domingo, 21 de agosto de 2016
Há um céu especial para os cinéfilos
A minha primeira experiência verdadeira de terror em cinema foi ver Pinóquio (Pinocchio, Norman Ferguson, T. Hee, Wilfred Jackson, Jack Kinney, Hamilton Luske, Bill Roberts, Bem Sharpsteen, 1940). Eu fui ao cinema e estava muito cheio. Era um cinema na rua Direita, no centro de São Paulo. E cheguei e sentei longe do meu pai e da minha mãe. Eu tinha sete anos. Quando o Pinóquio é engolido pela baleia, fiquei aterrorizado. Logo depois que terminou o filme eu não achava a minha mãe e meu pai e passei por três minutos de pânico. E até hoje não estou recuperado, foi uma tragédia na minha vida. Então esse filme foi para mim um paradigma. Depois eu escrevi uma crônica a respeito. E daí eu inventei que me perdi, que fiquei numa instituição de menores e todo ano eu ia ver o filme anual do Disney para ver se encontrava os meus pais. E nunca encontrava. Aí, dois anos depois conseguia encontra-los. Só que como eu tinha virado bandido, meu plano era assaltar a casa deles e fugir, enquanto eles iam ver outro filme do Disney. O nome da crônica é “Por que as crianças gostam de Valtdisnei”.
Agora, eu não queria falar de nenhum outro filme, sabe, aquelas coisas de música da sua vida? Então, eu não tenho nenhuma. Os filmes da minha vida, eu não tenho. E que quer dizer isso? São 600 mil filmes, depende do dia. Porque tem momentos em que você fica “culto”, e que lascam a sua vida. Eu ia ao cinema para me divertir, era cinéfilo, via três filmes por dia; marquei em um caderno, durante sete ou oito anos, todos os filmes a que assistia. O cinéfilo é a pessoa mais doente do mundo; ele às vezes pode ser feliz, mas eu acho que tem um céu especial para ele. Isso era antes e durante a guerra. Eu via só duas coisas: cinema americano clássico e cinema argentino, olha a desgraça. Sábado e domingo eu via seis filmes, era maravilhoso. Tinha o filme classe B. Depois tinha o filme classe C, que era um policial ou de cowboy. E depois tinha o seriado, eu gostava de Os perigos de Nyoka (Perils of Nyoka, William Witney, 1942). Eu fui de uma cinefilia absoluta, deveria ter sido internado. E passava o cinema argentino. Não sei por que ninguém fala disso, porque até 1945, com o fim da guerra, o cinema mexicano não tinha entrado tanto. E eu conhecia todos os atores, chorava que nem um desgraçado. A vida de Carlos Gardel (La Vida de Carlos Gardel, Alberto de Zavalia, 1939), tinha um filme sobre a vida dele, era maravilhoso. No final de semana eu ia para casa da minha vó, porque meus pais eram separados e eu via filmes o fim de semana inteiro, e anotava tudo: o filme, o cinema, que cinejornal passava, que pessoas eu tinha visto no cinema. E comprava uma revista americana chamada Photoplay, que tinha a lista dos filmes do mês, com todos os atores, e também tinha anúncio dos filmes, críticas e outras publicações.
Eu lamento que tive uma crise existencial uma vez e joguei tudo fora. E lamento porque tinha críticas que ninguém conhece hoje. Críticos que trabalharam em jornais que duraram pouco e que nunca foram citados. E que eram críticos, pelo menos, originalíssimos. Um deles trabalhou no jornal Radar, acho que era o Walter George Durst. E ele era violentíssimo nas críticas, falava no filme numa coluna, e embaixo dava as cotações do filme “imundo”, “repelente”, leproso”, asqueroso”, e quando era bom, sei lá o que ele dizia, “sublime”, algo assim. Mas gostava de falar dos filmes que ele detestava. E teve um crítico chamado Antonio José, e este fez a esquizofrenia verdadeira. Ele escrevia as críticas em duas colunas, uma era para o intelectual e a outra para o público comum. Eu me lembro de que tinha uma do Bergman, e em uma coluna ele falava coisas maravilhosas, que ele era um cineasta da alma e aquelas coisas todas, e na outra coluna ele se punha na pele do espectador que entrou no cinema para ver o filme de cowboy, e falava que o Bergman era chato, o filme era insuportável. Era maravilhoso isso, ele colocava nossa cisão para fora. Nunca vi publicados na história da crítica do Brasil esses críticos, que foram extremamente originais. E tinha um mais conhecido, o Rubem Biáfora, que foi durante anos crítico de O Estado de S.Paulo, e era muito doido, tinha umas visões proféticas e tal, era uma figura estranhíssima. E ele descobria uns filmes impossíveis, em certos lugares impossíveis. Existem vários bairros de São Paulo que eu só conheço porque fui ver o filme de que ele falou. Assim eu praticamente fiz a geografia de São Paulo por causa dos cinemas.
