domingo, 14 de agosto de 2016

Filme apresenta mundo como ficção plena


Quem espera de Edifício Master grandes revelações sobre a vida secreta em um cortiço vertical, esqueça. Tudo se passa como se Eduardo Coutinho tivesse feito esse filme antes de tudo para frustrar nosso voyeurismo.        
            Os personagens que habitam esse prédio de Copacabana com mais de vinte apartamentos por andar não têm nada de especial a dizer; a sua diversidade é grande o bastante para configurar uma espécie de representação em escala do que seja o Rio de Janeiro na virada para o século XXI.      
            Moram ali jovens músicos, senhores aposentados, técnicos de futebol, camelôs, prostitutas, mães solteiras.           
            A amplitude da amostragem é desnorteante, e é apenas isso que credencia o edifício, entre tantos, a se tornar o lugar privilegiado de um filme. Aliás, já nas cenas iniciais, o síndico avisa que tempos de decadência são passado. O Master é um prédio como qualquer outro. O que vem a seguir não irá desmenti-lo.
            Qual, então, o interesse do filme? Santo forte (1999), do mesmo Coutinho, tinha a propriedade de atirar o espectador em um registro muito particular: captava discursos de natureza religiosa, isto é, que dizem respeito diretamente ao imaginário, de tal modo que a ficção se instalava no coração das imagens e de certa forma nos arrastava.      
            No Master, nada disso. Lá estão a garota renegada pelos pais por ter engravidado, o senhor que encontrou a mulher nos anúncios de jornal, as imãs solteiras que passaram a vida juntas (uma delas se ocupando da outra e da mãe, ambas doentes), a poetisa desempregada etc.         
            Com exceção do aposentado que emigrou para os EUA quando jovem e, à parte deixar seus filhos por lá, cantou certa vez com Frank Sinatra, as histórias são prosaicas. Talvez a cena final, noturna, em que os apartamentos são vistos de fora pela câmera, desminta tudo o que foi dito aqui (ou seja, antes, seu corolário).           
            Nesse rápido instante, vemos não mais que silhuetas, figuras que não chegamos a identificar. Existências fechadas em si mesmas, cujo mistério permanece intacto apesar de tudo que, agora, sabemos a seu respeito (a cena lembra um pouco os quadros de Edward Hopper que, à força de realismo, acabam nos falando da irrealidade do mundo).    
            Talvez, na verdade, Edifício Master comece depois que termina. Isto é, quando saímos à rua e deparamos com nossos semelhantes.    
            E, por um momento, podemos pensar que habitualmente não conhecemos das pessoas nada mais que a casca, a aparência. E que qualquer uma delas (isto é, qualquer um de nós) tem um discurso, um ponto de vista, uma história a contar. E que qualquer história pode ser interessante, porque todas as vidas o são.       
            É apenas então – já terminado – que o filme nos restitui à atmosfera ficcional de Santo Forte, embora num grau de radicalidade maior. Se neste entrávamos em contato com a ficção que cada um cria para si (sob a forma, no caso, de um discurso religioso), aqui é o mundo que se apresenta como ficção plena, fascinante, na medida em que cada corpo é investido de uma história: aquela que cada um narra a si mesmo e que faz de cada ser um mistério.         
            Daí, talvez, o formidável achado que é Edifício Master: cada cubículo contém um mundo particular e fechado em si mesmo. Vistos de perto, esses cubículos configuram um labirinto. Talvez esse labirinto seja cada um de nós, talvez a soma de todos.       
            Talvez, por fim, seja preciso ver Eduardo Coutinho como o criador de um gênero paradoxal: o documentário fantástico.      

Inácio Araújo 

Folha de S. Paulo, Ilustrada, 22/11/2002.    
Texto retirado do livro Eduardo Coutinho/Milton Ohata (org.)

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