domingo, 10 de julho de 2016

Notas sobre a Nova Hollywood e William Friedkin


Talvez anterior à renovação temática, de estilo, anterior até mesmo à revolução dos “meios de produção”, que reconfigurou o lugar dos diretores em Hollywood, talvez antes disso tudo haja um ponto não tão evidente, mas nem por isso menos essencial, menos definidor, para esta geração de cineastas dos anos 1970 no qual valha a pena se deter: trata-se da primeira geração de diretores cinéfilos do cinema americano. A cinefilia, claro, é um produto da modernidade, e recentemente houve até mesmo quem quisesse datá-la, de maneira definitiva, como um produto do pós-guerra. De modo que falar da Nova Hollywood é necessariamente falar de cinema moderno, com toda a carga que o termo carrega – não há, por fim, muita escolha.        

Mais do que a cinefilia declarada (Scorsese falando dos filmes que viu aos 5 anos de idade, Schrader crítico, a nostalgia de um Bogdanovich), interessa notar aqui de que forma este olhar “cinéfilo” penetra efetivamente nos filmes para criar algumas das obras mais originais do período: De Palma dilacerando Hitchcock; o bressonianismo de fins duvidosos em Corrida Sem Fim (Two-Lane Blacktop, 1971, Monte Hellman), eu sempre me perguntando se alguém chegou a mostrar o filme a Bresson, e não acho que ele detestaria, por sinal: Bresson tinha lá seu amor professado pela juventude; Cimino partindo de Ford em O Portal do Paraíso (Heaven’s Gate, 1980): partindo efetivamente do solo, para contar uma história da terra, daquelas pessoas documentadas sob aquela luz – e, arquetipicamente, é muito difícil não ver em Kris Kristofferson uma réplica de Henry Fonda em A Mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln, 1939).   

Essas obras impressionam sobretudo por sua consciência (consciência formal, consciência de seu lugar no tempo). Elas nos colocam num contato direto, guiado, com a própria história das formas. Longe da reverência, elas propõem uma apropriação bastante selvagem e ativa do cânone. No caso de Cimino, ficaríamos tentados até mesmo a dizer que este encaminha a perfeição fordiana rumo a um refinamento último, “melhorando o trabalho do mestre!”, se nessa melhora não fosse também perdido algo, uma força bruta do original, em favor de um traço mais fino. O que importa é que, mais do que o aceno ou a piscadela, em De Palma, Cimino e Hellman parecemos contemplar um ponto de vista geológico sobre o cinema, o próprio solo onde as formas irão se depositar umas sobre as outras.         

Mas esse solo talvez não seja exatamente fértil: difícil pensar em quem possa vir “depois” de De Palma, Hellman ou Cimino. Porque esses cineastas já chegaram “depois”, e soam como ruas sem saída (a própria curva do tão proclamado “fim do cinema” fica logo ali nos anos 1980). E o moderno talvez não se preste mesmo muito bem ao cânone (uma pequena hipótese aqui). Tanto o moderno autoconsciente (De Palma, Hellman e Cimino, justamente) quanto o moderno de um radicalismo irredutível: Cassavetes nos EUA (e, antes dele, Welles); Straub, Rossellini e Godard na Europa; Sganzerla no Brasil. São cineastas que encarnam um “moderno absoluto”, vulcões isolados sem vocação para o cânone: Godard jamais irá influenciar diretamente ninguém, e a reverência a Cassavetes ou Sganzerla frequentemente incorre numa certa macaqueação. A regra não é clara (Bresson, em sua modernidade, é dos cineastas mais influentes), mas o que importa observar aqui é que as obras mais perfeitas e impactantes não são forçosamente as mais influentes, talvez até pelo contrário. E que o clássico, por se colocar sobretudo como uma tradição, em que a autoria se manifesta de maneira mais discreta, menos incisiva, talvez sirva melhor ao cânone.
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Falamos aqui de “cinema moderno” por acreditamos que esta geração do cinema americano dos anos 1970 preenche todos os requisitos para ser alinhada junto às pequenas revoluções documentadas no cinema ao redor do mundo a partir do pós-guerra. Mas se quisermos falar não só do que essa geração produziu de mais brilhante ou mais original, mas também do terreno fértil que ela consolida, talvez seja interessante voltarmos os olhos para William Friedkin, que, apesar de ser um dos grandes diretores do período, é também um dos mais subestimados. Os mal-entendidos começam com O Exorcista (The Exorcist, 1973), clássico instantâneo do cinema de horror e, do ponto de vista comercial, um dos filmes-chave da “Nova Hollywood”. Mas hoje parece claro que toda a importância do filme está mais naquilo que ele tem de particular, no que tem de chocante para a época (e que permanece até hoje), na abordagem franca do exploitation, do que propriamente por um estilo pessoal de direção. Se quisermos encontrar o verdadeiro Friedkin, melhor nos determos em Operação França (The French Connection, 1971), O Comboio do Medo (Sorcerer, 1977) e Viver e Morrer em Los Angeles (To Live and Die in L.A., 1985).    