O cinema, junto com o rádio, ocupou um lugar absoluto na minha infância. E eu queria viver essas aventuras de filmes americanos com um amigo meu; de vagabundos, na estrada, e que encontram um posto de gasolina, aventura enfim. Então a gente cortou nossas roupas, se sujou todo, se fez de miserável, entrou num trem e foi para o interior. Mas como a gente era muito covarde, eu escolhi ir para um lugar onde tinha um parente longínquo porque, se não desse certo, a gente ia para a casa dele. A gente desceu na estação, andou duas horas, pediu carona na estrada e ninguém parou. E a gente se perguntava o que estava fazendo ali, onde estava o cinema americano, cadê aquela mulher linda que vai aparecer para ajudar a gente? Não tinha. A rotina é trágica. E no final do dia a gente desistiu e foi procurar meu parente. E nós contamos a história de por que estávamos lá – não tudo, claro, porque era muito vergonhoso. E eles acharam engraçado, nos acolheram, e ficamos dez dias lá, de férias, indo ao cinema, nunca vivemos a aventura do cinema americano.
O que eu quero dizer é que todos nós fomos educados pela cultura de massas; eu fui educado pelo cinema americano, porque até 1945 não tinha cinema italiano, não tinha cinema francês, por causa da guerra. Os jovens de hoje foram educados pela televisão, claro, e também pelo cinema americano. Hoje você tem os cinemas daqui que passam cinema iraniano, filmes tchecos, mas o cinema americano alimenta 90% da população. Tem garotos que nunca viram um filme falado em outra língua. Porque se não for dublado ou falado em inglês eles saem do cinema. Por isso, foi uma luta desgraçada para o cinema brasileiro passar a existir.
Além desses dois cinemas, o único cinema a que eu assistia era a chanchada, e por uma razão muito simples. Nos anos 1940 tinha uma coisa chamada baile de carnaval, que era uma instituição, um evento, onde nós arranjávamos nossa primeira namorada, nos divertíamos. E eu decorava as músicas, quarenta, cinquenta por ano; naquela época eu ainda tinha memória. E outra coisa, quando falo do cinema dessa época, eu tenho que falar da importância do rádio. Fui educado pelo rádio, ganhei dinheiro pelo rádio, e estou aqui hoje porque um dia ganhei um prêmio num programa já de TV e fui para a Europa, onde passei três anos. Eu fiz de tudo em rádio, decorava as coisas, sabia os autores de oitenta óperas, e pergunta se eu conhecia uma? Eu tinha que decorar um monte de tolices. O rádio então tem uma importância fundamental para mim por causa disso, porque eu conheci gente no rádio, porque ia lá quase profissionalmente. A Rádio Tupi ficava no Sumaré, a Rádio Record ficava no centro, não era só a Rádio Nacional, tinha gente famosa aqui que ninguém conhecia no Rio, e vice-versa. Tinha um humorista genial que ninguém conhecia fora de São Paulo, o Pagano Sobrinho, que inclusive o Rogério Sganzerla botou em O Bandido da Luz Vermelha (1968); ele fez o papel de um político corrupto. Mais aí em 1952, 1953, eu ia entrar na faculdade e comecei a ficar “culto” – entre aspas -, e que tudo começa a ficar complicado, desse período eu não quero falar. Você aprende que não deve gostar de tal artista, e você aprende um monte de coisas boas e um monte de coisas ruins. A gente tem um panteão, mas eu não vou ficar falando disso aqui.
(...)
Eu sempre tive a visão de que o documentário era uma coisa chata, e assisti a seu filme Jogo de Cena (2007), que mudou completamente a minha visão sobre documentário. Que filmes você acha que têm essa coisa humana como nos seus, que te marcaram?
