1-
Jogo de Cena solapa todo o cinema de
entrevista, inclusive os filmes recentes de Eduardo Coutinho. Este filme revela
uma coragem extraordinária por questionar a obra do próprio cineasta. 2 – O
corte que emenda as frases “eu saí um pouco do foco do casamento”, é histórico.
3 – Jogo de Cena tem uma dimensão
trágica. Lá pelo meio do filme ou um pouco mais adiante, uma mulher conta sua
história, mas essa história eu já a ouvi contar há poucos minutos, quem foi
mesmo que a contou? Que rosto? Chega um momento em que o discurso se desvincula
dos corpos falantes. Ele passa a existir em si. O discurso se fala a si mesmo.
Os falantes são apenas os hospedeiros da fala. Jogo de Cena coloca o ser em questão, pelo menos enquanto ser que
expressaria sua subjetividade com palavras e lágrimas. 4 - Como fica quem
acreditava que a fala dos entrevistados nos filmes do Coutinho era a expressão
de sua subjetividade? 5 - As atrizes muito conhecidas funcionam como âncora
fincada na realidade. Delas sabemos que interpretam. Mas, e se houver atrizes
cujos rostos nos sejam desconhecidos? E as atrizes interpretam o quê? Uma outra
pessoa ou a sua experiência pessoal ao interpretar outra pessoa, portanto a si
mesmas? 6 - Santiago e Jogo de Cena são a prova de que o ensaio
filosófico é possível no cinema, não como falação ilustrada por imagens, mas
pelo aproveitamento e aprofundamento dos recursos da linguagem cinematográfica.
(14/01/2008)
O boom do documentário
(...)
O “boom” do filme documentário, que já dura umas duas décadas, é uma nova onda de naturalismo. Citemos filmes como o Wilson Simonal ou Loki no meio de uma extensa filmografia. Seus artifícios e convenções já estão transparecendo, a entrevista por exemplo. E o Ulysses do filme documentário já explodiu. Seu título é: Jogo de Cena, que não deixou muitos sobreviventes.
O “boom” do filme documentário, que já dura umas duas décadas, é uma nova onda de naturalismo. Citemos filmes como o Wilson Simonal ou Loki no meio de uma extensa filmografia. Seus artifícios e convenções já estão transparecendo, a entrevista por exemplo. E o Ulysses do filme documentário já explodiu. Seu título é: Jogo de Cena, que não deixou muitos sobreviventes.
Penso
que é necessário perceber as dimensões de Jogo
de Cena. Não é um filme importante e transformador no quadro do cinema
documentário brasileiro, é um abalo sísmico de 7 graus na escala Richter no
cinema documentário em geral, ou, mais precisamente, no documentário baseado na
fala. Jogo de Cena é uma explosão
transformadora da magnitude que tiveram no passado filmes de Eisenstein ou
Godard. Talvez se possa dizer que Jogo de Cena anuncia o encerramento de um
ciclo de cinema que Jean Rouch iniciava há meio século com Eu, um negro.
Pode-se
superar Jogo de Cena? Sim, mas como?
(31/07/2009)
(31/07/2009)
Moscou
Concordo
plenamente com o comentário de Eduardo Escorel (Piauí, 35, 3.8.2009) sobre o
último filme de Eduardo Coutinho: Moscou
é uma catástrofe e um impasse.
(...)
(...)
Quanto
ao impasse, penso que ele deve ser colocado em outra perspectiva que não apenas
a carreira de Coutinho ou sua filmografia: ele realizou filmes notáveis, este
último infelizmente não é tão bom. Penso que o impasse não é só do Coutinho,
mas é coletivo.
Jogo de Cena põe em dúvida toda a filmografia de
Coutinho desde Santo Forte (uma
coragem excepcional). Jogo de Cena põe
em dúvida todos os filmes documentários baseados na fala como discurso da
subjetividade e no relato de histórias de vida. Põe em dúvida a relação entre o
corpo falante e a fala da subjetividade (quem emite esta fala? essa fala fala
do quê?). Põe em dúvida a relação entre a fala e a subjetividade.
Após
a projeção de Jogo de Cena falei e
estranhei (isto é verdade): quem fala? Eu? Eu quem? O filme desestabiliza a
noção de sujeito. Ou eu estou a ver fantasminhas, ou Jogo de Cena é de uma trágica radicalidade. O problema não é de
Coutinho, mas de todos aqueles que se sentem atingidos por essa trágica
radicalidade.
Filmes
de que participei, gravados antes de Jogo
de Cena, me parecem hoje pueris. Estou atualmente trabalhando num
documentário que envolve discurso da subjetividade e relatos de histórias de
vida: simplesmente eu não consigo entrar neste filme. Jogo de Cena foi longe demais.