Me parece que a grande diferença de Friedkin para outros cineastas-autores do período é que ele instaura, de fato, um método, uma práxis que serve a toda uma ideia de cinema de ação: esvaziamento da cena, da trama e até mesmo dos personagens, fascínio pela imagem bruta, pela superfície opaca, tudo isso atravessado, costurado, por um pessimismo particular. Friedkin é o oposto de um Scorsese, que tem um gosto por personagens fortes, estereótipos pitorescos, pela descrição e crítica social – o olhar scorseseano é sempre culturalizante (social, político, fetichista, às vezes afetivo e sentimental). Em Friedkin, tudo isso é drenado em nome de uma práxis violenta da ação. Gene Hackman em Operação França é como um zumbi esvaziado vagando pelas ruas: a utopia do tira 24 horas por dia, sem vida pessoal, sem descanso. A adrenalina da ação preenche o vazio que o personagem carrega no estômago.

A imagem que fica de Operação França é, naturalmente, aquela das ruas, essa superfície opaca da qual Friedkin parte para criar uma narrativa despojada e veloz. A realidade, longe de ser fetichizada, é estritamente funcional: as sequências mais memoráveis do filme se dão em espaços públicos (no entra e sai do metrô, na calçada-fachada-interior dos restaurantes, ou ainda a perseguição de carro debaixo dos trilhos). Em outras palavras, a realidade serve à práxis. Dali, Friedkin ainda iria depurar seu estilo em O Comboio do Medo e, sobretudo, em Viver e morrer em Los Angeles.       

A cena mais chocante de O Comboio do Medo se repete em Viver e Morrer em Los Angeles: Friedkin implode seu protagonista sem maiores explicações. No primeiro filme, quando Bruno Cremer, o francês do grupo, começa a lembrar com carinho da esposa, o caminhão tomba e tudo vai pelos ares. Em Viver e Morrer, é Chance (William Petersen), o herói do filme, quem morre no fim, abruptamente. A repetição dessas cenas nada mais é do que uma declaração de princípios – ao mesmo tempo que expõem o pessimismo de Friedkin, alimentam perfeitamente seu sistema, sua práxis: redução do personagem a seu corpo, drenado de todo sentimentalismo, reduzido à mera peça de um sistema de ação.       

O Comboio do Medo prefigura todo John Carpenter: o tom soturno, o olhar niilista sobre a coletividade em plena barbárie, os personagens encurralados, lutando pela própria sobrevivência. Pode-se evocar desde Fantasmas de Marte (Ghosts of Mars, 2001) a O Enigma do Outro Mundo (The Thing, 1982). Carpenter também atuará drenando a ação de todo sentimentalismo (o drama carpenteriano por excelência é o drama da sobrevivência). O gosto de Friedkin pela superfície opaca também nos faz pensar em alguns filmes do período, como Caçador de Morte (The Driver, 1978), de Walter Hill – pensando nesses cineastas (Carpenter, Friedkin, Walter Hill), temos a impressão de que os anos 1960 e 70, ao destruírem definitivamente os arquétipos do cinema clássico, devolvem um certo mutismo do corpo, que se torna uma superfície impermeável e opaca.   

Como cinéfilo, Friedkin sempre foi admirador de Henri- Georges Clouzot (O Comboio do Medo é uma refilmagem de O Salário do Medo/Le salaire de la peur, de 1953). Mas é um encontro com outro mestre, Howard Hawks, que aparentemente será mais decisivo para o diretor. Friedkin então namorava a filha de Hawks, que o apresentou ao pai num jantar. Hawks o teria aconselhado a fazer “histórias de ação” como rota para o sucesso, “se é que isto o interessava”. Friedkin prossegue o relato: “Tive essa epifania de que não estávamos fazendo filmes para pendurar na porra do Louvre. Estávamos fazendo filmes para divertir as pessoas e, se eles não fizessem isso, então não estavam atingindo um objetivo mais básico. (...) foi o que me levou a fazer Operação França.”1         

Passada a anedota, como não ver no gosto pelo esvaziamento e pela superfície de Friedkin, em sua abordagem da ação como um sistema implacável, uma herança, precisamente, hawksiana?   
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Diríamos que Friedkin é um autor à maneira do cinema clássico: não por encenar temas de interesse pessoal, mas constituindo uma práxis, um sistema próprio: uma maneira de pôr em cena a ação. É verdade que sua crença numa vocação comercial do cinema o levou, igualmente, a fazer alguns filmes pouco interessantes. Mas, entre os filmes da Nova Hollywood, Operação França é sem dúvida um dos que têm mais vocação para cânone (James Gray retomará a perseguição sob o metrô em Os Donos da Noite/We Own the Night, conscientemente ou não), e é bastante fascinante observar o trabalho de um autor que não se limita a girar como um universo fechado em torno de si mesmo.   

1 O caso é relatado por Peter Biskind em Como a Geração Sexo- Drogas-e Rock’n’Roll Salvou Hollywood (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009).                                                                                                                                          


Calac Nogueira                                                                                                                      Publicado no catálogo Easy Riders – O Cinema da Nova Hollywood.

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