Por que acho que Tourneur é o maior dos cineastas? Tomemos como elementos de resposta os dois únicos filmes que tivemos a chance de ver dele ultimamente: Leopard Man e Wichita. De Leopard Man, pode-se dizer que é o melhor realizado, o mais perfeito e representativo da série dos três filmes produzidos por Val Lewton (é o último. Os dois primeiros são Cat People e I Walked with a Zombie). Um cenário praticamente único, uma rua, uma rua principal. Figurinos estereotipados, atores que tem quase todos o mesmo talhe e os mesmos traços. (...). Enfim, quase todos. Uma exceção: um personagem- central, principal ele também, embora secundário nos créditos- que organiza o roteiro, que dá as cartas, que tem as cartas na mão. Desta mediocridade, desta pobreza de contrastes, Tourneur tira o máximo, o filme que mais perfeitamente dá medo da história do cinema: a estrutura da história (uma rua, uma mulher que anuncia o que vai se passar, alguns personagens em miniatura, como bonecas feitas do mesmo molde) não é nada além disso (nenhum a priori teatral ou linear, nenhuma ambiência onírica e poética convencional), isto que se sabe o tempo todo- confusamente- e ao longo do qual se avança, enquanto a monótona espera por alguma iluminação que viesse pôr um termo ao nosso medo nos mantém na angústia total, a angústia ordinária. Angústia causada, durante todas as etapas deste trágico e triste trajeto, por um galho de árvore que se quebra sob o peso de um leopardo assassino e invisível ou um rastro de sangue que escorre sob uma porta. Tudo sob uma transparente luz, translúcida.
Passa-se
de outra maneira, e de forma semelhante em Wichita. De outra forma porque se
trata de um roteiro complicado, (roteiro que Biette errou ao tomar ao pé da
letra, de forma tão sisuda, em primeiro lugar porque não é um roteiro muito
bom, mas também porque Tourneur não se importa em nada com temas e tramas, só
se trata para ele de filmar o interstício: o espaço, o vazio, o ar, o intervalo
entre os atores, com o cenário, e até mesmo o espaço entre os atores e seus
personagens, seus figurinos, suas roupas), um roteiro complicado e um filme
entre dois orçamentos: nem a superprodução, nem o filme B, um filme monstro,
uma aberração. Semelhante porque Wichita é, devido à sua hibridez, livremente
aceita por Tourneur- que nunca, com uma exceção ou outra, recusou um projeto de
filme- do roteiro e de suas condições de filmagem, um filme sobre o tédio e um
filme onde nos entediamos. Não como se deve entediar - é algo habitual-
com os grandes clássicos da pretensa história do cinema. Nenhuma relação. Com
freqüência se disse - e com freqüência é falso dizê-lo- que todo grande filme é
um documentário sobre sua própria filmagem. Neste filme isso é verdade: um
homem de mais de quarenta anos (Joel McCrea), sem dúvida um homem inteligente,
sensível, orgulhoso, obrigado a se fantasiar de Wyatt Earp, o célebre
justiceiro do Oeste, a fim de impor a lei e a ordem na pequena e próspera
cidade de Wichita.
E
tudo isto diante dos olhos do seu velho amigo Jacques Tourneur ( com quem ele
rodou,seis anos antes, um pequeno filme intimista, Stars in My Crown, uma série de vinhetas sobre a vida de uma
pequena cidade americana, um filme que é para ambos a mais bela lembrança e o
mais belo momento de suas vidas...), um velho amigo com olhar cético e
divertido (mas sempre correto) que devia estar se perguntando, porque (...) “
ele adorava a idéia do filme: homens que conduzem rebanhos durante meses e
esperam muito tempo pra tomar um trago. Quando o fazem, bebem muito e quebram
tudo. É real. Isso se passou, na época”, um velho e divertido amigo que devia
estar se perguntando, diante de Joel McCrea, incomodado em suas roupas de
justiceiro em missão implacável, como ao mesmo tempo e de forma bem correta filmar
as inépcias de um roteiro para crianças retardadas, e esta violência que
explode mortalmente e que, para ele, constitui a força da fábula. Na verdade,
Jacques Tourneur não está se perguntando por nada, porque ele escolheu: ele
filma ao pé da letra e de encomenda os protagonistas entediados e fantasiados
desta mascarada histórica que reconstitui as historiazinhas verdadeiras do
Oeste folclórico (e nos entediamos como eles ao vê-los ocupar da melhor forma
que lhes é possível todo espaço impossível a preencher do Cinemascope, que no
