segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Excerto de “Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno”


Por Luiz Carlos Oliveira Jr.

5. O orgasmo feminino      
   

            Nos anos 1980, como acabamos de ver, o debate em torno da representação da violência contra a mulher no cinema hollywoodiano esteve em alta, movimentado pela emergência de uma grande quantidade de pesquisadoras e críticas feministas oriundas dos círculos universitários norte-americanos. Em razão dos controversos thrillers hitchcockianos que então rodou (Vestida para matar Dublê de corpo), Brian De Palma esteve em muitos momentos no centro da polêmica, que seria reaquecida no início da década seguinte por conta de uma proliferação de filmes que adaptavam para o contexto da América pós-feminista dos anos 1990 a figura da femme fatale egressa do cinema noir clássico. “Catalisado pelo sucesso de Atração fatal [Fatal Attraction, Adrian Lyne, 1989], notório manifesto antifeminista”, nas palavras de Julianne Pidduck, esse ciclo de filmes floresceu e encadeou uma série de narrativas que “transformam em estereótipos negativos mulheres que têm uma personalidade muito forte e uma sexualidade sem complexo”.111De Mulher solteira procura (Single White Female, Barbet Schroeder) a Relação indecente (Poison Ivy, Katt Shea Ruben), passando por A mão que balança o berço (The Hand that Rocks the Craddle, Curtis Hanson) e Desejos (Final Analysis, Phil Joanou112), o ano de 1992 foi particularmente marcado por filmes em que a mulher de comportamento liberal e independente era retratada como neurótica, psicopata, deprimida, perigosa ou tudo somado. Segundo Pidduck, esses filmes “têm uma função ideológica claramente definida”: proteger o núcleo familiar tradicional do perigo representado pela ascensão da mulher liberal e independente, desligada do casamento e da maternidade, e por isso punida em narrativas cujos desfechos a encaminham para a quarentena ou a morte.113 Essa guinada reacionária estaria inserida num quadro histórico marcado pelo forte incômodo de uma parcela mais conservadora dos homens – a qual retornara em grande número na paisagem política dos anos 1980 – diante das conquistas feministas que vieram com as revoluções sexuais e comportamentais iniciadas no final da década de 1960. “No film noir tradicional, a femme fatale é frequentemente associada a um mal-estar profundo suscitado pela confusão de papeis entre o homem e a mulher numa sociedade em época de guerra ou de pós-guerra”.114No neo-noir dos anos 1990, a “ameaça” que pesa sobre os homens já é outra, e diz respeito à emancipação da mulher na sociedade
contemporânea.
            Dentre os filmes que compuseram esse ciclo de neo-noir do começo dos anos 1990, o mais ambíguo, complexo e interessante, sem sombra de dúvida, é Instinto selvagem (Basic instinct, 1992), de Paul Verhoeven, cuja matriz indisfarçada é Vertigo, como comprova a intriga ambientada em São Francisco e centrada nas perseguições de um detetive a uma loira pela qual está obcecado (este é, todavia, apenas o traço geral de um diálogo estético que vai bem além do mero remake de roteiro). O filme começa com uma cena de sexo. A princípio, trata-se de uma cena de sexo como outra qualquer, talvez um pouco mais ousada que de costume, mas ainda assim uma encenação do ato sexual enquadrada dentro dos parâmetros “realistas” que o cinema mainstream já aprendera a assimilar desde os anos 1970. O bônus só virá depois, com o clímax da relação sexual e a irrupção da violência. No momento em que isso ocorre, a mulher está posicionada sobre o homem, e este se acha com as mãos atadas à cabeceira da cama. O controle da situação, portanto, é dela. A cena segue um crescendo de tensão erótica, tendo como ápice o orgasmo da mulher. É então que, em meio às convulsões de prazer, ela pega um picador de gelo debaixo das cobertas e começa a atacar o amante. Os movimentos das estocadas se somam aos espasmos orgásticos, ao passo que os gemidos de prazer se trocam por gritos de dor e urros raivosos. Ao lado da mesa de cabeceira, a estatueta de um dragão estilizado faz eco à violência flamejante da loira assassina.


