um conjunto de segredos, de hierarquias, de lutas pelo poder, mais ou menos dissimuladas, a revelação das relações que cada um, de um extremo ao outro da escala social, entretém com o tema onipresente da violência) não é apenas um cadre, um pano de fundo, um cenário mas o próprio tema da obra.
Nesta ótica, Fleischer se interessa tanto pelo devir dos indivíduos quanto das sociedades. Poeticamente, sua imaginação dramática se curva às vezes a um esquema, ao mesmo tempo descritivo e explicativo, que fascinou gerações de historiadores e de artistas: o esquema ou ciclo que encadeia e une irremediavelmente grandeza e decadência.Em The vikings, este esquema chega a um acréscimo de fausto e de beleza pois aqui a decadência ( e a morte) do Viking agrega ao tema uma segunda beleza, uma segunda grandeza que vem se reunir à primeira. Ao contrário disso, em The new centurions, o olhar documentarista do autor pousa sobre uma decadência da noção de civilização, redundando na desordem trágica de uma sociedade que pretende viver sem interdições e sem regras ( “The donts are dying” é o leitmotiv da narrativa). E o filme aparece como o termo desta “sociologia desoladora” de Fleischer, inspiração à qual devemos uma parte de sua obra. Durante quatro décadas, apoiando-se sobre a diversidade de gêneros, tons, orçamentos que estavam à disposição na Cidade do Cinema e que faziam sua força, a obra de Fleischer é um dos exemplos mais brilhantes e criativos do milagre hollywwodiano. O menos espantoso nesse caso é que Fleischer tenha podido participar deste milagre até meados dos anos 70, ou seja, numa época em que o cinema de Hollywood iria ser definitivamente enterrado, obedecendo assim ao esquema “grandeza e decadência” que Fleischer tinha utilizado várias vezes em seus filmes.

Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Texto extraído de: http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2009/06/richard-fleischer.html

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