entanto Tourneur consegue ocupar inteiramente: mas nesse caso trata-se de um
tédio formidável, de uma inteligência e precisão fotográficas como só nos podem
mostrar dois mecanismos que possuem para nós, hoje em dia, status de pré-história,
mais de cem dentre os mais belos- e dentre os piores- westerns. Tudo está no
quadro. Nada de fora de campo. Nada existe- e isto é mais do que suficiente-
senão a complexidade fiel e minuciosamente transcrita de um découpage
impossível de se acreditar mas possível- e para Jacques Tourneur tudo é
possível- de ilustrar,de filmar, tal qual); mas Tourneur filma também a morte,
em pessoa: no quadro de uma janela, arrastados por duas balas perdidas e precisas,
uma criança e uma mulher, (culpados simplesmente por serem parentes dos atores
do drama), passam, num piscar de olhos, na velocidade mais terrível e mais
inexorável, do estado de vida ao estado de morte. O que ainda se movia há um
instante é marcado definitivamente pelo selo da imobilidade, da rigidez. A
morte é a parada brusca e irreversível de toda vida, de todo movimento. E não
há nada mais a dizer. “Para Jacques Tourneur, os personagens de uma história
são perfeitos desconhecidos, cujo mistério não deve ser esclarecido ou
explicado” (Jean Claude Biette). Acrescentemos: nada existe além da fidelidade
a mais escrupulosa possível ao découpage ao qual Tourneur escolheu se submeter,
nada existe além do que está na tela, no quadro. O cinema de Jacques Tourneur é
sim o cinema do invisível, mas de um invisível que é capaz de se ler e se
desenhar sobre a tela: os traços estão lá, as pegadas, e as sombras, e basta,
em seu pequeno fora de campo apaixonado e pessoal, não velar os próprios olhos
diante da persistência do real, destas manchas do real que são as efetivas
marcas sobre a tela de uma experiência única do invisível; basta olhar o filme,
isso dá medo, é assim, assim se vê.
Tourneur
não existe. No momento de seu esplendor (ou seja, para ele, quando filmava em
Hollywood e, para nós, quando o descobrimos, deslumbrados, no começo dos anos
60, nos cinemas dos bairros podres, e sob forma de Versions Françaises tão
podres quanto), ele já estava além. Além: inconsciente de sua própria
importância, arrasado de tanto cinema, mas muito intoxicado de admiração por um
modelo por essência fora de alcance (seu pai, Maurice, cineasta prestigioso que
Jacques, toda sua vida, se persuadiu de jamais poder igualar),e sobretudo
distanciado de seus colegas, os mais dotados artesões do filme B (Ulmer, Dwan,
Heisler, Ludwig), por uma espécie de orgulho de último minuto que sempre lhe
permitiu saber que ao fim de contas o gênio era ele.
(...)
Jacques Tourneur: “Reparei que, na maioria dos filmes, os atores tem tendência
a gritar. O mesmo diálogo, dito bem mais baixo, é melhor apreendido, tem mais
intensidade. Fora isso, o próprio som é muito importante, não gosto de misturar
os sons. Sigo sempre de muito perto a sincronização e montagem sonora de meus
filmes. Às vezes tomo grandes liberdades. Se alguém vai falar, se levanta ou vai
caminhar, corto todo o som e não se ouve o ruído dos passos. Se um malfeitor
entra numa casa e vai subir uma escada, sei que, depois eu ir embora, os
técnicos vão manter todos os sons, a escada, a porta, os passos. É por isso que
faço minha própria dublagem de som no estúdio. Assim que o ator terminou de
falar ou de abrir a porta, corto o som e ocorre um grande silêncio, enquanto
ele atravessa a sala ou sobe a escada. Assim, eu sei que quando o filme estiver
terminado e eu não estiver mais lá, os técnicos não farão besteira na dublagem.
Com freqüência, faço isso: deixo primeiro o ator interpretar a cena, como ele
quiser. Depois, lhe digo: Muito bem. Refaça exatamente a mesma coisa, mas fale
duas vezes menos forte. Me criticam dizendo que dessa forma minhas cenas ficam
um pouco sem brilho, inexpressivas. Talvez tenham razão, mas acredito que isso
lhes acrescenta, de qualquer modo, um elemento de verdade”.
Tudo
está dito. Que outro cineasta hollywoodiano ( salvo talvez John Ford, que
desconfiava de tal maneira dos montadores que evitava filmar um metro de
película a mais, que poderia servir para forjaram uma outra versão às suas
costas), que outro cineasta desenvolveu um sistema holywoodiano bis, duplo-
sempre preservando-o previamente das alterações que Holywood número 01 com
certeza decidiria impor? Nenhum, não conheço outro.
