De Carlos Natálio
A dada altura no documentário Paul Verhoeven – from Holland to Hollywood (1996), Rutger Hauer conta que, após De vierde man (O Quarto Homem, 1983), filme cheio de mensagens subliminares para agradar aos “deuses da crítica” e ao seu aparelhinho semiótico e psicanalítico, o realizador lhe confessou que não podia continuar a fazer estes filmes demasiado esotéricos e que queria coisas maiores, de acção ou ficção. «I don’t like this thinking shit!», disse ao actor, referindo-se aos filmes intelectuais que o comité de avaliação das subvenções estatais na Holanda passou a valorizar sobretudo a partir dos anos 80.
A dada altura no documentário Paul Verhoeven – from Holland to Hollywood (1996), Rutger Hauer conta que, após De vierde man (O Quarto Homem, 1983), filme cheio de mensagens subliminares para agradar aos “deuses da crítica” e ao seu aparelhinho semiótico e psicanalítico, o realizador lhe confessou que não podia continuar a fazer estes filmes demasiado esotéricos e que queria coisas maiores, de acção ou ficção. «I don’t like this thinking shit!», disse ao actor, referindo-se aos filmes intelectuais que o comité de avaliação das subvenções estatais na Holanda passou a valorizar sobretudo a partir dos anos 80.
Até aqui na sua carreira os temas profundos tinha estado arredados. Isto mesmo se consideramos como excepção Soldaat van Oranje (O Soldado da Rainha, 1977), pelo facto da acção conspirativa durante uma Holanda ocupada (uma das imagens matrizes da sua infância) se encontrar paredes meias com o carácter mais sério de uma certa homenagem aos heróis da resistência da 2.ª Guerra Mundial. Até aqui Verhoeven tinha estado bem mais interessado em infantilizar os fetiches da sexualidade masculina em Wat zien ik (Negócios são Negócios, 1971), perante um universo feminino escada abaixo escada acima (literal e social), usando o sexo como instrumento de poder, entre a aliança de casado nos dedos (objectivo do par de prostitutas do referido filme) e a necessidade de fazer a manicure a outrém [símbolo do trambolhão na escada, nesse outro filme, Showgirls (Showgirls, 1996) de duas protagonistas que tentam subir os degraus que dão acesso ao palco da “glória” de Vegas, afastando-as, provisoriamente, do fedor das putas, exalado dos neons mais recônditos de uma cidade do glamour e do prazer.]
Interessado ainda em capitalizar a frontalidade típica holandesa para o período de emancipação e libertação cultural e sexual vinda dos anos 60 numa relação que não podia separar o amor, o romance e o drama, do sexo, do vómito e da merda. Subversivo, dirão os espectadores que vão ver Turks Fruit (Delícias Turcas, 1973) aos magotes; realista, dirá Verhoeven, para sempre preso a este falso epíteto. Nem vale a pena continuar a detalhar a propensão pelo “baixo” em Verhoeven. No seu período holandês isso é uma evidência que não pode esquecer-se da sordidez do século XIX, na ascensão rags to riches em Keetje Tippel (Katie Tippel, 1975); do pénis como primeira arma de guerra, do amor entre enforcados, no período de transição entre a Idade Média e a Renascença, em Flesh+Blood (Amor e Sangue, 1985); ou ainda em Spetters (Viver Sem Amanhã, 1980), as competições, entre jovens holandeses, no motocross, na dimensão do respectivo “croquete” e na conquista de uma sexualidade real, sem gemidos falsos.
Serve este voo picado, mais ou menos anárquico, por metade da obra de Verhoeven para salientar que a referida “thinking shit” de que se falava no início não podia estar mais arredada das ambições de alguém que aprende a fazer cinema durante o serviço militar na Marinha. Esse ritmo “militarista” rapidamente ultrapassou o mero desejo de chocar próprio da juventude e percebeu que o choque fazia parte da vida ela própria, vida esta vista como uma máquina de gerir confrontos e de receber e infligir, de forma eficiente, os golpes. Ainda no referido documentário, Verhoeven conta outro movimento importante que explica essa sua concepção material da realidade. Aos vinte e poucos anos decidiu afastar-se da religião cristã enquanto praticante pois percebeu que essa visão do mundo estava prestes a tomar conta da sua mente. Essa fuga “para baixo”, de abandono do idealismo, explica porque Verhoeven é muito mais um autor na tradição holandesa da pintura realista (seguindo os mundos bizarros e detalhados de Hieronymus Bosch ou Pieter Bruegel) do que do simbolismo fantasioso e surreal de Luis Buñuel ou Salvador Dalí.
Contudo, nunca o holandês abandonou o cristianismo, nem sequer a sua iconografia. Desta, são exemplos famosos, as citações bíblicas digeridas De vierde man (um filme que alia à culpa religiosa a culpa homossexual, redundando em pesadelos de castração masculina); os halos luminosos que habitam os planos em Spetters na cena em que Rien pensa poder recuperar o uso das pernas por acção de um milagre numa comunidade local; o enquadramento do santo “terreno”, o mercenário Martin (Rutger Hauer) em Flesh+Blood; ou ainda, claro, o novo Deus ex-machina RoboCop caminhando sobre as águas. Em todos os casos, é no contexto do corpo e do seu dilema que resurge a dimensão espiritual.
RoboCop (RoboCop, o Polícia do Futuro, 1987), o primeiro filme feito além Atlântico, é dessa relação o mais emblemático. Foi apontado que o último plano de Flesh+Blood – no qual Rutger Hauer escapa pelos escombros de um castelo em chamas – mais do que significar a passagem de testemunho dos métodos medievais à iluminação racional da Renascença, simbolizaria uma fuga do próprio Verhoeven para outro mundo, no caso, os Estados Unidos. E tal como o polícia Alex Murphy tem de entrar no interior da máquina para sobreviver, o mesmo aconteceria com o holandês a partir daqui a trabalhar no interior da máquina hollywoodiana. Mas pode prolongar-se o paralelismo. Se o que seduziu Verhoeven em RoboCop (depois de devidamente aconselhado pela sua mulher) foi o facto de o futurismo do argumento espelhar o dilema de um homem que perde o corpo e a alma e ressuscita, também esse seria o seu dilema a partir daqui. Como espelhar uma alma cinematográfica num outro corpo, cujas variáveis, não controlava?
Chegados aqui pode dizer-se que Verhoeven soube naturalmente como manipular, contrabandear, esse corpo hollywodiano: o excesso, a violência gráfica e o humor eram as pontes com o grande público, aquilo que precisava para fazer dos seus filmes sucessos de bilheteira. Depois de RoboCop, Total Recall (Desafio Total, 1990) e Basic Instinct (Instinto Fatal, 1992) fariam explodir tudo à sua volta. O “instinto básico” de Verhoeven parecia ter encontrado o seu terreno natural. Mas o desafio naturalmente que era outro. Era, invisivelmente, inverter as premissas. Como quando, em Flesh+Blood, Rutger Hauer descobre que não é ele que está a violar Jennifer Jason Leigh, mas o contrário (o melhor exemplo do poder negociador e manipulador das personagens femininas no sistema-Verhoeven, mulheres que são uma espécie de alter ego colectivo do realizador).
Essa inversão, de encontrar na carne o espiritual, o sagrado no ordinário, mas também, a mensagem corrosiva na diversão, corresponde ao propósito de todos os filmes de Verhoeven. Ou melhor, corresponde ao processo de ressuscitação de um cineasta no corpo imaterial de um AUTOR. É isso que, como no passado aconteceu com realizadores como John Ford ou Raoul Walsh, hoje sucede com a carreira do holandês. Um processo moroso de revisão dos seus filmes, de compreensão conjunta do cinema como uma articulação heterogénea entre o alto e o baixo, de processamento do “pensamento” dos filmes como algo mais complexo do que o moralismo, a bandeira ou os grandes temas. É precisamente neste processo que se enquadra a presente retrospectiva que nos dá este ano o Festival IndieLisboa.
E não deixa mesmo de ser revelador que hoje, dois dos seus flops nos Estados Unidos, Showgirls e Starship Troopers (Soldados do Universo, 1997), sejam elevados às obras-primas máximas de Verhoeven. Este movimento ascensional do lixo ao luxo, só vem comprovar a “destreza” do movimento de recuperação autoral que procura vasculhar o subtexto no texto. No primeiro caso, o diagnóstico interno da sociedade americana, a partir do microcosmos de Vegas, espécie de “sanita forrada o ouro”, onde toda a gente usa toda a gente e onde a corrupção, o sexo e a competição são pedras de toque de uma máquina eficiente. Sátira ou realismo, tudo depende de que lado se olha. No caso de Starship Troppers o movimento é inverso: é a política externa americana que se mostra (o filme foi feito durante a guerra do Iraque) em todo o seu esplendor bélico, recuperando a imagética de Leni Riefenstahl e dos soldados nazi das SS, para um mundo americanizado e higiénico de barbies e kens, onde o futuro do neo-liberalismo é levado ao extremo da galáxia.
Quer num caso quer no outro, creio que o movimento de recuperação autoral se deixa apenas deslumbrar pela mensagem. Uma boa imagem é esta: quando Verhoeven decide aumentar o tamanho dos insectos (como um Outro sem rosto nos quais nos espelharemos no futuro) ele acaba por reduzir a humanidade, por relação, à condição de insectos. Desta forma, assistir a Starship Troopers é um pouco como ver um duelo entre lógicas diferentes de organização e combate de dois tipos de insectos. Aí, o realizador surge como “entomologista de uma espécie”, neste caso, a norte-americana. É esse o risco, creio, de pegar em filmes que têm sobretudo uma metáfora de qualquer coisa, secando tudo o resto à volta. Embora parta do mesmo impulso crítico da sociedade de consumo capitalista, do excesso de uso de armas, do poder destrutivo da publicidade e dos media, RoboCop joga muito melhor o jogo entre a mensagem e o drama, o soft inside do humano de Murphy (que ainda é alimentado a comida de bébé) e o hard da carapaça maquínica. Isto é, entre a história e a História, num espelho feito para distorcer as imagens para ambos os lados. (Isto pressupondo que um autor não é, de facto, apenas um cineasta que usa o ordinário para dar a ver o extraordinário, mas alguém que faz da própria natureza do comum uma matéria de trabalho complexa).
Mas insistindo na imagem dos insectos talvez se possa remover uma certa injustiça em relação a Starship Troppers. É certo que as suas personagens são débeis de um ponto de vista interior e se juntam ao seu par amoroso menos por amor ou desejo e mais por uma inapelável feromona qualquer. Neste sentido é o paradoxo: como se o processo de descrição realista das máquinas sociais (e nela dos seus indivíduos, que para sobreviver na sociedade usam o seu corpo como uma carapaça e arma bélicas) atingisse um tal grau de depuração que fosse necessário remover o interior das pessoas, filmando só o contorno. O fascismo da guerra e a higiene política, na total eficiência, não teriam então como ser coerentes se habitassem um filme com personagens que “prendessem” o espectador, com cenas de acção que progredissem segundo uma lógica aristotélica. Afinal a descoberta da suposta inteligência no inimigo redunda meramente num instinto básico: o medo. Depois, ao corpo formatado como boneco, ou como «fresh meat for the grinder», só lhe resta desaparecer, invisibilizar-se.
Hollow Man (O Homem Transparente, 2000) culmina o trio de flops nos Estados Unidos e fecha também um lento processo de evicção do corpo que havia começado com a destruição biológica do polícia Murphy. Mas se aqui o bug do biológico (pelas memórias de um passado, pela consciência moral de ter de prender o seu criador) esperneia ante este procedimento de maquinização, também Kevin Bacon sente que o seu problema não é tanto o de perda de um corpo, mas de um sentimento interior de vazio (neste sentido, a tradução portuguesa perdeu a oportunidade de traduzir o hollow do título por uma palavra que transmitisse mais essa dimensão oca). Também Total Recall e Basic Instinct são isto. Arnold Schwarzenegger instala-se com o seu pesado corpo num mundo que lhe retira a certeza da sua fisicalidade, tendo de caçar memórias, que, Verhoeven mantém até à última, como a possibilidade de provirem de um corpo real ou de serem meros produtos de uma máquina de sonhos. Método de Hollywood? Bien sûr. Ou o mesmo com Sharon Stone que, sendo «the fuck of the century» e usando o corpo como método de escrita, pode ter-se deixado abalar pela sua própria máquina. É o «mind fucking» do espectador, mas também do amor como possível bug no sistema eficiente e utilitarista do uso dos corpos em Verhoeven.
E o que terá mudado nessa viagem da Holanda para Hollywood? Pode-se ilustrar essa mudança com uma peripécia. Um dos actores favoritos de Verhoeven, Jeroen Krabbé, conta como, em De vierde man, se negou a tirar as cuecas para fazer uma cena em que se masturbava, observando pela fechadura de uma porta, Renée Soutendijk a ter relações com outro homem. Apesar de Verhoeven ter tirado as próprias cuecas no set para mostrar como se faz ao actor, este levou a sua adiante. Nove anos depois, virada do avesso a história do escritor envolvido num triângulo amoroso, Verhoeven mantém a ideia. Sem cuecas, Sharon Stone, “viola” o olhar de Michael Douglas e demais voyeurs (como em Flesh+Blood na já referida cena de violação, ou como quando Christine, perfura, indirectamente, o olho da sua quarta vítima em De vierde man) na célebre cena do descruzar de pernas de Basic Instinct. Isto é, na Holanda o frenesim da aproximação à realidade só encontrava o obstáculo casual de cada actor e nunca do sistema; nos Estados Unidos, o realizador precisou de trabalhar a sugestão e o flash, pois sabemos que no quintal do vizinho as coisas parecem giras e audaciosas, mas no nosso convém ter mais calma.
O dilema na Holanda nunca foi então carnal e as pilas era medidas, cortadas, entaladas, chupadas, fritas como croquetes, num sistema de mulheres guerreiras e negociadores que de puta a senhora jogavam o jogo da sociedade. Flesh+Blood, primeiro filme com dinheiros americanos e filmado em Espanha, é extremamente revelador dessa mudança de modus operandi. Filme de transição entre idades históricas, mas também de carreira para Verhoeven, ele ilustra bem o que mudou. Já vimos que nos Estados Unidos, se problematizou sobretudo o desaparecimento do corpo e da carne (um problema que arranca com o pudor da sensibilidade moderna e avança com a tecnologização da sociedade e sua dessensibilização) à custa da revelação, mais ou menos paródica e excessiva, do sangue do sistema neo-liberal, que põe tudo a circular. O sangue esguicha de todas as cores em Starship, os corpos vão já sendo perfurados e desfeitos pela força da bala ou da ideologia. Inclusive os corpos batem uns nos outros, em Vegas, em guerras estelares ou em quartos luxuosos de hotel, ao ponto do zénite em que desaparecem totalmente e se “manequizam”, finalmente já dispostos na perfeição dos corpos recauchetados, sem consciência ou dilema.
Já na Idade Média era diferente e a carne mostrava-se, pois o que valia era o sangue. O mesmo pode dizer-se dos corpos despidos e usados nos filmes holandeses de Verhoeven. O segredo sempre foi atingir a invisibilidade do sangue, como seiva vital de compreensão de como funcionava a sociedade. Não é inocente que a travessia verídica de Keetje Tippel – da fome e pobreza a uma certa ascensão social – culmine com ela a chupar o sangue da burguesia, na última cena do filme. Ou mesmo que Spetters, o filme sobre a juventude holandesa, tenha provocado reacções extremas nas comunidades feministas, homossexuais ou de defesa dos direitos dos deficientes. E fê-lo, não porque Verhoeven tenha mostrado a carne desnuda e atrevida, mas porque a usou para atingir o “sangue” da comunidade, e revelar como este continha na sua genética, na fabricação dos seus consensos, uma atitude imoralmente competitiva e discriminatória.
Ainda em Flesh+Blood é o sangue do cão contaminado pela peste o que conspurca a água e o que vai eliminar os resquícios do corpo exposto dos mercenários da Idade Média (vestidos de vermelho, em comunidade, como uma última réstia de utopia comunista antes de avançar para a América). Essa eliminação pelo sangue não é fruto de um castigo moral. O filme mostra que não há heróis e vilões, princesas e monstros. Há apenas um girar constante dos elementos em jogo (movimento que Verhoeven sempre capitalizou em quase todos os seus filmes como dramático), em que cada pessoa, com as suas motivações egoístas, tentará sobreviver. Movimento sem fim à vista como no plano da nova guerra com que termina Zwartboek (Livro Negro, 2006). Esse movimento “adapt or die”, Verhoeven viveu-o: do protestantismo liberal europeu ao conservadorismo puritano americano foi mudando, tal como Jennifer Jason Leigh, de amor. Isto sem nunca descurar o ataque ao sangue do sistema em que trabalha.
Terminemos agora como começámos, com a “thinking shit” que perturba Verhoeven. Ela é de facto uma excrescência face a uma pureza do detalhe, da frontalidade no cinema do holandês. É a diferença entre o sangue revelador e o sangue como símbolo. Como os Bloody Marys, as rosas ou as carcaças de vaca penduradas a pingar em De vierde man. Este vermelho sangue, longe de mostrar o âmago do que filma, é uma porta de entrada simbólica nessa teia de aranha surreal que Verhoeven armou aos críticos da altura. Por exemplo, a literalização do soutien como arma de asfixia tem um alcance muito mais limitado (no sentido dessa revelação) do que as mesmas armas de Nomi Malone ou do par de prostitutas em Wat zien ik. Ou a chave pistola na visão do escritor, no mesmo filme, uma menor eficácia face ao picador de gelo da escritora em Basic Instinct.
Em suma, a “merda do pensamento” num autor como Verhoeven revela-se antes no movimento militarista da vida a acontecer ou na eminência da explosão. Por isso, a frase da cabeça da matrona explosiva em Total Recall – «get ready for a surprise» – talvez seja o moto que hoje melhor define a filosofia do realizador. Preparemo-nos então, a partir de hoje, para celebrar essa surpresa no IndieLisboa, através da redescoberta da “profundidade da superfície” no cinema do herói independente deste ano, Paul Verhoeven.
O texto foi publicado originalmente em http://www.apaladewalsh.com/
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