Antes
de tudo, não esquecer que se trata aqui de um filme essencial, não apenas na
carreira de seus dois principais artesãos (o produtor Val Lewton e o realizador
Jacques Tourneur), na história do gênero fantástico mas também e sobretudo na
evolução do cinema como um todo. Borges consagrou um de seus estudos, “O pudor
da História”, a mostrar que as datas mais importantes da história não são
forçosamente as mais espetaculares. “Veio-me a suspeita, escreve ele, que a
história, a verdadeira história, é mais pudica, e que as datas essenciais podem
também permanecer por longo tempo secretas”. Se isto é verdadeiro em relação à
história política e social, o é ainda mais em se tratando da estética. Cat people representa no cinema uma
destas datas essenciais e secretas. A gênese do filme é demasiado conhecida, já
que Jacques Tourneur e o roteirista DeWitt Bodeen a contaram (respectivamente,
em Présence du Cinema número 22-23 e
Films in Review, 1963) e que Joel Siegel, em seu notável Val Lewton. The Reality of Terror, recolheu os testemunhos mais
próximos do produtor. Charles Koerner , o novo responsável pela RKO, pede a Val
Lewton para realizar um filme a partir do título Cat people, que lhe parece suficientemente excitante e atrativo.
Ele julga que os monstros do pré-guerra ( vampiros, lobisomens) já tiveram sua
época e que é preciso buscar alguma coisa nova e insólita.
Val Lewton encomenda o roteiro a DeWitt e a direção a Tourneur. Mas a história propriamente será pensada a três. Val Lewton tinha primeiro pensado em adaptar uma novela de Algernon Blackwood, depois decide contar uma história contemporânea, inspirada de uma série de desenhos de moda franceses que mostravam modelos carregados por manequins com cabeças de gatos. Cada um dos três autores trará sua pedra à construção do filme e, por exemplo, a cena da piscina será suscitada por uma lembrança de Tourneur, que quase tinha se afogado, sozinho numa piscina. Lewton aprecia particularmente estes momentos de angústia, como na cena em que Alicem se sente perseguida por uma presença invisível. Tudo passará, no estágio da escritura do roteiro como na realização, pela sugestão, pela sábia progressão das cenas que exprimem o terror e a violência sem que elas jamais sejam totalmente representadas na tela. Os paroxismos serão obtidos por uma certa doçura insidiosa e paradoxal do estilo, que se põe a seguir de muito perto os personagens e os mergulha em uma atmosfera cada vez mais irrespirável, atmosfera esta que o espectador é levado a partilhar com eles, embora esta não provenha de nenhum elemento horrífico concreto.
Val Lewton encomenda o roteiro a DeWitt e a direção a Tourneur. Mas a história propriamente será pensada a três. Val Lewton tinha primeiro pensado em adaptar uma novela de Algernon Blackwood, depois decide contar uma história contemporânea, inspirada de uma série de desenhos de moda franceses que mostravam modelos carregados por manequins com cabeças de gatos. Cada um dos três autores trará sua pedra à construção do filme e, por exemplo, a cena da piscina será suscitada por uma lembrança de Tourneur, que quase tinha se afogado, sozinho numa piscina. Lewton aprecia particularmente estes momentos de angústia, como na cena em que Alicem se sente perseguida por uma presença invisível. Tudo passará, no estágio da escritura do roteiro como na realização, pela sugestão, pela sábia progressão das cenas que exprimem o terror e a violência sem que elas jamais sejam totalmente representadas na tela. Os paroxismos serão obtidos por uma certa doçura insidiosa e paradoxal do estilo, que se põe a seguir de muito perto os personagens e os mergulha em uma atmosfera cada vez mais irrespirável, atmosfera esta que o espectador é levado a partilhar com eles, embora esta não provenha de nenhum elemento horrífico concreto.
Rodado
em 21 dias e ao custo de um orçamento bem modesto de 130.000 dólares, Cat people será o primeiro de uma série
de quatorze filmes produzidos por Lewton (dos quais 11 para a RKO) e, na
carreira de Tourneur, o primeiro no qual ele se tornou verdadeiramente ele
mesmo, graças à influência ultra-criativa de seu produtor, Lewton. Este o
inicia, disse Tourneur, em uma “poesia da qual ele tinha muita necessidade” (vide
sua entrevista televisionada para FR3 por Jean Ricaud e Jacques Manley, maio
1977).
Uma
vez terminado, o filme foi muito pouco apreciado pelos chefões da RKO, e vai
sair como “tapa buraco” no Hawai Cinema de Los Angeles, que tinha acabado de
terminar sua exibição de Cidadão Kane. Cat
people teve mais sucesso que seu ilustre predecessor, e seu triunfo tirou
da lama a RKO em 1941, ano muito difícil para a empresa.
