domingo, 25 de setembro de 2016

ENTREVISTA COM ABBAS KIAROSTAMI – UMA ABORDAGEM EXISTENCIALISTA DA VIDA*


Michel Ciment e Stéphane Goudet**

Michel Ciment e Stéphane Goudet:Por que quase três anos separam Através das Oliveiras (1994) e Gosto de cereja (1997)?
Abbas Kiarostami: Não tive sorte no fim da filmagem. Rodei a primeira parte durante 45 dias. Mas não conseguia me decidir sobre o fim da história. Preferi parar o processo e, só depois de um tempo, retomei. Eu queria filmar uma primavera bem verde. Tive, então, que esperarum ano para terminar a última cena, na primavera seguinte. Além disso, sofri um acidente de carro que me deixou imobilizado durante quatro meses e atrasou também o fim. Ainda assim, acho que esses atrasos sucessivos foram benéficos para o filme.
No momento da estreia de Através das oliveiras, você evocou a possibilidade de realizar uma continuação desse filme, Os sonhos de Tahareh, contando a mesma história, mas segundo o ponto de vista da mulher.
É verdade, tudo levava a esse projeto, mas, na última hora, a poucos dias da filmagem, não me senti disposto a começá-lo. Eu tinha trabalhado nele durante um ano e meio, em tempo integral, e conhecia todos os detalhes, as causas e os efeitos. Disse pra mim mesmo que a filmagem não me ensinaria mais nada, não traria nada de novo. Sinto como se o tivesse realizado.
Quando você escolheu o título Gosto de cereja?
O título do filme foi modificado três vezes. Na verdade, foi a primeira vez que tive bastante tempo para alterar o título a meu bel-prazer. Eu tinha pensado em Viagem na aurora. Depois pensei em Eclipse, até que por fim me decidi pelo atual.
Esse título mantém por muito tempo um contraponto com a paisagem, com aquelas árvores queimadas, os rochedos, os detritos, as cores ferrugem e esfumaçadas. Por que esse cenário?
Filmei a vinte minutos de carro ao norte de Teerã, no outono, estação do ano em que a natureza está morrendo, para que o cenário estivesse em harmonia com a personagem e seu estado de espírito. O fim do filme, na primeira cópia, é muito verde, brilhante, cheio de flores, marcando a volta da primavera, a renovação da vida.
Seus três últimos filmes, E a vida continua (1992), Close-up (1990) e Através das oliveiras, são também, de certa maneira, obras sobre o cinema. Aqui, esse aspecto quase desaparece, com exceção do epílogo em vídeo.
Acho que em Através das oliveiras eu já tinha ultrapassado a noção de “cinema dentro do cinema”, mas ainda não tinha encontrado a ideia para substituí-la. Se uma trilogia requer um fio condutor, então os três filmes que você citou formam, efetivamente, um conjunto. Desse ponto de vista, há uma cisão com Gosto de cereja. A rigor, esse filme poderia ser, em vez de Onde fica a casa do meu amigo? (1987), o primeiro da trilogia em torno do confronto entre a vida e a morte.
O que acontece na hora da fusão sobre preto antes do epílogo, além de uma substituição da personagem principal pelo diretor do filme?