A
frase de Escorel – “Coutinho é o grande ausente de Moscou” – é de uma grande beleza e de uma extraordinária precisão.
Coutinho não poderia “ser” presente porque o sujeito está desestabilizado.
Quando voltaremos a ser presentes?
Fantasiei
que, para quebrar o impasse em que Jogo
de Cena nos meteu, Coutinho poderia/deveria sentar diante de uma câmera, em
primeiro plano, permanecer em silêncio,
por tempo indeterminado.
(06/08/2009)
Moscou 2
(06/08/2009)
Moscou 2
Revi
Moscou. Um filme profundamente melancólico.
(...)
O maior problema de Moscou talvez sejam os fantasmas que se interpõem entre nós e ele. Sem dúvida Jogo de Cena, filme tão radical, tão definitivo, que não é possível voltar atrás. E provavelmente um outro fantasma projeta também sua sombra sobre Moscou: A Gaivota.
O maior problema de Moscou talvez sejam os fantasmas que se interpõem entre nós e ele. Sem dúvida Jogo de Cena, filme tão radical, tão definitivo, que não é possível voltar atrás. E provavelmente um outro fantasma projeta também sua sombra sobre Moscou: A Gaivota.
Talvez
devêssemos tentar mudar o nosso discurso, enveredar pela pista proposta por
Carlos Mattos: por que Coutinho saiu de sua posição de entrevistador, de
interlocutor, de cineasta sentado atrás da câmera? Para mim (por enquanto) não
há grande dúvida: esse cineasta interlocutor sentado atrás da câmera não só não
faz mais sentido, como não é mais possível após Jogo de Cena, que dissolveu o sujeito entrevistado e, por
consequência, o sujeito entrevistador. Em Moscou,
o sujeito atrás da câmera está dissolvido, duplamente dissolvido eu diria: não
só Coutinho, mas também Henrique Diaz (por mais que se possa explicar a
retração do diretor teatral pela dinâmica dos laboratórios).
Há
outra pista possível: e essa eu não a entendo. Que Coutinho tenha deixado de
ser o sujeito que provoca e recebe a fala de um outro, acho que é uma
consequência lógica e inapelável de Jogo
de Cena, isso posso intuir. Que ele tenha deixado de ser um cineasta que se
desloca, eu não entendo. Por que ele se fecha num espaço único? Por que nesse
espaço escolhido não entra luz? Por que passar de O Fim e o Princípio, filme de
deslocamento e de luminosidade (a abertura de Peões também me deixou uma lembrança de deslocamento e
luminosidade), para um espaço fechado e escuro? Qual é a busca? (12/08/2009)
Eduardo Coutinho & Sophie Calle – 2
Eduardo Coutinho & Sophie Calle – 2
Foi escrevendo sobre Sophie Calle (Coutinho
& Sophie Calle, de 3.8.09) que pela primeira vez pensei em Jogo de Cena como um filme centrípeto.
(...)
Isto me permitiu abordar o filme sob um ângulo novo para mim. A identidade/oposição entre filme e exposição repercutiu na compreensão da trajetória da obra de Coutinho.
Isto me permitiu abordar o filme sob um ângulo novo para mim. A identidade/oposição entre filme e exposição repercutiu na compreensão da trajetória da obra de Coutinho.
Em
Jogo de Cena, todas as mulheres
convidadas convergem, através de uma estreita passagem (a escada), para o ponto
onde encontrarão o cineasta, se sentarão e falarão. Isto é uma novidade nos
dispositivos dos filmes de Coutinho.
Coutinho,
até então, se deslocava, ia ao encontro das pessoas que entrevistaria, fosse a
favela de Santo Forte ou a
multiplicidade dos apartamentos do Edifício
Master.
Se
pensarmos em Cabra Marcado para Morrer,
percebemos que é essencialmente um filme de deslocamento. Coutinho volta à
região onde começou a filmar o primeiro Cabra
em 1964. Sai à procura das pessoas que participaram do filme, encontra algumas.
As informações colhidas lhe permitem chegar a Elisabeth Teixeira, e daí sai à
procura dos filhos espalhados pelo Brasil. Do ponto de vista do espaço, o
segundo Cabra é um filme sem centro.
Coutinho não é um centro, é um articulador cujo constante movimento interliga
fragmentos de uma história despedaçada.