            
            Esta cena de abertura de Instinto selvagem dispõe de uma combinação de erotismo e violência gráfica ainda mais exclamativa que a dos filmes de Brian De Palma. A diferença é que, desta vez, a vítima é um homem, e a assassina é uma mulher cujo rosto não aparece, pois permanece ora tapado pelo cabelo, ora fora de quadro, gerando uma indeterminação quanto à sua identidade, algo que será essencial para a manutenção do clima de suspense e ficará sem esclarecimento mesmo após o final.
            A principal suspeita do crime será a namorada do homem assassinado, Catherine Trammel (Sharon Stone), uma mulher de charme, beleza e frieza notáveis. Formada em psicologia, escritora de romances policiais, bissexual, viúva de um lutador de boxe, Catherine é uma loira rica, intrigante e – novidade em relação às femmes fatales que vieram antes dela – intelectual. Nick Curran (Michael Douglas), o detetive encarregado de investigar o assassinato, se envolverá com ela, dando início a um relacionamento perigoso e imprevisível.
No decorrer da investigação, Nick descobre que o modus operandi do crime havia sido descrito, anos antes, num dos best-sellers de Trammel, o que serve tanto para incriminá-la como para absolvê-la, já que ela pode usar – e, de fato, acaba usando – o livro como álibi (“Vocês acham que eu seria estúpida o suficiente para matar um homem exatamente da forma como havia descrito no meu livro?”, ela pergunta aos policiais durante um interrogatório). O filme possui uma trama assaz complicada e sinuosa, que não cabe aqui esmiuçar. Concentremo-nos apenas nos aspectos que participam de maneira mais direta da forma como Verhoeven responde às eternas questões colocadas por Vertigo. Começando pela cena em que ele desmembra o plano-espelho de Vertigo num campo-contracampo entre o olhar de Nick e o espetáculo a ele oferecido por Catherine, que troca de roupa no closet de sua casa de praia:

            A decupagem da cena obedece à estrutura convencional do plano-ponto-de-vista: há um plano do olhar de Nick e o plano seguinte mostra o que ele está olhando (no caso, Catherine nua). Com isso, o enquadramento do plano-espelho exclui a figura do detetive, que foi deslocada para outro plano. O que se tem agora é uma imagem duplicada da femme fatale, com a devida inversão que é própria da imagem especular, anunciando que “Instinto selvagem será um filme sobre a reversibilidade dos signos, a confusão e a reflexividade”.115 Essa duplicação/inversão da imagem da femme fatalecondena à especulação infinita a investigação de Nick, a qual entra em curto-circuito com o romance que Catherine está escrevendo, e do qual ele participa como fonte de inspiração para uma personagem. Usando Nick como objeto de pesquisa para seu próximo livro, e fazendo da realidade um mero reflexo do que já consta em seus romances, é como se Catherine se apoderasse da própria intriga do filme.
            O campo-contracampo da cena do closet separa, por um lado, mas unifica, por outro, os espaços visuais ocupados por Nick e Catherine. Verhoeven aí formula não só o espelhamento que se criará entre as duas personagens como também a oposição que o filme promoverá entre o mundo previamente organizado e hierarquizado da enquete policial, personificado pelo cartesianismo tatibitate do detetive, e o universo sem amarras da criação literária, encarnado pela inteligência provocativa da escritora.
            A primeira imagem de Instinto selvagem já havia figurado a quebra da unidade do ponto de vista masculino sobre a mulher: na superfície fragmentada de um prisma (espécie de espelho cubista), refletira-se a imagem difusa de um corpo feminino decomposto em diferentes ângulos. Verhoeven apresentara seu filme, assim, como “um Vertigo que teria trocado o motivo da espiral pelo do cubismo”.116 De fato, um retrato feminino pintado por Pablo Picasso apareceria mais tarde exposto numa das paredes da casa de Catherine, como a indicar de onde saiu o conceito visual do filme.
            A lógica de desnudamento do plano-espelho de Vertigo, já mencionada na análise de Dublê de corpo, atinge aqui a literalidade. Se o plano de Hitchcock era um dispositivo erótico disfarçado, o de Verhoeven o é de forma assumida. EmVertigo, a nudez de Madeleine era objeto de elipse: depois de ser salva do afagamento, ela já aparece na casa de Scottie vestida com um robe emprestado por ele; um plano da área de serviço mostra as peças da roupa que ela antes usava secando no varal, verdadeira imagem de substituição para o corpo nu de Kim Novak. Já em Instinto selvagem, o corpo nu de Sharon Stone é entregue de forma direta, sem recurso alusivo – é um a priori do filme.
            Truffaut, assim como Godard, havia observado que Madeleine não usava sutiã. Ora, Catherine, como a cena do closet demonstra, não usa sutiã nem calcinha. Para ir à delegacia prestar depoimento, ela simplesmente veste um tubinho branco, sem nenhuma roupa de baixo, dando ensejo ao plano mais famoso do filme, aquela inesquecível descruzada de pernas de Catherine durante a cena antológica do seu interrogatório. Por um breve momento, o sexo da escritora fica à mostra, deixando os policiais boquiabertos e desconcertados. A nudez de Madeleine em Vertigo permanecia na esfera da fantasia, do desejo irrealizado, do fantasma; a de Catherine em Instinto selvagem faz parte da realidade frontal e corpórea filmada por Verhoeven. A personagem de Sharon Stone não tem nada a esconder, e aí reside sua grande opacidade. Submetida ao detector de mentiras, ela se safa. Mas, num diálogo com Nick, ela diz que a máquina pode ser enganada. Tudo nela está exposto, tudo dela está à mostra – e, no entanto, tudo permanece indecifrável; a hipervisibilidade funciona como um novo tipo de máscara. A melhor forma de se esconder, para Catherine, é se mostrar. O véu, a aura fantasmática que cobria a femme fatale clássica desapareceu, mas deixou em seu lugar um corpo tão em evidência que já não se sabe mais o que ele é. “Classicamente, a femme fatale se define como uma personagem de duas faces. Um polo angelical se opõe ao polo demoníaco e manipulador, um se apagando ao longo da ficção para deixar que o outro apareça. Figura da duplicidade, a femme fatale só revela seu ser profundo por um processo gradual”.117 Em Instinto selvagem, porém, os dois lados permanecem indiscerníveis: “Catherine multiplica os elementos que desfazem a unidade”.118 Esfinge moderna, ela desafia o entendimento dos homens, faz deles meros peões tontos no seu tabuleiro de xadrez. Impossível encurralá-la e forçá-la a confessar sua verdade, como se fazia com a femme fatale no film noir clássico. Aqui, Catherine se mantém inabalável como enigma.
            A impossibilidade de determinar a identidade da assassina coloca Nick em estado de paranoia. E isso perdura até os instantes finais. No último plano do filme, a câmera realiza um tilt para baixo da cama em que Nick e Catherine estão juntos, focalizando um picador de gelo em plano-detalhe, signo do possível destino que aguarda o herói. “Até as suas últimas imagens, Instinto selvagem sublinha a vulnerabilidade física e sexual e a autoridade moral declinante do protagonista masculino”.119 Ciente do seu poder sexual e ligada a outras mulheres por laços afetivos enigmáticos, Catherine tem todos os ingredientes para provocar paranoia e ansiedade nos homens. Suas melhores amigas são mulheres que já assassinaram maridos, amantes, irmãos etc. É nesse universo povoado por loiras atraentes, sexualmente ambíguas e predadoras de homens que o filme se instala.
         Uma vez que as personagens femininas de Instinto selvagem, todas elas lésbicas, bissexuais ou pelo menos já tendo experimentado relações com outras mulheres (como é o caso de Beth, a psicóloga e amante ocasional de Nick), são retratadas como homicidas em potencial, o filme não passou em branco para a comunidade gay, que protestou contra ele na época de sua estreia nos cinemas. As feministas também ergueram a voz, mas nem sempre para condená-lo. A fascinação de J. Pidduck com Instinto selvagem, apesar de todas as suas reservas, é um exemplo perfeito do tipo de reação ambivalente que o filme provocou. A crítica reconhece que, embora se trate de “uma obra infinitamente misógina”, há momentos em que “as questões de gênero e de poder são colocadas de modo bastante produtivo [...], oferecendo uma crítica bastante irônica e até mesmo involuntária dos valores familiares, das relações entre sexos e da autoridade masculina”.120 Pidduck segue aí uma vertente importante dos estudos feministas de cinema que, em vez de buscar num gênero como o film noir apenas a cristalização das estruturas opressivas do patriarcado, procura destacar também o potencial liberador de heroínas que não estão encerradas no quadro familiar, chamando a atenção para “o fato de que os excessos narrativos e estilísticos do gênero podem ser vistos como a expressão de contradições no coração da ideologia patriarcal que os filmes são incapazes de resolver, apresentando assim uma autocrítica involuntária de seu próprio projeto ideológico”.121 A reciclagem da figura da femme fatale na cultura popular dos anos 1990, como Pidduck percebe, não deixa de expressar um profundo abalo no inconsciente coletivo provocado pela revolução feminista. “Ainda que ela não revele nada de real no que concerne a experiência de base da mulher norte-americana, a impossível figura da mulher violenta veicula uma carga afetiva e fantástica, um excesso discursivo que pode ser, no fim das contas, bastante estimulante para o discurso feminista”.122 Um filme como Instinto selvagem proporcionaria, segundo a pesquisadora, uma inversão dos papeis, uma transformação radical da “persistente convenção cultural” segundo a qual a mulher é sempre retratada como vítima da violência. Pidduck termina o texto admitindo que Catherine Trammel/Sharon Stone, com sua verve, sua sexualidade desenfreada, sua capacidade de enfrentar e desconcertar uma sala repleta de policiais durões, sem falar na habilidade com que maneja o já lendário picador de gelo (signo da castração), provoca na espectadora feminista momentos do mais intenso e supremo guilty pleasure.123
  