Eu não queria que houvesse, na última parte do filme, a menor referência sobre a morte e me negava a mostrar se o “herói” estava morto ou vivo. Queria abstrair essa pergunta e, principalmente, evitar o happyend, o fim bonitinho e superficial, que teria criado na cabeça do espectador a seguinte pergunta: por que não fazer um filme sobre um suicídio bem-sucedido? Com o fim que escolhi, cabe à imaginação do espectador decidir. Estatisticamente, em dezoito casos de suicídio, dezessete tentativas fracassam. Logo, o que mais me interessa é o êxito, é dele de que tenho mais vontade de falar. Mas eu não queria fazer uma tragédia. Então decidi acrescentar esse epílogo em vídeo, cujo suporte o distingue do que precede. Para mim, o filme acaba na noite escura. A continuação é como um post-scriptum que fecha um romance. Ele não é, portanto, de fato, “cinema dentro do cinema” ou uma miseenabîme, procedimento hoje tão difundido no cinema iraniano que, a meu ver, perdeu todo interesse. É um epílogo que mostra simplesmente que, independentemente do que se passou com a personagem principal, a vida continua. Pois não havia necessidade, para mostrar a morte em geral, de passar pela morte desse indivíduo singular. Eu queria deixar registrada a consciência da morte, a ideia da morte, que só o cinema torna aceitável. Essa ideia ocorre quando a escuridão se impõe, quando todas as luzes se apagam na tela. A lua desaparece atrás das nuvens, e tudo fica escuro. Percebemos, então, que não há mais nada. Pois a vida vem da luz. Aqui, o cinema e a vida formam um único. Porque o cinema, ele também, é luz. Eu deixei um minuto e meio de tela escura no plano. Minha equipe me disse que era tempo demais, que os espectadores sairiam da sala. Mas o escuro tinha que ser prolongado, para que o espectador fosse confrontado com a não existência, que, para mim, remete à simbolização da morte. A fim de que ele olhasse a tela para não ver nada. Quando o verde da primavera retorna, é, a um só tempo, a ressurreição da vida e da imagem. Quase sempre, quando uma pessoa morre, nosso primeiro gesto é fechar seus olhos. Agimos como se recolocássemos a tampa sobre a lente de uma câmera fotográfica. Todo filme é um documentário sobre a vida, ele prova sua existência, sua persistência. A filmagem em vídeo está ali, simplesmente, para revelar o retorno da primavera.
Você evocou, a propósito do filme, a poesia de Omar Khayyam, que escreveu: “A vida só está separada da morte pelo espaço de um sopro”. Você se sente próximo dessa poesia, que associa os contrários e conjuga metafísica e sensualidade?
Gosto principalmente da simplicidade das poesias de Khayyam, para além de sua inteligência, sua sensualidade, sua precisão, sua concisão. A leitura de seus poemas tem para mim a força de uma bofetada. Constantemente, ele nos lembra da presença da morte e de nossa necessidade de viver com ela. Para ele, a vida consiste em ter em mente que o ar que inspiramos deve sempre ser expirado. Mostra-nos que a respiração, apesar das aparências, é um ato complexo, que acaba sempre dando errado. Seus poemas nos colocam sem a menor cerimônia diante da morte, e nem por isso são pessimistas; nos incitam a tomar consciência de nossa condição humana, mas para louvar ainda mais a vida. Por isso Khayyam gosta tanto de elogiar o vinho, o prazer e a embriaguez que dele advém. Segundo ele, a vida passa tão depressa que não devemos perder nem mesmo um instante para ter um bom momento. O prazer do instante é nossa finalidade na Terra – pelo menos enquanto ninguém volta de outro mundo para nos dizer que era ruim beber! Vou recitar para vocês um poema de Khayyam:
“Não tenho prazer algum em viver sem um excelente vinho
Sem o vinho, não poderia suportar o peso de meu corpo
Seria até mesmo difícil andar
Pois o vinho é meu combustível
Nos mais belos momentos de minha vida, vejo mulheres servindo-me vinho
E me servem mais e mais até a saciedade,
Instante de inconsciência em que meu corpo não aguenta mais”.
Pela primeira vez, você procurou locações gravando em vídeo antes de filmar Gosto de cereja. Qual foi a contribuição desse método?
Normalmente os roteiros são escritos com cuidado, em casa; depois procuramos as locações para a filmagem. Dessa vez, meu filho e eu pegamos um carro, levamos uma câmera e fomos explorar o terreno para trabalhar diretamente no espaço do filme. Foi uma experiência nova para mim. Eu tinha determinadas sensações em relação ao espaço que me cercava. Além disso, podia observar as pessoas pela tela da câmera. Meu filho filmava, mas não sabíamos exatamente para quê. Quando achamos o ator principal, em vez de lhe dar o roteiro e conversar com ele, mostramos o que fora filmado para que se impregnasse de nossa ideia. E, quando a filmagem começou, já não era necessário lhe dar precisões do estado em que ele devia ficar nesse ou naquele instante, que emoção devia representar ou não... Ele só tinha que reproduzir o que tinha visto na tela, substituindo minha cabeça pela dele, já que eu tinha desempenhado todos os papéis na pré-filmagem em vídeo.1 A principal contribuição desse método foi condicionar os atores não por meio das palavras, mas por meio da imagem. Os atores não tinham que modular sobre o que estava escrito no roteiro, tampouco lutar para se destacar de um texto muito imponente que tinham decorado sem conseguir se apropriar dele. Mostrar-lhes o vídeo os liberava do peso do texto e preservava a naturalidade deles, que não se perdi durante o aprendizado dos diálogos. Na verdade, durante a filmagem, dois “atores” nunca se encontraram. Cada vez que um personagem fala em um plano fechado, eu estou do outro lado da câmera para lhe dar a réplica e me esforço para despertar nele certas emoções. O idoso, o jovem soldado, o jovem seminarista, de quem eu era o único interlocutor, certamente ficaram surpresos de não me ver no filme!