O
mais miraculoso é que a obra de Tourneur permanece exatamente igual ao que ele
descreve. Revejam Appointment in Honduras
(se puderem arranjar uma cópia): efetivamente, vocês vão ouvir atores, Ann
Sheridan em particular, que não gritam. Coisa rara: personagens que murmuram
seu texto. E, claro, toda a mise en scéne que se segue: uma maneira única (e
inimitável) de filmar os atores como dóceis fantasmas, sombras familiares. Esta
ternura pelos atores- espectros, aliada a uma insensata preciosidade do
trabalho sobre as cores (a robe amarela de Ann Sheridan, que literalmente
desbota, eclipsando tudo ao redor dela), é isto o que ainda hoje constitui o
gênio inacreditavelmente tímido do cinema de Tourneur.
Um
cinema que, confessemos tudo, nos é a cada dia mais inútil, a nós, que esperamos
tolamente dos filmes que não continuem a se atolar neste neo-classicismo
amorfo, último sobressalto de cine-teleastas desesperados por terem perdido a
receita ( estúdios+ grana+ engenhosidade dos artistas-artesões + inventividade
de uma arte industrial em pleno boom) do velho verdadeiro cinema clássico. Um
cinema cuja fase perversa mais consumada é representada por Jacques Tourneur.
Então,
põe-se uma única questão: que fazer desses filmes tão perfeitos, destas
essências de obras-primas, quando por acaso os encontramos? Esta questão se pôs
no domingo passado (exatamente, 28 de outubro de 1985) quando Brion exibiu no Cinéma de Minuit, na FR3, um dos mais raros
filmes de Tourneur, Canyon Passage (1946).
(...) este Tourneur trata-se de uma absoluta maravilha. Mas para realmente
vê-lo, para apreciar sua inteligência clássica, que esforço é preciso fazer!
Esquecer de forma ativa os filmes com que o cinema e a tv nos galvanizam há
anos, desaprender os “frou-frous” de imagens e de sons que nos jogam na cara em
golpes furiosos de zooms, mudar o ritmo da visão. É preciso lavar os olhos.
Unicamente sob esta condição (que é mais fácil de enunciar que de “preencher”)
pode-se penetrar em Canyon Passage:
da abertura mizoguchiana (em primeiro plano, a chuva respinga sobre o teto, um
cavaleiro se aproxima,a câmera desce para se pôr à sua altura) a uma sucessão
de preguiçosas vinhetas que desfilem no ritmo mais speed imaginável - o ritmo
da elipse. Disputas de sombras sobre um muro, um ladrão visto de relance que foge
por uma janela quebrada, paisagens de sonho atravessadas com a velocidade do
technicolor: todo Wenders aqui desfila em trinta segundos! E ainda: peso
opressivo dos corpos, sentimentos em suspensão. Como nesta inacreditável
provocação de Bryan Donlevy a Dana Andrews: “Você faria melhor?”, ao acabar de
beijar sua noiva, Susan Hayward. E Dana não perde tempo: tasca em Susan um
guloso beijo na boca, Brian permanece imóvel, seu corpo atarracado teso. A moça
em um instante é eclipsada. Passamos aí a uma outra coisa.
E
ainda: uma casa que se constrói coletivamente, convivialmente – o sentimento da
felicidade que perpassa ( talvez pela primeira vez) sobre a tela. Índios
seminus que subitamente aparecem- como se jamais tivéssemos visto índios no
cinema. E assim vai. Que outro cineasta saberia, no tempo de um único filme,
inventar uma cena cega na qual um homem (Ward Bond) despeja toda sua fúria
sobre um poste; uma outra onde uma idéia nasce literalmente sobre um rosto (Brian
Donvely decide tornar-se assassino); uma outra cena, que capta o olhar
terrificado de duas crianças (com a velocidade da bala assassina- de criança
também- de Wichita)?
Ninguém.
Não há ninguém à sua altura.
Tourneur
não existe, ele é o único. Não o último cineasta: o único. Canyon Passage: ao mesmo tempo uma saga americana, um western
documentário, uma história de paraíso perdido, uma epopéia doméstica, o afresco
de mil desejos que se entrecruzam e o mais belo melodrama homossexual jamais
encenado.
Ninguém
filmou assim antes, ninguém filmará assim depois. É isso. Lumière inventa as
imagens. Tourneur se encarrega de destruí-las. Cinema, anti-cinema, depois
chega. Bom dia, Madame Televisão.
Jacques
Tourneur: Alguém disse outro dia uma coisa divertida: “uma flor que colhe a si
mesma comete um suicídio”. (Câmera/Stylo número 6, maio 1986).
Louis
Skorecki.
Tradução: Luiz Soares
Júnior. Texto republicado em http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2009/08/jacques-tourneur-por-louis-skorecki.html
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