Quando eu vi esses filmes, com doze, quinze anos, eu não sabia que John Ford e Welles eram grandes autores, eu não era “culto” ainda. Então eu me permitia ver um melodrama e chorar, e dar cinco estrelas. Eu tinha uma coisa, sempre gostei de melodrama, chorei muito em cinema. E mesmo quando eu comecei a virar “culto”, vi um filme que tenho até vergonha de falar, que revi outro dia e me perguntei como pude chorar nesse filme – já tinha uns 22 anos – chamado Suplício de uma saudade (Love is a Many-Splendored Thing, Henry King, 1955). Tem um filme chamado Amar foi minha ruína (Leave Her to Heaven, John M. Stahl, 1945), que é a história de uma mulher que se casa com um cara, só que a paixão dela é totalmente doentia, então ela não quer que ninguém se aproxime dele, e ela mata o irmão paraplégico do cara, vai fazendo uma maldade atrás da outra, e ele não percebe, ele é muito lento. E aí quando ela percebe que está perdida, quando fica grávida dele, se joga da escada para ver se mata o filho, só que acaba morrendo. E, é claro, no finalzinho, ele se casa com a irmã dela, que é boa, uma santa... Esse filme é maravilhoso, é um modelo do que é o melodrama, sentimentos violentos e tal. Como sempre, acabei não respondendo a tua pergunta.
Você já fez documentários de assuntos diversos, e hoje você está sentado aqui no cinema falando sobre filmes. Você não tem vontade de fazer um documentário sobre cinema, sobre cinéfilos?
Não. Eu sempre digo isto: por que índio tem que filmar só índio, favelado tem que filmar só favelado, sabe esse negócio? Por exemplo, um filme sobre como vive o cineasta. Eu acho que seria maravilhoso, porque eu não sei como um cineasta vive. Você tem viver, e se você casa e tem filho? Como pagar as contas? Eu queria que esse filme fosse feito por um camelô, um pobre, um camponês, porque eu não faço filme sobre cineastas velhos? Não, que faça isso um garoto de dezoito anos, eu não vou fazer. Eu faço coisas que estão longe de mim, sobre aquilo que não conheço. Aquilo sobre o que conheço eu não quero fazer. O que eu vou perguntar? Então sobre esse assunto eu nunca farei, prometo.
Nem de um jeito esquizofrênico, com a tela dividida em dois?
Eu não divido, é outra coisa que eu não divido, eu não faço experiência de trucagem, instalação. O que eu gosto no cinema é que tem uma sala, apaga a luz e as pessoas ficam assistindo a um negócio por uma ou duas horas. E o difícil é fazê-las ficarem assistindo o filme durante uma ou duas horas. Numa instalação as pessoas podem ficar quinze ou vinte minutos. No cinema não, e eu acho uma coisa maravilhosa. É um desafio, de como eu vou manter uma pessoa no cinema por uma ou duas horas. Há limitações que você não tem em um museu. E eu acho esse desafio maravilhoso. Eu tento fazer o que quero, mas ao mesmo tempo sei que tem que manter o público na sala. Como fazer isso com um documentário? Este é o desafio: a sala escura. Que vai acabar, porque agora tudo vai ser digital, quer dizer, não vai acabar, mas vai diminuir, a internet vai ter tudo, vão acabar as videolocadoras. Mas enfim, acho fundamental que continue a sala, que é feita de gente que não se conhece, que estão juntas por acaso e não são iguais umas às outras. A sala de cinema para mim é indispensável, a experiência é totalmente diferente de ver televisão. É coisa de velho, mas eu espero que a sala de cinema fique. Se bem que com essas salas multiplex, com um balde de pipoca de catorze toneladas e um de Coca-Cola de cinco, o barulho deve ser insuportável. Eu acho que se você ainda conseguir pensar no filme no dia seguinte já é maravilhoso. É por isso que nós fazemos cinema.
Você apresentou um filme ano passado aqui na Mostra que era uma mistura de coisas da televisão.