Por que você utiliza com tanta frequência o carro como lugar, como personagem, como metáfora?
Um dia me dei conta de que passava dentro do carro não apenas muito tempo, mas também diversos momentos importantes. Na verdade, eu tenho ali dentro uma vida interior muito mais interessante do que em casa, onde estou sempre me movimentando. Em casa não tenho tempo de meditar. Mas, quando você está dentro de um carro, com ou sem cinto de segurança, você fica imóvel. Ninguém o incomoda. Não há telefone nem geladeira nem visita inesperada. Então eu trabalho ao volante. É meu único escritório possível, um cômodo íntimo, como uma pequena casa, onde não há nada de supérfluo e onde, além de tudo, estamos diante de uma tela gigante constituída pelo para-brisa que nos oferece um travellingcinematográfico interminável. Você entra ali, e a visão lhe escapa. Você sai do carro e descobre a paisagem. Como no cinema. É o melhor lugar que conheço para olhar e para refletir.
Quando filma dentro do carro, você fica restrito a planos fechados. Ora, você se queixa que os atores em close perdem a espontaneidade e ficam excessivamente “conscientes” de que estão representando. Como você lida com essa contradição? Com que dificuldades técnicas você se defronta quando filma no carro?
O mais difícil é que o olhar do câmera, nesses momentos, não está atrás da câmera. E isso é também uma vantagem, pois ninguém incomoda o ator. Ele se sente mais à vontade com essa câmera sozinha diante dele, sem equipe técnica. Quando o câmera e seu assistente regulam o foco, sempre incomodam o ator. Nesse filme, a câmera estava imóvel, fixada no carro, o que nos valeu algumas surpresas: a ponta do nariz do ator sai do campo, por exemplo. A ausência do câmera permite amenizar essa dificuldade que você evocou e que explica, em parte, minha predisposição a planos de conjunto. Quando a câmera faz um travellingcom uma equipe atrás dela, evito deixá-la próxima demais do ator. Prefiro que seja sempre discreta. Nos planos de carro, fico sentado com a câmera bem atrás de mim. Falo com o ator não sobre o filme, mas sobre a vida cotidiana. Quando sinto que ele está confortável, que esqueceu a câmera, eu lhe faço a pergunta principal e aperto o botão para filmar. Suprimo, portanto, o cerimonial do “silêncio, motor, corta, claquete”, que traumatiza o ator.
Que relação você estabelece entre o deslocamento do carro e a fala?
Essa é uma questão importante para mim. Dentro do carro, as pessoas tornam-se rapidamente íntimas. Quando estamos sentados ao lado de alguém de quem somos muito próximos (familiares) ou que mal conhecemos (e continuaremos sem conhecer), quase sempre ficamos confortáveis. Ali as relações e os encontros sempre serão mais interessantes.
Você começou sua carreira com filmes quase sem diálogos (O pão e o beco [1970], A experiência [1973]), e hoje seu foco é o uso do verbo. Como você sente essa evolução?
Realmente não consigo explicar. Só me lembro de que, na época de meus primeiros filmes, eu não era de muita conversa; hoje sou bem mais. Às vezes acontece de ficarmos em silêncio na presença de algumas pessoas e de sermos muito conversadores com outras. Tudo depende também do instante e do interlocutor. Nem o mutismo nem o excesso de palavras me assustam. Em Gosto de cereja, tentei compartilhar os momentos de discussão, trabalhar o ritmo e alternar uma cena dialogada com uma sem falas. Tinha a intenção de criar, entre as cinco pessoas que trocavam ideias, um espaço geográfico, cênico, no qual não há conversa.
Daí a musicalidade do filme.
Muito obrigado.
