domingo, 4 de setembro de 2016

Onde fica a casa do meu amigo?

Entre muitíssimas outras coisas existem dois aspectos que me impressionam em “Khane-ye doust kodjast”, o filme de Kiarostami. Como do tão pequeno se chega ao grande e como o iraniano, desviando-se a qualquer catalogação puramente neo-realista, naturalista ou mesmo a ideais de puritanismo exacerbado, trabalha o suspense e toda uma atmosfera que por vezes ronda o alucinatório. Começa-se numa escola, numa turma, tudo muito pequeno, desde os alunos até aos motivos que irão despoletar a trama, dos espaços ao modo cerrada e solto como a câmara vai apreender todo aquele pequeno e significativo mundo. Câmara que estará sempre arredada das leis e da prisão da linguagem, antes protegida pela língua e pelo amor. Saímos da sala e temos, à maneira de “Moonfleet”, um filme visto e conduzido pelos olhos e pelo coração de uma criança jovial e séria, e é também assim que vamos experienciar toda uma humanidade, toda uma natureza e manifestações dos sentidos. Radiografia etnográfica, estudo de costumes, realidade descarnada muito longe do panfleto sociológico, sim, mas o que mais me espanta é como de um gesto de consciencialização tão exíguo – mesmo tendo em conta a redimencionalização inerente à idade – o miúdo nos vai levar consigo por todos aqueles espaços e caminhos labirínticos e secretos, mágicos e sombrios. Como uma tal pulsão que parece tocar o ridículo se transforma no catalisador de uma pura aventura deambulatória elevada pela pressão do tempo e do desespero. Vai encontrar o amigo? Vai entregar o caderno? Vai escapar impune à sua ousadia e risco? Parece também ser Hitchcock e muita da estrutura geométrica que o cinema clássico americano inventou, contra todos os credos. E vai ser nesta dúbia ambivalência entre a falta de certezas, a suspensão e a perdição – ao qual também o filme se deixa perder hiperbolicamente na parte final, em sequências sombrias e fantasmagóricas, com as suas cores quentes, rompidas e estilhaçadas, subidas e descidas de escadas, atmosferas barrocas e expressionistas – conjugadas com o estoicismo do miúdo e a distância reveladora do cineasta, que o patético se alteia ao sublime. Como na mais bela cena em que Kiarostami esquece a trama e deixa correr a vida – a dádiva final ao velho que faz portas de madeira, ali, sozinho, apaziguado. Ou a cena realmente última em que por artes mágicas tudo se reverte e se resolve. Pequeno e grande, não um milagre à Dreyer ou Rossellini, mas mesmo assim um milagre, o milagre daqueles seres. Como do mínimo e do íntimo se chega ao máximo, a um incomensurável dos afectos, só pode mesmo ser um dos propósitos mais elevados do cinema, de qualquer arte.

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