Não
tiro conclusão nem significação. Simplesmente constato que de Cabra Marcado para Morrer a Jogo de Cena, Coutinho passou de um
dispositivo acêntrico (não no sentido de excêntrico, mas no de: desprovido de
centro) baseado no deslocamento, para um dispositivo fortemente cêntrico. (13/08/2009)
Eduardo Coutinho & Luiz Ruffato
Eduardo Coutinho & Luiz Ruffato
Li
Estive em Lisboa e lembrei de você de
Luiz Ruffato.
(...)
Qual é a operação proposta por Estive em Lisboa? O autor apropria-se do depoimento de uma pessoa que narra uma história de vida. Só que neste romance, não só o depoimento como a apropriação são uma ficção, uma simulação, LR simula no plano do literário o que Eduardo Coutinho tem praticado em filmes recentes (Edifício Master etc): apropriação audiovisual de depoimentos estimulados de pessoas que narram histórias de vida. O que Coutinho radicalizou de forma tão perturbadora (para não dizer trágica) em Jogo de Cena: o depoimento destaca-se do sujeito que vivenciou para se tornar matéria para o trabalho interpretativo de uma atriz. Mais um pequeno deslocamento e podemos imaginar que o ter-sido-vivido não é indispensável para que o texto se sustente e para o trabalho da atriz. Basta o texto ter coerência, verossimilhança, densidade. Aí entra LR. O Coutinho desses filmes e o Ruffato desse romance pertencem ao mesmo universo estético e social. Ambos pertencem à era do “reality show” ou “esfera realidade” ou “nebulosa realidade” ou “reality as a show” ou “reality is a show” ou “show is reality”. O que no cinema se manifesta sob a forma de documentário e na literatura como “a sede de realidade do mercado editorial contemporâneo” (nas palavras de Vilma Costa). E não só de realidade mas também de simulacros. (26/02/2010)
Coutinho e Paul Ricoeur
Qual é a operação proposta por Estive em Lisboa? O autor apropria-se do depoimento de uma pessoa que narra uma história de vida. Só que neste romance, não só o depoimento como a apropriação são uma ficção, uma simulação, LR simula no plano do literário o que Eduardo Coutinho tem praticado em filmes recentes (Edifício Master etc): apropriação audiovisual de depoimentos estimulados de pessoas que narram histórias de vida. O que Coutinho radicalizou de forma tão perturbadora (para não dizer trágica) em Jogo de Cena: o depoimento destaca-se do sujeito que vivenciou para se tornar matéria para o trabalho interpretativo de uma atriz. Mais um pequeno deslocamento e podemos imaginar que o ter-sido-vivido não é indispensável para que o texto se sustente e para o trabalho da atriz. Basta o texto ter coerência, verossimilhança, densidade. Aí entra LR. O Coutinho desses filmes e o Ruffato desse romance pertencem ao mesmo universo estético e social. Ambos pertencem à era do “reality show” ou “esfera realidade” ou “nebulosa realidade” ou “reality as a show” ou “reality is a show” ou “show is reality”. O que no cinema se manifesta sob a forma de documentário e na literatura como “a sede de realidade do mercado editorial contemporâneo” (nas palavras de Vilma Costa). E não só de realidade mas também de simulacros. (26/02/2010)
Coutinho e Paul Ricoeur
Tendências
filosóficos e psicológicas atualmente dominantes afastam-se das teorias
substancialistas e essencialistas do “eu”. Ou “eu” não é uma substância, uma
identidade guardada nas profundezas do ser e que seria posto em situação pela
trajetória da vida e da história.
O
“eu” tende a ser visto como uma produção, uma construção constante. Mais do que
isto: ele é esta produção. A concepção do “eu” como dinâmica incessante levaria
a sua dissolução, portanto fazem igualmente parte desta construção movimentos
de fechamento e de estabilização que fixem o sentido da vida.
O
movimento de estabilização é parte integrante do movimento de produção. Autores
importantes (as obras de Paul Ricoeur Soi-même comme un autre e Temps et récit;
L’invention de soi, Une théorie de
l’identité de Jean-Claude Kaufmann, sugestão editorial para Jorge Zahar)
dão à narração papel fundamental na dinâmica da produção de si e na fixação do
sentido da vida. Vista desta forma, a identidade é a história que cada um se
conta. Paul Ricoeur é taxativo: a identidade individual se constrói de um modo
narrativo. O processo de construção de identidade é um processo narrativo. O
essencial para o “eu” é o diálogo entre a experiência vivida e o relato. E
Kaufmann acrescenta: entre a experiência vivida e o relato é às vezes difícil
distinguir qual é o motor real, o que domina.
Pois
parece que Jogo de Cena deu uma
alfinetada irônica nessa narração considerada como parte fundamental do
processo identitário, já que o relato pode ir passeando por bocas e corpos que
não vivenciaram o relatado.