Um dos métodos recorrentes em seu cinema – seus documentários e suas ficções – é o do questionamento. Por que o diálogo legitimou a prática dessa forma de ir ao encalço, que você recusa na imagem, quando exclui qualquer panorâmica, qualquer close inquisidor sobre as personagens?
Para mim, tudo provém do questionamento, que é uma forma de curiosidade. Se nos referirmos aos psicólogos e aos psicanalistas, perguntar consiste em fazer o inconsciente surgir no consciente. O cinema pode, às vezes, à sua própria maneira – massiva, popular –, rivalizar com a psicanálise. Se esse filme permitisse, por exemplo, pelo menos que um suicídio fosse evitado... Não porque a religião proíbe, mas porque o espectador tomaria consciência do valor da vida. Setenta por cento das pessoas já pensaram ao menos uma vez em se matar. Se o filme, intervindo no momento certo, der algumas respostas para quem estiverpensando em suicídio, eu terei criado – e esse espectador singular terá criado comigo – algo positivo a partir de algo negativo.
Como você vê o suicídio?
Há dois anos, o vencedor do prêmio Pulitzer escreveu uma carta antes de se suicidar: “Hoje recorro ao primeiro de meus direitos fundamentais para desaparecer deste mundo”. Arthur Koestler indicava que, no dia em que não se sentisse mais útil aos outros, ele deixaria de viver. No Japão, o suicídio tem, cultural e socialmente, um significado muito particular. O aspecto existencial ou existencialista é mais forte ainda, pois cada pessoa reconhece que tem responsabilidade no curso dos acontecimentos. E quando uma pessoa julga que não está mais apta a assumir suas responsabilidades, ela tem o pleno direito de escolher não viver mais. Na verdade, a tomada de consciência da possibilidade do suicídio nos torna, a meu ver, mais conscientes de nossa responsabilidade em relação à vida. Gosto de cereja, de certa maneira, adota uma abordagem existencialista da vida. Estamos aqui para fazer alguma coisa, para nos sentirmos plenamente responsáveis por algo. Você pode observar que só por meio do questionamento podemos chegar a esse tipo de raciocínio. O suicídio é proibido no Irã, proscrito como um ato negativo, niilista. Mas cabe à arte colocar esse problema em primeiro plano, chamar a atenção dos espectadores para essa questão de extrema importância. Quando Kierkegaard era jovem, ele teve que responder, na aula de poesia, à seguinte questão: “O que você quer ser? Olhe à volta, as profissões que as pessoas exercem, e escolha a que você deseja para você”. Kierkegaard conta que observava ali um motorista de metrô, aqui comerciantes, lá o pessoal de manutenção de um parque, em suma, empregados que, a seus olhos, ajudavam os outros. Ele sentou-se em um parque e pensou que não queria ter nenhuma dessas profissões. “Eu queria”, ele se deu conta, “incomodar a consciência das pessoas”. Mas é evidente que você cria uma desordem para criar uma nova ordem; se possível, melhor. Distinguem-se três etapas na evolução psicológica. São elas: forming, storminge norming(formação, tormenta, normalização). Essas três etapas só podem surgir do questionamento, da dúvida. Com a condição de que as questões não sejam as mais simples nem as mais amáveis. É preciso enfiar a faca no peito e não hesitar em cutucar a ferida para tirar o que há de mais profundo no homem. É a única maneira de produzir um efeito e, talvez, de exercer influência. Aí está toda a importância, toda a nobreza da arte. O essencial é estar em conflito e se colocar, precisamente, “em questão”.
Por que você faz do suicídio, gesto essencialmente individual e solitário, um gesto para ser realizado a dois, que precisa de ajuda externa?