A gente passou aqui porque falamos com o Leon Cakoff, não podia passar no Festival de Brasília, tinha que ser numa mostra grande. Eu falei para o Cakoff que faríamos um troço estranho e ele topou. Aí a gente mandou um vídeo do copião para ele, que aceitou, e falou que iria arranjar um lugar. E nem tinha nome, eu inventei Um dia na vida (Eduardo Coutinho, 2010) porque não podia falar em televisão no nome. Tinha que botar uma fotografia do filme, e eu não podia colocar nenhuma porque todas eram roubadas da televisão. Resolveram colocar uma foto minha. E a gente tinha combinado com o advogado que não podia ter publicidade, que não podia sair em jornal, que a entrada teria que ser gratuita. Nós já passamos em uns oito lugares, quase mil espectadores. Daqui a pouco nós vamos ter mais público do que muitos filmes que passam por aí. Passamos em várias faculdades, mas eu quero passar nas favelas do Rio de Janeiro, nos lugares onde tenha pessoas que gostam desse tipo de programa, porque saber o que eu penso daquilo é pouco importante. Eu quero saber o que as pessoas pensam, principalmente as mulheres que são o público-alvo, que gostam desses programas. A maioria eram “programas de beleza” – entre aspas – e os evangélicos. Mas tem um público para aquilo, e eu queria saber a opinião dessas pessoas, que é muito mais importante.
(...)
Eu filmei na Paraíba, e me contaram a novela Maria do Bairro. As mulheres me contavam como era a história, e só de me contar a história já era maravilhoso. Fico horrorizado quando as pessoas ficam com as suas palavras, falando daquilo que não é feito para elas. É como querer passar no shopping Cidadão Kane e querer que as pessoas que nunca viram gostem.
Queria ser presidente durante um dia, para tomar o poder e cassar a licença de todas as televisões.
O argumento ia ser muito simples, de que a televisão é capitalista, então vamos copiar ou adaptar a Federal Trade Comission americana, porque o modelo europeu é (ou foi) o da televisão pública. No modelo capitalista você não pode ter “laranjas”, você não pode dizer que a televisão do bispo não é dele. E tem centenas que são assim, tem dezenas de deputados e senadores que são donos de televisão e tal, e quando não são, é o sobrinho, o chofer etc. Então seria uma limpeza geral. Mas eu seria deposto no terceiro dia e deportado para a Guatemala.
É proibido vender programa, está na lei, a televisão é concessão pública. A CNT não tem um tostão, é capitalismo de quinto mundo, mas ela existe porque cede todos os horários para a religião e para aquele programa da cinta que tira trinta centímetros, o Polishop. E o Polishop é ótimo porque é o seguinte, tinha seis horas de Polishop, aí vinha uma mulher e media a cintura, mas media bem frouxo, e dava 120 centímetros de cintura. Aí ela ia para o vestiário e quando voltava elas apertavam bem e diziam que tinha perdido vinte centímetros. A segunda coisa, que a gente tirou, era uma mulher de cem quilos, e a mulher dizia “viu como você se sente bem?” e a outra dizia “eu me sinto um brotinho”, e ela aparecia mais baleia do que antes.
A TV Brasil não é uma televisão pública, é uma televisão estatal, porque é o Estado que manda lá. A TV Cultura, que é melhor do que nada, é uma televisão em que no dia que o governador de São Paulo quiser, tira os 80 milhões que manda e fecha. A BBC é uma televisão em que a comunidade participava, não pode ser o governo que manda. E a BCC é sustentada porque parte do valor de todo aparelho de televisão vendido na Inglaterra vai para a BBC, ela não precisa de favor do governo. A gente sempre faz filmes sabendo que os resultados podem ser inúteis, mas a gente faz, não porque a gente é padre, é porque a gente gosta de fazer. E quem sabe se daqui a trinta anos acabou a TV Globo, morreu a Ana Maria Braga, aí o filme pode ficar como peça de museu. No filme, o que eu achei mais bonito foi o Chaves, e eu fiz questão de ter o Chaves, porque tinha que ter uma coisa pura naquele programa. Eu adoro o Chaves, porque ele foi feito há trinta anos, a imagem é horrível e até hoje está no ar e tem audiência. E é maravilhoso, crianças veem, adolescentes veem. Excerto de entrevista com Eduardo Coutinho retirado do livro Eduardo Coutinho/Milton Ohata (org.)
(Os filmes da minha vida, v.4. Renata Almeida (org.). São Paulo: Mostra Internacional de Cinema de São Paulo/Imprensa Oficial, 2012.)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário