domingo, 5 de fevereiro de 2017

Robocop - O policial do futuro


(Paul Verhoeven, Robocop, EUA, 1987) 


Paul Verhoeven não é um pensador (ou ao menos um bom pensador), e Deus o abençoe por isto. Da mesma forma também não é vanguardista, intelectual ou sutil. Existe nos seus filmes um certo incômodo, uma certa incerteza quanto a como nos posicionarmos diante do que nos é mostrado. Paul Verhoeven, ele simplesmente é o que é, e estaríamos muito mais pobres se não o fosse.            


Primeiramente as primeiras coisas. Verhoeven é um dos poucos cineastas no cinema contemporâneo que supõe e propõe a existência de alguma confusão (ideológica, moral, estética, cinematográfica) que valha ainda ser posta em cena. Robocop, a crise da narrativa em O Vingador do Futuro, Las Vegas e o espectro do erotismo em Showgirls: todos são reflexos de uma sociedade (a Norte América) apanhada e projetada por um olhar de fora (o holandês Verhoeven). A câmera de Verhoeven, o eixo que organiza todos os seus recitos, será obrigatoriamente os Estados Unidos, em tudo o que possui de mais atraente e mais repugnante (este último constantemente se confundindo com o primeiro). E portanto Robocop, ou em outras palavras o cartão de entrada de Verhoeven nos Estados Unidos.  

Da carne putrefata de um mundo surgirá a armadura reluzente de outro. O policial Murphy reencarnado como Robocop, o abandono da Europa pelos Estados Unidos, a textura da película (memória) substituída pela definição carente do vídeo (programa), a morte de Cristo e sua ressurreição, Fritz Lang na UFA criando o monumento Metrópolis e Verhoeven na Orion Pictures dirigindo o filme B que Robocop é. É desta forma que Verhoeven não só opera uma complexa inversão de conceitos pela maneira como dramatiza seu grande e exagerado policial/ficção-científica/emulação de Metrópolis (a armadura reluzente acaba se revelando nada mais que o resto frágil e a mentira arrojada de um mundo outrora mais vivo, imperfeito e interessante) como subverte e perverte com sua mise en scène um certo imaginário yuppie que por meados dos anos 80 (época de realização deste filme) faz-se cada vez mais presente nos filmes de gêneros norte-americanos.     

É esta a fortuna de Verhoeven: a necessidade de simplesmente olhar as coisas que estão ao seu redor. Talvez a coerência de sua obra surja desta urgência, desta capacidade de aceitar que olhar é mais fácil (e interessante) que pensar. Apropriar-se de contextos e realidades sociais e políticas, de um sem-número de signos contemporâneos, e não organizá-los, não buscar dar a tudo isso uma lógica e uma clareza que fora da câmera não possuem, isso é fazer passar pelo cinema os Estados Unidos de hoje (algo que Paul Thomas Anderson, Neil LaBute e Todd Solondz, grandes pensadores que são, ainda não conseguiram entender).           

Como Fassbinder e Pasolini nos anos 60 e Scorsese e Cimino nos 70, Verhoeven tenta apanhar uma imagem e fazer dela um objeto histórico, um aparato de compreensão do mundo; ao contrário de Cimino e Scorsese (e, no fim das contas, do objeto de culto Lang) e semelhantemente a Fassbinder e Pasolini, Verhoeven é muito menos um "visualista" que um autêntico e genial "visceralista". Suas imagens são confusas e agressivas; a violência não só existe naquilo que se filma como na maneira da câmera se relacionar com o universo hiper-codificado no qual Verhoeven situa todo o seu cinema (existem poucas artes mais propositalmente assimétricas que a de Verhoeven). Estes elementos se acumulam, não parece que tão cedo surgirá um dispositivo de encenação ou de conceito para articular e mediar toda essa confusão, e a única coisa que resta ao espectador é enfrentar isso tudo. Difícil, sem dúvida, mas as recompensas mais do que fazem valer as penúrias e os riscos.  

É no casco do policial andróide que temos a resposta para todo o caos que Verhoeven coloca e com o qual nos confunde: toda a desordem sígnica (e histórica) precisa encontrar um centro para onde se precipitar, e para o diretor Robocop será este centro. No meio deste amalgama de informações, verdadeiro filme-palimpsesto do caos moderno (pois Verhoeven sabe que essa imagem dos anos 80 que seu filme busca registrar nada mais é que a projeção de imagens passadas, uma imagem que jamais poderá de fato ser futurista por ser tão-somente retrô), encontramos justo uma imagem dos nossos tempos. Nem Reagan nem Bush Jr., nem Metrópolis ou Alphaville ou Detroit, mas apenas o mundo onde vivemos.


 
Bruno Andrade      

Texto retirado do dossiê Paul Verhoeven da revista Contracampo: http://www.contracampo.com.br/62/dvdvhs.htm  

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