Não fui eu quem decidiu recorrer à ajuda externa. Foi a personagem. Sou apenas o espectador dessa situação. Eu também gostaria de saber o motivo de sua tentação suicida. No filme, o idoso pergunta ao motorista: “Por que você não fala? Qual é o seu problema?”. Mas ele não responde. Eu não sei quais são esses problemas nem tenho muita vontade de que o espectador saiba mais sobre eles. Meu objetivo, de todo modo, não é fazer o público chorar por sua sina. Ele não responde às perguntas dos três passageiros e, além disso, frustra nossa curiosidade. Como espectador, eu tento imaginar o que pode levá-lo a pedir ajuda para cometer suicídio. Mas as hipóteses formuladas para responder a essa pergunta na hora da escrita me pareciam ser mais interrogações de espectador do que de diretor. A única ideia que exploro no filme, como diretor, é que aquele homem talvez esteja simplesmente buscando, esperando se comunicar. Cioran conta que às vezes era solicitado por seus doentes, mas não tinha tempo para cuidar deles. Às vezes alguns abriam a porta para entrar à força na sala em que ele cuidava de seus pacientes, ameaçando se matar na hora. Cioran lhes respondia: “Excelente ideia. Por favor. É fácil e rápido fazer isso. Vá em frente”. Geralmente o doente se retratava: “Tá, mas estou com um pequeno problema. Esqueci que tinha uma coisa para fazer. Minha meia está furada... Meus pés estão sujos. Tenho que trocar a camiseta...”. Cioran conclui daí que eles não tinham a menor intenção de se matar. Estavam simplesmente pedindo atenção. Não é por acaso que a cada dezoito tentativas, dezessete fracassam. Isso traduz também o pouco desejo de morrer daqueles que se arriscam a fazer esse gesto. Poderíamos quase dizer que procuram com esse ato um pretexto para viver. Eu tinha imaginado que quando víssemos pela janela o candidato à morte, na véspera de seu suicídio, indo e vindo em seu quarto, ele poderia estar com um termômetro na boca para verificar se não está doente. Como ele também se recusasse a comer ovos explicando que é ruim para o colesterol. Em suma, vários detalhes que exprimem uma tergiversação entre o desejo de vida e o desejo de morte. O estudo das tentativas de suicídio, “bem-sucedidas” ou não, revela, no mais das vezes, muitos pontos positivos inimagináveis. No filme, o idoso acaba dizendo: “Se você quer realmente morrer, eu o ajudo. Enquanto indivíduo, você nasceu livre, até mesmo para dar cabo de sua existência”. É um ponto de vista bem diferente do que um religioso poderia defender, e que diria: “Não, você não tem direito de se matar”. O idoso lhe explica o contrário: “Como ser humano, você desfruta da liberdade de cada uma de suas escolhas”. A escolha de morrer é a única prerrogativa que um ser humano pode ter em relação a Deus e às normas sociais. Na vida, tudo nos foi imposto quase que desde o nascimento: data e local de nascimento, pais, casa, nacionalidade, físico, cor de pele, cultura... Nosso livre-arbítrio é, no final das contas, muito pouco solicitado por tudo o que um indivíduo faz. O artigo publicado no Le Monde durante o Festival de Cannes estava, portanto, totalmente certo ao inserir aquele subtítulo ao filme: “Um carro para a liberdade”. Essa liberdade fundamental de morrer cria, em seguida, outras liberdades, conquistadas uma a uma.
Em Gosto de cereja, assim como em Solução número 1 (1978) ou em Onde fica a casa de meu amigo?,diante de um problema ético, em relação ao outro, a resolução é, por fim, individual. Por que essa escolha recorrente?
Para mim, cada personagem é importante. Mas, em determinado momento, um deles deve se sobressair e ficar no centro do filme. Como nos quadros de grupo de Auguste Renoir, nos quais a multidão está na sombra e a luz distingue um único rosto. (Quando a posição no centro do quadro, por exemplo, não basta para valorizá-lo.) Acredito, aliás, que só pode haver moral individual.
Existe algum equivalente em persa da expressão, particularmente adaptada ao filme, “Ajuda-te, e o céu te ajudará”?
A expressão existe em persa. Dizemos mais precisamente: “O movimento (o gesto) é seu; de Deus vem a recompensa”.
Os três passageiros não questionam da mesma maneira o motorista. Como você caracterizaria cada um deles?
O primeiro, o soldado, representa a inconsciência e a juventude – e, para mim, no final do filme, todos aqueles soldados correndo no campo são o símbolo desse frescor, dessa juventude. O religioso encarna uma determinada posição do discurso e do saber, impondo, a priori, as fronteiras entre o bem e o mal – para além do dogmatismo religioso, eu designo, por meio dessa personagem, todas as convenções sociais impostas e jamais explicadas. Quanto à terceira pessoa, é um iluminado, um filósofo que, embora iletrado, tomou consciência dos verdadeiros valores pela experiência, pela vida. Daí seu direito de falar da liberdade de morrer como expressão do livre-arbítrio. “É você quem decide sozinho. Ninguém vai impedi-lo.”