(...) (24/06/2010)
Jogo de Cena – 2
No
livro O Espaço Biográfico, Leonor
Arfuch lembra que o movimento da “entrevista”, que aparece na imprensa na
segunda metade do século XIX, é o inverso do movimento autobiográfico. Este
parte do privado, ou mesmo do íntimo, em direção ao público. A entrevista parte
do público: o jornalista procura o privado em busca da informação. Depois o
jornalista publica a palavra recolhida (e retrabalhada).
O
cinema de entrevista segue basicamente esse modelo, quer se trate da palavra
autorizada do especialista, quer da palavra testemunhal ou autobiográfica.
Em
várias obras de Coutinho, este movimento é representado concretamente pelo
cineasta e sua equipe que vemos se deslocar em direção ao entrevistado/a, como em
Cabra Marcado para Morrer e outros
filmes. O entrevistador procura o entrevistado.
Esse
movimento é modificado por Jogo de Cena:
as entrevistadas dirigem-se ao espaço do entrevistador. Evidente: a ida das
pessoas que falarão resulta de um contrato prévio. Houve uma seleção e só as
selecionadas alcançam o espaço da fala. Resta que o movimento representado
visualmente é inverso ao de filmes anteriores (isso já foi muito comentado).
A
seleção em Jogo segue um movimento
diferente.
Em
Edifício Master o prédio oferecia um
universo delimitado de entrevistados potenciais dentro do qual, em várias
etapas, se operou uma seleção. Tudo indica que essa seleção foi feita
pessoalmente: alguém da equipe propõe a um morador/a ser entrevistado/a para o
filme. A pessoa contatada recebe a proposta e fica livre de aceitar ou recusar,
é um “não” ou um “sim”, sendo que esse “sim” pode ser negociado (restrições
temáticas, duração, dia, hora etc.). Negociação que ocorrerá entre o
“convidado/a” e o emissário da equipe.
Em
Jogo o movimento cineasta /
entrevistada potencial existe. Mas, primeira diferença essencial, ele não é
pessoal e se volta para um universo praticamente irrestrito. Se acreditarmos no
filme, o movimento consiste na publicação de um anúncio num jornal: “Convite /
Se você é mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias
para contar e quer participar de um teste para um filme documentário,
procure-nos. Ligue a partir de 17 de abril das 10 às 18h, para ... / Vagas
limitadas”.
A
primeira etapa é dirigida a um universo anônimo. A partir daí, o que pode
acontecer? Por parte da equipe, nada. Só esperar telefonemas. Do outro lado
será necessário que pessoas resolvam telefonar, ou seja sair do anonimato.
Nesse telefonema vejo uma das grandes contribuições propostas do filme. O que
muda?
A
leitora do anúncio (quase uma licitação), desconhecida de quem o publicou,
somente se individualiza quando ELA toma a decisão de responder. O dispositivo
requer uma tomada de decisão incomparavelmente mais determinada e voluntária do
que responder “sim” a quem convida pessoal e verbalmente para dar uma
entrevista . É necessário se identificar, ter vontade de tornar públicas as
“histórias” e, ainda mais, correr o risco, após a individualização, de ser
rejeitada no “teste”.
O
nível de iniciativa requerida por esse dispositivo me faz pensar que Jogo de Cena se abre para o “espaço
autobiográfico”. O espaço autobiográfico se manifesta em Edifício Master, onde pessoas contam histórias de vida. Mas o nível
de decisão pessoal exigido por Jogo é
tão maior que se atravessa uma fronteira e se atinge o espaço em que o sujeito
toma a iniciativa de tornar pública sua história de vida. É necessário que o
“desejo autobiográfico” se manifeste mais intensamente sem contato direto com o
proponente. A diferença não está nas histórias contadas ou na forma do relato,
nem no fato de contar sua vida, mas na intensidade e na forma da decisão a ser
tomada para entrar no processo proposto.
Observação
IMPORTANTE: esses comentários são feitos exclusivamente no quadro do cinema de entrevista praticado no Brasil e
não leva em consideração as múltiplas formas de manifestação do espaço e do
desejo autobiográfico na televisão e da internet.
Outra observação: eu
fiz a experiência de responder a um anúncio parecido ao de Jogo para o espetáculo teatral Nãotemnemnome.
(26/08/2011) Jean-Claude Bernadet
Trechos dos textos de Jean-Claude Bernadet. Retirados do site http://jcbernardet.blog.uol.com.br/ e reunidos no livro Eduardo Coutinho/Milton Ohata (org.).
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