Cat people permitiu a Val Lewton produzir entre
1942 e 1946, sempre com orçamentos muito reduzidos que lhe asseguraram uma
total liberdade de concepção e execução, um dos mais extraordinários conjuntos
de filmes fantásticos do cinema hollywoodiano (dentre os quais se destacam
particularmente o sublime A sétima vítima e Bedlam, que fecha a série). Cat people lança também a verdadeira
carreira de Tourneur, que dará em seguida na mesma linha duas obras ainda mais
perfeitas (I Walked with a Zombie e Leopard Man), antes de impor um olhar
extremamente inovador sobre os outros gêneros hollywoodianos que ele ilustra.
Com
o passar dos anos, mais a contribuição do filme parece incalculável. Com ele, o
fantástico- que nunca será como antes- descobre que pode retirar sua máxima
eficácia da discrição, que pode inventar novos meios de empolgar o espectador
dirigindo-se à sua imaginação. A riqueza do trabalho sobre a luz sobretudo vai
contribuir para interiorizar o conteúdo do filme nos personagens e a provocar
uma identificação mais sutil e marcante do espectador com os personagens. É aí
que, de forma pudica, se situa a revolução radical do filme. Pode-se resumi-la
com uma única palavra: é a revolução do intimismo. Ela delineia, por assim
dizer, uma linha de fratura entre o cinema do pré-guerra e o cinema moderno. O
que o cinema vai ganhar é uma maior proximidade, uma maior intimidade- que se
poderia quase qualificar de psíquica- do espectador com os personagens,
explorados nas profundidades de seus medos, suas angústias, seu inconsciente.
Esta contribuição não é contraditória - longe disso - com o neo-realismo , que
vai chegar igualmente, ao menos em Rossellini, a intensificar a intimidade do
espectador, sob o plano social e em seguida espiritual, com os personagens.
O
recuo agora é suficiente para que Cat
people e os primeiros filmes de Rossellini depois da guerra apareçam, um
secreta e subterraneamente,os outros de maneira espetacular e talvez um tanto
quanto tonitruante, como os filmes mais fecundos destes últimos cinqüenta anos.
O caso de Cat people é particularmente
estranho, uma vez que ele nos leva a privar de mais intimidade com uma
personagem (aquela de Simone Simon) que não pode ser íntima de ninguém. Sua
maldição está de tal maneira engastada na profundidade de seu ser que apenas
uma investigação aprofundada pode permitir entrevê-la. Antes desse filme, o
cinema era um espelho mais ou menos fiel, atravessado ao longo do caminho. A
partir de Cat people, ele tende a se
tornar este instrumento de mergulho que penetra no mais profundo dos
personagens como em um poço. Durante os anos que se seguiram, o filme noir vai
reforçar esta evolução, colocando a seu serviço, sob uma forma atual e
contemporânea, as aquisições distantes do expressionismo, casadas à uma
descoberta recente e com freqüência rudimentar da psicanálise. Ponto de partida
da obra real de Tourneur, Cat people
estabelece o que será o credo dessa obra e seu modo de abordagem da realidade.
Toda realidade é da ordem do mistério, do estranho e do inefável. É preciso
apreendê-la do interior, pela sugestão e pela imaginação. O olhar que penetra
mais profundamente nela tem todas as possibilidades de ser o olhar de um
estrangeiro, e Tourneur vai permanecer na América um dos cineastas mais
estrangeiros a este país, aberto a uma contínua surpresa, a uma engenhosa e
total engenhosidade. Elas vão fazer dele o pioneiro secreto, um explorador
radical de vários territórios diante (e antes) do mundo.
Nota:
a filmagem de Cat people é evocada
sob forma de referência nos primeiro dos três flash-backs que constituem a trama
de Assim estava escrito, filme demasiado brilhante mas um tanto convencional
que queria ser para Hollywood o que A malvada de Mankiewicz foi para a
Broadway. O personagem do produtor Jonathan Shields (Kirk Douglas), arrivista e
perfeccionista, não tem quase nada a ver com Val Lewton, e se assemelha muito
mais a David Selznick. No entanto, é este personagem que decide que será
preciso criar a atmosfera fantástica pela sugestão, pela discrição, a
obscuridade e mostrando o menos possível. Uma continuação bem distanciada foi
dada a Cat people em The Curse of the Cat People (saído na
França em 1971), com uma parte dos atores e personagens de Cat People. O filme é um conto de fadas, aliás muito bem realizado,
que tem mais a ver com o maravilhoso do que com o horror. Ele foi começado por
Gunther Von Fritsch e terminado por Robert Wise, que assina aí, como
co-realizador, seu primeiro trabalho de direção. Remake homônimo de Cat people sem nenhuma magia por Paul
Schrader (1982) com Nastassja Kinski.
Jacques Lourcelles
(Traduzido por Luís Soares Júnior e republicado em http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2009/01/cat-people-tourneur.html)
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