Mas ele é taxidermista; logo, também tem uma relação singular com a morte...
É verdade, mas ele tem uma visão sensata da morte. Ele diz que mata pela vida, para aprender a viver. Se mata pássaros, é para os empalhar, preservar, e, de certa maneira, conservá-los vivos, oferecer-lhes uma forma de eternidade.
O lugar do espectador também muda com a sucessão desses três passageiros. No momento do primeiro encontro, o espectador e o passageiro não sabem nada sobre as intenções do motorista; no segundo, o espectador sabe qual é seu desejo, mas a personagem não; no último encontro, os dois estão a par da situação.
Segundo as normas clássicas, é inútil dar várias vezes as mesmas informações ao espectador. Na verdade, esses três indivíduos têm por função essencial servir ao espectador, ajudá-lo em sua busca de sentido. No terceiro encontro, o questionamento se dá em outro lugar. O porquê é ultrapassado e já não interessa. Encontramos esse tipo de substituição entre personagens no teatro iraniano. A primeira pessoa vai para o palco, fala de si mesma ao espectador, depois vai embora. Uma segunda personagem se apresenta, dá informações complementares, antes de sair também do palco, e assim por diante.
Você insistiu muito, no momento da estreia de Através das oliveiras, na necessidade de dar mais espaço ao espectador para que ele seja o verdadeiro coautor do filme. Em que medida Gosto de cereja satisfaz essa exigência?
É verdade, eu tive essa meta. Inclusive ao não explicar o que movia o motorista. Além disso, preferi deixar o filme inacabado para que o espectador o terminasse por mim. Dei concretamente livre curso à imaginação dele quando me recusei a lhe dar as respostas prontas. Essa abertura vale também para mim na cena de dissecação: não mostro nada, mas faço com que ruídos sejam ouvidos; eles permitem imaginar o que está acontecendo. Não se veem o escalpe nem os pássaros nem o professor nem os alunos, mas acredito que os espectadores imaginam claramente a cena. Sempre que temos a oportunidade de incluir cenas em que podemos solicitar a imaginação do espectador, nós lhe oferecemos a possibilidade efetiva de criar o filme conosco. Dirigimos suas ideias e guiamos sua imaginação para que ele tenha, em seguida, o cuidado de refletir por si mesmo sobre o devir das personagens, sobre o final do filme etc. Um poema de Molavi, há mil anos, já pedia para o leitor imaginar a continuação das frases e das histórias que ele anuncia.
O que representa no filme, e em seu cinema, o retorno à cidade, quase vinte anos depois de O relatório (1977), seu filme mais urbano?
Esse retorno à cidade não foi programado. Aconteceu sem que eu me desse realmente conta. Mas nada me impede de voltar para o campo em meu próximo filme. Eu queria, no entanto, que se assistisse à constituição da cidade. Daí essas áreas em obras e também a fábrica que tritura pedras para fazer areia, depois o concreto. Não a coloquei ali unicamente para homenagear Bouygues!2 Sério, para mim a construção da cidade tem relação com a aceitação das responsabilidades, que considero o principal tema do filme. Estar vivo é como estar em uma sala de cinema. A partir do momento em que temos um bilhete de saída e, entretanto, aceitamos ficar, temos que mostrar que somos responsáveis.
Como você escolheu o intérprete principal?
HomayounErshadi é um arquiteto que conheci na galeria em que ele vendia antiguidades. Fui logo avisando que ia lhe fazer mal, desrespeitá-lo. Mas o acalmei também dizendo que o suicídio é um pecado autorizado pelo cinema. Ele tinha uma personalidade parecida com a do motorista. Apesar do tempo de filmagem, nossa relação não evoluiu entre o primeiro e o último dia, e nunca ficamos de fato íntimos. Mas acredito que, felizmente, esse filme tenha lhe permitido se sentir melhor no plano afetivo.
Você pensou em inserir uma personagem feminina nesse filme e – por que não? – nesse carro?