110 Ver Carol J. Clover, “Her Body, Himself: Gender in the Slasher Films”, in GRANT, Barry Keith (org.), The Dread of Difference: Gender and the Horror Film, Austin: University of Texas Press, 1996.                                               
111 J. Pidduck, “La femme fatale hollywoodienne des années 90: Basic instinct, un cas de figure”, in Vertigo, nº 14 (dossiê “Féminin/masculin”), janeiro de 1996, p. 127.     
112 Desejos é uma readaptação de Vertigo não totalmente desprovida de interesse. O filme começa afirmando o poder da psicanálise através da personagem de Richard Gere, psicanalista que, durante uma sessão de julgamento num tribunal, é tratado como autoridade incontestável. Mas, daí em diante, tudo o que se vê é uma queda contínua e irreversível do protagonista masculino, que carrega consigo a credibilidade da psicanálise. O enredo de Vertigo é retorcido por Phil Joanou de modo a colocar a mulher no controle absoluto da situação e, principalmente, a contestar essa autoridade psicanalítica que havia sido a moldura de tantas ficções hollywoodianas desde os anos 1940, sobretudo aquelas com que o filme dialoga (noir, woman’s picture). 
113 Pidduck, art. cit., pp. 127-128.        
114 Ibid., p. 127.
115 Olivier Marie, “L’indistinct manifeste”, in Éclipses, nº 42, 2008, p. 71.                  

116 Ibid., p. 70.                                                                                                          
117 Ibid., p. 74.                                                                                                          
118 Ibid.                                                                                                                   
119 Pidduck, art. cit., p. 128.                                                                                      
120 Ibid., p. 129.                                                                                                         
121 G. Vincendeau, “Lectures féministes”, art. cit., p. 124.                                            
122 J. Pidduck, art. cit, p. 129.                                                                                    
123 Ibid.                                                                                                                     
124 L. Williams, Screening Sex: Une histoire de la sexualité sur les écrans américains, Paris: Capricci, 2014, p. 119.  

Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27161/tde-29062015-123125/pt-br.php 
                                                                                                

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