por Luc Moullet
Os jovens cineastas americanos não têm nada a dizer, e Sam Fuller menos ainda que os outros. Há algo a ser feito e ele o faz, naturalmente, sem se forçar. Esse não é um pequeno elogio: detestamos os filósofos fracassados, que fazem cinema apesar do cinema, que reproduzem descobertas de outras artes, aqueles que querem exprimir um tema digno de interesse por meio de um certo estilo artístico. Se você tem alguma coisa a dizer, diga-a, escreva-a, pregue-a se quiser, mas nos deixe em paz.
Pode surpreender semelhante a priori a propósito de um cineasta que confessa ter grandes ambições, e é o autor completo de quase todos os seus filmes. Mas são justamente aqueles que o classificam de roteirista inteligente que não apreciam Capacete de Aço, ou que, em seu nome, rejeitam Renegando o Meu Sangue, que - outra possibilidade - defendem por razões totalmente gratuitas.
Da coesão. De quatorze filmes, Fuller, antigo jornalista, consagra um ao jornalismo; antigo repórter criminal, quatro ao melodrama policial; antigo soldado, cinco à guerra. Os quatro westernsaparentam-se ao gênero filme de guerra, pois é a perpétua luta contra os elementos, na qual o homem reconhece sua dignidade, que define a vida do pioneiro do século passado, luta esta prolongada em nossa época pela vida do soldado: é por isso que “a vida civil não me interessa” (Baionetas Caladas).
Fuller acima da política
Pelo seu não-conformismo, Renegando o Meu Sangue bate todos os recordes: no dia seguinte à derrota, O’Meara, soldado sulista, vai de encontro aos Sioux para lutar contra o jugo nortista. Em parte convencido pelo capitão Clarke, o yankee liberal, que lhe mostra a inanidade de seu ódio, e instruído pelo infeliz exemplo do tenente Driscoll, o yankee fascista, ele retornará à sua pátria. Em julho de 1956, no New York Times, o próprio Fuller precisou o sentido da fábula, que explicaria as dificuldades do regime americano contemporâneo: os adversários políticos do governo, em qualquer época, buscam maturar seu ressentimento, aliando-se aos inimigos de seus países. Há aí várias interpretações possíveis, e Fuller deixa subentendido que a aliança com os Índios de então corresponde à aliança, a respeito da questão do Sul, com os elementos negros mais violentos. Contrariamente ao que se possa dizer de Fuller, não existe nele nenhum maniqueísmo, ainda menos que em Brooks, já que aqui encontramos dois tipos de Nortistas, dois tipos de Sulistas, e ainda quatro tipos de Indígenas. O Huma-Dimanche[1] mostrou-se perplexo diante de tal confusão: “Os Sulistas são anti-racistas, os Nortistas são racistas, os Indígenas pró-Americanos, e certos Americanos Pró-Indígenas”. Quando os renegados são obrigados a se contradizer, ou seja, a massacrarem seus concidadãos, eles dão meia-volta: “The end of this story could only be told by you”, ou, se assim preferirem, já que estamos em Julho de 1956, a vida dos Estados Unidos dependerá do voto que vocês depositarão nas urnas no próximo novembro. Eis aí, em aparência, um filme nacionalista, reacionário, nixoniano. Fuller seria então este fascista, este ultra-reacionário outrora denunciado pela imprensa comunista? Não o creio. Ele possui em demasia o dom da ambigüidade para pertencer exclusivamente a um único partido. Se o fascismo é o tema de sua obra, Fuller não se erige em juiz. É um fascismo interior que o preocupa, ao invés de suas conseqüências políticas. É por isso que os personagens de Meeker e Steiger são mais fortes que o de Michael Pate em Sangue Sobre a Terra: Brooks é excessivamente cuidadoso para ser implicado na questão, enquanto que Fuller se encontra em casa; ele fala do que conhece. E apenas o ponto de vista sobre o fascismo de alguém que fora tentado por este é digno de interesse.
Fascismo de gestos mais que de intenções. Pois não nos parece que Fuller seja exatamente um especialista em política. Se ele se proclama de extrema-direita, não seria para mascarar, sob uma fachada exterior mais convencional, um ponto de vista moral e estético pertencente a um domínio marginal pouco apreciado?
Fuller anti-comunista? Não precisamente. Pois Fuller confunde, em parte indubitavelmente por motivos comerciais, comunismo e gangsterismo, comunismo e nazismo. Ele imagina os representantes de Moscou, a respeito dos quais é completamente ignorante, a partir do que conhece, por sua própria experiência, dos nazistas e dos gângsteres. Não esqueçamos que Fuller só fala daquilo que conhece. Quando pinta o inimigo (e em Capacete de Aço, Baionetas Caladas e Tormenta Sob os Mares, ele se arranja geralmente para passar silenciosamente por esse aspecto), é um inimigo muito abstrato, extremamente convencional. Apenas o diálogo se encarrega de meter os pingos nos is, e é lamentável que Anjo do Mal e No Umbral da China nos sejam verboten[2] por um motivo tão pouco fundamentado.
A moral é uma questão de travellings. Esses pequenos detalhes não derivam em nada do modo pelo qual são expressos, muito menos de sua qualidade de expressão, que aliás os desmente com freqüência. Seria totalmente estúpido tomar este filme tão rico por uma defesa pró-Indígena ou racista, assim como seria estúpido tomar Delmer Daves por um corajoso cineasta anti-racista só porque, a cada contrato assinado, uma cláusula estipula a presença em seus filmes de relações amorosas entre seres de raças diferentes. O público inadvertido não se deu conta de nada, e é sempre o público quem tem razão.
Um cinema moderno
A câmera se desloca pela esquerda, num plano baixo de um campo de milho com admiráveis tons de amarelos intensos, recoberto de cadáveres de soldados em uniformes sujos e escuros, alinhados nas mais curiosas posições; depois se eleva para enquadrar Meeker, adormecido em sua montaria, num estado lamentável. Sobre um fundo de fumaça negra extremamente densa, destaca-se Steiger, tão sujo quanto o outro, mas vestido de camponês. Ele atira em Meeker, vasculha sua vítima, descobre comida em seus bolsos, instala-se sobre o corpo para comer o que achara; percebendo que carrega um pouco de pão também, ele o pega; acende um cigarro. Meeker começa a reclamar incomodado, Steiger se afasta um pouco para longe. Close em Steiger, que masca e fuma. Então, em imensas letras vermelhas, se inscreve em sua fronte e sobre o seu queixo o título do filme. É a primeira vez que os créditos aparecem sobre o rosto de um homem, e de um homem prestes a comer. Esta seqüência, digna de uma antologia do cinema moderno, já revela algumas das qualidades mestras do nosso cineasta.
1º O senso poético do movimento de câmera. Em muitos cineastas ambiciosos, os movimentos de câmera dependem da composição dramática. Jamais isto se dá em Fuller, onde sua gratuidade é felizmente total: é em função do poder de emoção do movimento que se ordena a cena. Assim, ao final de Capacete de Aço, é o caso deste lento deslocamento da câmera no qual, sob o fogo ardente das descargas das metralhadoras, desabam, segundo um ritmo musical, os inimigos. Baionetas Caladas formiga de longuíssimos travellings circulares de 360°, e em igual medida de closes os quais, ao espocar de rosto em rosto, são impregnados de um ritmo fascinante.
2º Um humor fundado sobre a ambigüidade. Aqui, o contraste entre o corpo de Meeker agonizante e a impassibilidade de um Steiger esfomeado. Mais adiante, num impressionante close, veremos um camponês do Sul transbordar em canções a força do seu ódio contra os Yankees. Juntemos a isso algumas reflexões picantes sobre a Constituição dos Estados Unidos. Walking Coyote confessa que não buscou se tornar chefe de sua tribo, pois a política o enoja. Indignado com a possibilidade de que o enforquem, ele exclama: “Ah! que tempos! Na minha época, isto não era assim. Hoje, não há mais moral. Os jovens massacrem os velhos, matam, embriagam-se, estupram”. Réplica que poderia muito bem figurar em Os Trapaceiros ou em qualquer filme americano sociológico, mas que colocada na boca de um Sioux de 1865 nos mata de rir. Em cada diálogo, Fuller se diverte em nos desconcertar; ele dá a impressão de esposar todos os pontos de vista, e é isto que torna seu humor sublime. Cada cena de amor (a das sobrancelhas em Casa de Bambu, a da tatuagem e da bofetada em Tormenta Sob os Mares, onde encontramos também uma admirável paródia do poliglotismo do jargão comercial) enriquece um motivo extremamente banal por meio de um texto cheio de verve e de originalidade.
3º Uma recriação da vida que não possui nada em comum com a que nos é geralmente imposta na tela do cinema. Ao invés do civilizado Brooks, é a O Atalante que devemos nos reportar. Fuller é um personagem rude: tudo o que faz é incongruente. Uma centelha de loucura o habita. Mas temos necessidade dos loucos, pois o cinema é a mais realista das artes; e na evocação da existência, os cineastas sensatos permaneceram sob a influência das tradições estabelecidas desde séculos pela literatura e pintura, coagidos a esquecer a verdade mais superficial em nome do realismo, limitado visual e temporalmente. Apenas os loucos podem aspirar a criar um dia uma obra comparável ao modelo vivo, obra esta que, aliás, jamais chegará a possuir um décimo da verdade do original. Mas ninguém pode fazer melhor. Em Fuller, vemos tudo o que os outros omitem deliberadamente de seus filmes: a desordem, a escória, o inexplicável, a barba mal aparada, e uma espécie de fascinante feiúra do rosto do homem. É um traço de genialidade ter escolhido Rod Steiger, pobre coitado atarracado, desprovido de todo prestígio, cujo chapéu achatado oculta os traços ao menor dos plongés, mas a quem uma trajetória e um porte desgraciosos conferem a própria força da vida. Poderíamos inclusive assinalar a simpatia do diretor pelos corpulentos, pelos balofos: um Gene Evans é o astro em quatro de seus filmes. E - apliquemos aqui aos personagens a famosa e truffaudiana teoria dos autores - sua estima diminui na proporção do número de quilos. Estes heróis esbeltos de rosto anguloso, John Ireland, Vincent Price, Richard Basehart, Richard Kiley, Richard Widmark não possuem o peso suficiente necessário para resistir à baixeza. É que o homem pertence à ordem da terra, e deve a ela se assemelhar, em toda a sua acre beleza.
Fuller é um primitivo - mas um primitivo inteligente, o que traz para a sua obra ressonâncias singulares -; o espetáculo do mundo físico, o espetáculo da terra é seu melhor terreno de inspiração, e se ele se vincula ao ser, é apenas na medida em que este se vincula à terra. É por isso que a mulher é com freqüência ignorada (não em A Dama de Preto, Anjo do Mal e Dragões da Violência, onde ela conserva as características do homem fulleriano; não em No Umbral da China, Tormenta Sob os Mares e igualmente Dragões da Violência, onde Fuller evoca, com um talento demencial, o contraste entre a besta e o anjo, o que dissipa todo e qualquer equívoco). É por esse motivo que o corpo do homem lhe interessa particularmente - cem vezes Fuller é inspirado pelos corpos nus dos Índios, assim como pelos corpos nus dos marinheiros em Tormenta Sob os Mares; ao sair de uma sessão de Renegando, ficamos com a impressão de nunca até então termos visto verdadeiros Índios em um western - e a parte do corpo que lhe interessa ainda mais particularmente é esta que toca constantemente o solo: sem dúvida, Fuller é um podólatra. No primeiro plano, ao encontrar-se com Walking Coyote, a câmera arranha a terra, reenquadra os pés e apenas acidentalmente retoma a visão dos rostos. E esse estilo será radicalizado a ponto de fundar o simbolismo da obra: a corrida da flecha, pivô e título do filme, é a corrida de um homem calçado de mocassins perseguindo um homem de pés descalços (membro da Infantaria, que depois de ter encontrado um certo Walking Coyote, irá se casar com uma certa Yellow Mocassin). O melhor dentre estes será aquele que possuir os pés mais sólidos. Pés ensangüentados, pés fatigados, pés rudemente eficazes, pés ágeis, pés calçados de botas, com que virtuosismo Fuller, que, aliás, teve todo o tempo disponível para estudar esta questão quando de sua viagem ao Japão, retrata diferentes estilos de maratonistas! Quem melhor do que ele para filmar os Jogos Olímpicos em Roma, no ano seguinte? As nádegas são estrelas igualmente, pois ao menos 30 segundos do filme são consagrados a um estudo minucioso do problema relativo ao conforto da sela do cavaleiro.
Uma desordem à la Vigo
Cineasta terrestre, poeta do telúrico, ele se apaixona pelo instintivo. Adora mostrar o sofrimento de uma forma ainda mais sádica que a de DeMille: amputações (mesmo uma mão deliberadamente cortada em Tormenta Sob os Mares), dolorosas extrações de balas de seu próprio corpo (Baionetas Caladas) ou de outros corpos (Renegando o Meu Sangue), com fortes perdas de sangue. Uma criança indefesa é massacrada em uma esquina da Park Row. Nem o amor despreza os prazeres do sadismo (Anjo do Mal). Antes de ser nocauteado por repetidos golpes de martelo, o Japa de Tormenta Sob os Mares lamenta não ter sido espancado com mais força, como se isso fosse uma vergonha. Festival de crueldades e orgias; Renegando o Meu Sangue se encerra com este admirável plano no qual Meeker, prestes a ser esfolado vivo, recebe a graça de uma bala no meio da testa vermelha e suada.
Mais acima citei Vigo; esta semelhança mostra-se ainda mais evidente em Anjo do Mal, Capacete de Aço e sobretudo Baionetas Caladas: sobre um roteiro extremamente cadenciado e num plano premeditado, Fuller compõe ações sem referência a uma dramaturgia pré-fabricada. Faz-se não importa o que, e é bem difícil entender o que quer que seja. As relações dos soldados entre eles, relações morais e relações no plano, onde todos os rostos estão voltados para interesses diferentes, criam um labirinto de significações. Podemos aplicar a Fuller o que Rivette escreveu de Vigo: “Ele sugere uma constante improvisação do universo, uma perpétua, tranqüila e segura criação do mundo”.
O Anti-Tati
No plano formal, pela primeira vez descobrimos esse lado Fabrice em Waterloo[3], ressaltado tão freqüente e complacentemente a propósito de operetas menores. Esse bizarro fulleriano explica seu gosto pelos cenários exóticos - seis de seus filmes se situam no Extremo Oriente -, pagodas misteriosas (Capacete de Aço), estátuas, casas e mobiliários à moda nipônica (Casa de Bambu), que possuem o mesmo relevo, o mesmo poder de vida que o metrô, os becos dos imóveis de Chicago e suas casas sobre palafitas em Anjo. E sobretudo, quando se trata de evocar a complexidade da maquinaria moderna, Fuller se torna o maior metteur en scéne do mundo. Nele, o universo artificial e o natural apresentam as mesmas características: sabe admiravelmente reproduzir o caráter denso, maciço e misterioso das armas de fogo, de um depósito de munições (No Umbral da China), de um imóvel tinindo de novo (Casa de Bambu), do mecanismo de um submarino, onde as sucessivas variações de cenários de fundos coloridos intensificam o realismo e a originalidade, de uma usina atômica (Tormenta Sob os Mares). A natureza também constitui um cenário barroco: extraordinários cantões esfumaçados de Capacete de Aço e montanhas cobertas de neve em Baionetas Caladas.
Uma exceção entre os grandes coloristas, Fuller prefere, com Joseph MacDonald[4], os tons intermediários, marrons, ocres enegrecidos, violetas pálidos, brancos sujos, cores da terra, tão autênticas quanto as do arco-íris, que evocam contudo o parque de diversões em Casa de Bambu e a plasticidade de Renegando o Meu Sangue.
Um filme feito com seus pés
Se, a cada instante, Baionetas Caladas criava uma seqüência de relações originais entre os heróis e burilava os rostos com uma arte consumada, o mesmo não acontece em Renegando o Meu Sangue, onde somente por clarões encontramos estes confrontos de seres entre seres. O’Meara e Driscoll, Crazy Wolf e O’Meara, Driscoll e Crazy Wolf, através dos sorrisos de canto da boca, prefiguram os êxtases da competição ou, por meio de olhares enraivecidos, contém a custo sua raiva, quando em seu caminho se interpõem uma mulher ou um terceiro. O gosto pela luta, pela violência cria uma cumplicidade entre os adversários, em nome da qual um salva o outro, tema de Casa de Bamburetomado inúmeras vezes aqui. Mas isto apenas constitui uma ínfima parcela do todo. Por quê?
Na Fox, Fuller era obrigado a respeitar certas formas tradicionais de decupagem e de filmagem, e de trabalhar no interior destas formas. Deve lhe ter sido duro. Enquanto que, em sua produtora de denominação shakespeareana[5], a milhares de quilômetros de Hollywood, era livre como um pássaro. O roteiro é extremamente elaborado, com suas sutis correspondências, mas o filme sofre - e se beneficia - de um desequilíbrio constante. Como Fuller adora filmar, mais que tudo, uma seqüência de cenas que lhe dão prazer, livremente, ele negligencia o resto, todas essas ligações obrigatórias: ele as escamoteia na decupagem ou na filmagem - eis a razão desses múltiplos buracos nos filmes - ou se desinteressa - e aí a direção de atores torna-se praticamente nula. Baionetas era a desordem na ordem, perfeita síntese formal da moral fulleriana do compromisso. Era sua obra-prima na medida em que a loucura só pode realmente se exprimir com um acréscimo considerável de razão. Enquanto que Renegando é o triunfo da desenvoltura, da indolência, da preguiça. Talvez nenhum cineasta tenha ido tão longe no desleixo (com exceção do pobre Josef Shaftel com The Naked Hills). Quaisquer que sejam suas negligências, não deixamos de nos fascinar pela espontaneidade implicada por elas: Baionetas é ou será logo um clássico, enquanto Renegando permanecerá um filme de cabeceira. Fuller é um amador, um desleixado, já entendemos. Mas seu filme exprime o amadorismo e a preguiça, e isso já é muito.
Se o filme não arrecadou um centavo na América, foi porque Fuller, único responsável, só mandou para a RKO uma montagem de rushes que esta cortou, a Universal recortou e a Rank cortou ainda mais. Com razão, ninguém acreditava no sucesso de um filme que Sam Fuller realizou com seus pés, como o disse graciosamente Mrs. Sarita Mann: o porquê da distribuição ter sido sabotada. Mas os cortes não parecem ter tirado grande coisa ao valor de Renegando: o filme é isento do que não falta jamais às grandes produções em série, os sempiternos raccords improvisados e ridículos.
Filmar é fácil para ele
O que mais nos importa aqui é que este animal Fuller tenha livremente perambulado pelo Arizona por cerca de cinco longas semanas - uma de suas filmagens mais longas! -, com um orçamento de quatrocentos milhões - Deus sabe o que ele pode ter feito com isso! -, e para nos oferecer o quê? Cento e cinqüenta planos, que na projeção darão duzentos, encadeados por fusões impossíveis. E que planos! Seu estilo já não possui nada de ordinário (salvo no seu primeiro ensaio, desajeitadamente clássico): é um belo estilo de um bruto! Nele, o plano americano, figura perfeita do classicismo, ou é raro ou medíocre. Quando se interessa por vários personagens ou objetos, planos gerais; se é por um ou dois, closes. Fuller é o poeta do close, que, por seu caráter elíptico, é sempre rico em surpresas (a abertura de Capacete) e que dá um relevo insólito a rostos ou fiapos de grama, objetos habituados pelo cinema comercial a pouca reverência. Mas aqui, ele se esforça ainda menos: fala-se - muito, ou age-se - muito; quando alguém diz algo de interessante, ele não está interessado em artifícios de interpretação ou em multiplicar os ângulos para desteatralizar a cena. Cark tenta colocar O’Meara no bom caminho. Longo discurso. Contracampo? Ainda espero por este. Durante no mínimo quatro ou cinco minutos, assistimos aos dois, sentados imóveis um ao lado do outro, dando adeus ao A.B.C. idhecal[6].
Essa desenvoltura irrita, mas quantas riquezas surgem dali! É errado dizer que Fuller é inspirado, uma vez que isto pressuporia a possibilidade de que Fuller não fosse inspirado, quando na realidade filma ativamente. Instintivo, cineasta-nato, filmar é fácil para ele; basta-lhe permanecer idêntico a si mesmo a cada instante - o que poderíamos dizer a propósito de um Ray menor como Quem Foi Jesse James?. Seus esboços são insólitos, e mais fortes e reveladores que uma sólida construção. Ele pode se permitir a mistura de estilos: há de tudo em Fuller, um mundo neste deserto vivo, com seus bosques de árvores esféricas, até o delírio de O’Meara, perdido na fumaça, destas traquinices plásticas à la Eisenstein à composição rigorosa e fordiana dos planos mais gerais do ataque ao forte. Descobriríamos também Fritz Lang em Casa de Bambu, na organização geométrica da cena do assalto ou naquela da partida de bilhar, ou ainda em Anjo do Mal (a morte de Moe). De quê importa! Por uma espécie de homogeneidade poética, tudo isto permanece sempre Fuller, com sua força do instantâneo e do inacabado.
Marlowe e Shakespeare
Aceitamos com mais facilidade a cena - que para a reflexão possui valor simbólico - na qual um jovem Índio mudo vê-se preso na areia movediça e é salvo por um soldado nortista que, irritado com os acordes sincopados emitidos pelo jovem Índio através de uma gaita, salva-o ao preço de sua própria vida, precisamente por esta não ser integrada ao filme: assim as intenções são constantemente corrigidas pela mise en scène. Fuller, que parecia tão fiel às suas belas idéias a respeito da América e sobre a beleza da vida democrática, se contradiz a cada imagem: é evidente que os costumes dos Sioux lhe inspiram e agradam infinitamente mais que a perspectiva da vida tranqüila ao pé do fogo, que souberam tão magnificamente cantar um Brooks e um Hawks, como bem testemunham as múltiplas platitudes da mise en scène, neste sentido mise en scène de crítico, de político e de moralista.
É assim que, ao fim e ao cabo, Fuller segue no itinerário inverso ao de Welles, e pode-se dizer que há entre eles uma diferença - que se inscreve igualmente no domínio dos valores - da mesma ordem que aquela entre Marlowe e Shakespeare, com todas as conseqüências subentendidas por esta.
Embora a princípio sempre tenha negado isso, Welles tentou, através das diferentes formas de sua arte (que o revelam ao mesmo tempo como romântico e civilizado) produzir a síntese de suas aspirações físicas e morais; ao passo que Fuller, Faustiano em princípio e Prometéico de fato, embora consciente da necessidade de tal síntese e ativamente procurando por ela, é mais cedo ou mais tarde traído, quando totalmente entregue a si mesmo e não podendo portanto ser redimido pela benéfica intervenção de influências exteriores, devido à própria intransigência nas profundezas de seu caráter.
Notas:
[1] Huma-Dimanche: Humanité-Dimanche, revista francesa de orientação comunista [n.d.t.].
[2] Anjo do Mal foi banido na França por sua representação dos Comunistas, e No Umbral da China, que se passa na Guerra Vietnamita, por sua representação dos franceses; Proibido (1958) ainda não tinha sido visto na França. Quando Anjo do Mal foi finalmente liberado na França, em 1961, foi numa versão dublada chamada Le port de la drogue (literalmente O Porto da Droga) na qual toda história referente ao roubo de segredos de Estado Americanos por Comunistas tinha sido transformada em uma trama sobre o tráfico de drogas - uma alteração cuja facilidade com que se realizou foi tomada para validar o ponto de vista de Moullet sobre a representação ‘abstrata’ do inimigo. Anjo do Mal foi criticado por Moullet em Cahiers du Cinéma nº 121, Julho de 1961, e Proibido em Cahiers du Cinéma nº 108, Junho de 1960 [n.d.t.].
[3] Fabricio Del Dongo, personagem da obra-prima de Sthendal, A Cartuxa de Parma. Fabricio, jovem romântico, cheio de entusiasmo por Napoleão, vai por conta própria para Waterloo lutar como voluntário em seus regimentos. O episódio é narrado de forma irônica; Fabricio passa mais tempo esperando pela ação do que realmente participando nesta, e quando ele de fato luta pela sua vida é em meio à retirada Francesa [n.d.t.].
[4] Joseph MacDonald. 1906-1968. Fotógrafo que trabalhou com Fuller em Anjo do Mal, 1953, e em cores em Tormenta Sob os Mares, 1954, e Casa de Bambu, 1955; MacDonald também era bem conhecido por Moullet e pelo restante dos Cahiers por seu trabalho com Nicholas Ray em Delírio de Loucura, 1956, e Quem Foi Jesse James?, 1957 [n.d.t.].
[5] A companhia produtora de Fuller chamava-se Globe Entreprises, e produziu Renegando o Meu Sangue e Proibido para a RKO; No Umbral da China e Dragões da Violência para a Fox; O Quimono Escarlate e A Lei dos Marginais para a Columbia.
[6] Regras ditadas pelo Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, comumente designado IDHEC [n.d.t.].
(Cahiers du Cinéma nº 93, março 1959, pp. 11-19. Republicado na compilação Cahiers du Cinéma: The 1950s - Neo-Realism, Hollywood, New Wave, editada por Jim Hillier, B.F.I., 1985, pp. 145-155. Traduzido por Luiz Soares Júnior e extraído de focorevistadecinema.com.br)
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