Pensei que a mulher estaria tacitamente presente, no plano de fundo do filme, na mente do espectador. Parece-me que esse tipo de tema pede, como explicação possível, um problema de casal. A ausência da mulher me parecia ser um meio de lhe dar ainda mais importância e valor do que sua presença fugidia. O fato de não aparecer na tela lhe dá a possibilidade de estar presente na consciência de cada espectador. Quando o vemos pela última vez através da janela, podemos nos perguntar onde estão sua esposa e seus filhos, o que estarão fazendo. Devo dizer que, para mim, atrás de cada homem bem-sucedido se esconde uma mulher extraordinária. Vale dizer que uma mulher poderia muito bem estar atrás daquele homem que está mal, pois a relação amorosa, no sentido pleno de um casal, é provavelmente a coisa mais séria que nos é dado viver. Não necessariamente a mais importante, mas a mais séria!
Você ficou surpreso com o fato de, às vezes, a primeira meia hora do filme ser vista como uma cena de paquera homossexual?
É claro que criei propositalmente essa impressão. Esses mal-entendidos um pouco viciosos me parecem interessantes. Gosto muito das crianças. Sinto muito prazer em falar com elas. Mas sei que alguém vendo isso de fora pode se enganar completamente sobre o que está acontecendo na conversa. Gostei de induzir o espectador ao erro e de remetê-lo a sua própria perversão, a suas próprias fantasias.
Por que mostrar o carro dando voltas e percorrendo, com exceção da última viagem, sempre o mesmo caminho?
Essa miseenscènecircular faz parte da simbologia do filme. Dar voltas no mesmo lugar é, de fato, não ir a nenhum lugar. Estar em movimento para nada. Sem que haja sentido. É preciso ir de um ponto a outro para realmente avançar. Esse percurso remete, portanto, à ideia de inércia. E o que não se mexe, não cresce, não progride, está doente ou condenado a morrer.
Por que essa escolha musical na última sequência?
Como meus filmes não têm fim, gosto de terminá-los com uma música, inclusive para assinalar ao espectador que os créditos vão aparecer. Essa música, música de morte entoada sobre um cadáver, me interessou pela sensualidade do trompete de Louis Armstrong.3 Apesar de tudo, ela é alegre e otimista e servia, portanto, idealmente, à ideia de vida que devia emanar do filme. Além disso, ela me parecia estar muito próxima da poesia de Khayyam, na qual a alegria consegue surgir da dor. Como uma música de sepultamento que exalasse vida, quietude e até mesmo felicidade...
Qual é seu próximo projeto?
O título é Cerimônia especial. Ele será produzido por Marin Karmitz, e devo começar as filmagens em outubro, no Irã. Mas não quero dizer nada além disso. Ainda não...

Tradução do francês por Eloisa Araújo Ribeiro

Notas:
* Entrevista realizada em Paris no dia 29 de maio de 1997. Traduzida do persa para o francês por PedramMemarzadeh. (N.) Publicada originalmente com o título “Entretienavec Abbas Kiarostami – Unapprocheexistentialiste de lavie”, Positif, n. 442, dez. 1997. (N. E.)
** Ciment é crítico, jornalista e professor (Université Paris Diderot VII). Publicou, entre outros, Passeportpour Hollywood: entretiensavec Wilder, Huston, Mankiewicz, Polanski, Forman & Wenders (1992), Fritz Lang: lemeurtre et laloi(2003) e Le cinémaenpartage(com N. T. Binh, 2014). Goudet é crítico e professor (Université Sorbonne – Paris I), e entrevistou Kiarostami diversas vezes para a revista Positif; publicou Jacques Tati, de François lefacteur à Monsieur Hulot(2002) e Buster Keaton (2008). (N. E.)
1 Esse filme, montado e mixado pelo filho de Kiarostami, seria apresentado em 1997, no Festival de Locarno. Problemas técnicos impediram a projeção.
2 Coprodutor e distribuidor do filme pela produtora Ciby 2000.
3 Substituído depois de Cannes, a pedido da produtora Ciby 2000 por questões de direitos musicais, por trompetistas iranianos, tal como "Time, do Pink Floyd, desaparecera subitamente dos créditos de Através das oliveiras depois do festival de 1994.

Texto extraído do catálogo Um filme, cem histórias: Abbas Kiarostami. Organizado por Fábio Savino e Maria Chiaretti (CCBB, 2016)

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