Não conheço muitos filmes realmente bons, de fato, mas por que haveria muitos?
Depois de milênios, quantos livros ou quadros ao cabo de uma vida dedicada, pacientemente ou apaixonadamente, às obras-primas recebidas, quantos permanecem ainda que não ousamos contestar? Quantos vocês ainda retêm?
O cinema está com cinqüenta anos. Não falo da necessidade de pensá-lo em seu contexto histórico, refiro-me à evolução de sua técnica, a maturação de seus instrumentos. Já se disse praticamente tudo sobre essa singularidade do cinema de depender de substâncias imparciais como o vidro, que faz dele, mais que todas, a arte do mundo e a arte dos homens, a arte do verdadeiro. O que me importa destacar é unicamente a brevidade do tempo em que essas obras-primas, sem a espera das quais não iríamos ao cinema, puderam nascer. Tenhamos em conta, portanto, a raridade dessas obras-primas; para o cinema, simples questão de estatística. Há também a cegueira dos homens. Há, enfim, esse fato paradoxal de que as obras-primas se escondem. Digamos que elas são pudicas. Isso torna, evidentemente, o papel da crítica ilusório; tudo não passa de uma função. O que resta é uma exigência maior ou menor. Exigência do criador, exigência do espectador, ou do ouvinte, do leitor etc. O que resta são os homens. O cinema é a arte do verdadeiro. A questão deveria ser então: como se forma, ao contato com as obras, uma exigência de obra-prima na consciência de um honesto homem.
Lembro de um tempo, não tão distante, em que podia ver sem tédio os filmes de um bando de gente. Será que ruborizei ao dizer isso? Certamente que não, não há realmente de quê. Leio ainda, lerei provavelmente sempre “Le Mariage de Chiffon” e os romances da Série Noire. No quadro do filme policial, Alfred se defende como um outro. Assim como Clair na comédia ligeira; durante muito tempo, é de todo justo que ele tenha se ancorado na metafísica. Não lhe reprovemos nada também; no sábado à noite, depois do trabalho, para as almas de um certo frescor, cai bem a Ópera-Cômica. Então o quê? Então que agora, Alfred e René Clair me entediam, sem falar de outros...
O cinema é a arte do verdadeiro. O que me entedia no cinema é uma vida caricaturada, deformada, estagnante, homens que não têm alma, um mundo que não reconheço. O único belo é o verdadeiro, só se pode amar o verdadeiro. Adianto que entendo isso de encontro ao sentido em que o entendia Boileau, em que o entendeu o Grande Século; não falo de realismo, seja ele neo-realismo ou só realismo; não falo de De Sica, nem de sordidez ou de miserabilismo. Eu falo do Homem, é justamente isso que faz o artista. Desprezo contos de fada, pantominas, tagarelices mais ou menos engraçadas de um metteur en scène indiscreto, essas intrigas, mais ou menos retorcidas, que não exploram senão as curvas do cérebro de seu inventor. Interesso-me pelos homens e pelas mulheres, por conseguinte me interesso por mim mesmo. Não me sinto tocado senão quando vejo a alma de um homem, ou quando, sem ornamentos nem estardalhaços, alguém se dirige à minha.
Crê-se muito em um aparelho de obras-primas. Engana-se: as obras-primas estão sempre nuas. É à nudez dos homens que elas mais se assemelham. Daí que se as vê tão mal, o homem vestido representando a arte da mentira. Em qualquer uma das obras que reconheço no cinema, a beleza nasce do contraste entre uma mentira que chega à minha orelha e a verdade que meus olhos vêem. Pessoas nuas sob suas palavras. Um olhar. Uma alma.
O metteur en sène pode mentir, assim como os homens que ele descobre; a câmera não pode. Recíproca: a partir do momento em que ele pode ver, sem deformá-los, o homem ou a mulher que estão diante da câmera, não há mais maus atores, esses maus atores caros aos críticos vindos do teatro; não há mais maus filmes. Há maus metteurs en scènes, pessoas indignas de lançar sobre a vida esse olhar da câmera, inapreciável porque exato.
Exato, eu o disse, ele nem sempre foi. Houve um tempo em que ele traía o silêncio mesmo, não podendo apreender essas grandes fontes de harmonias e de conflitos que são as cores do mundo. Então, ele brutalizava o preto e o branco, para suplantar sua enfermidade. Assim os homens, impotentes para apreender o mundo, inventaram o bem e o mal; é um dos sentidos possíveis da expressão: partir a pêra em dois.
Mas, sobretudo, durante tempo demais, esse olhar foi surdo (“O olho escuta”, diz Claudel). Os homens falam, o mundo faz um certo ruído. Estava na irrefutável lógica do olho da câmera não mais estar “condenado ao silêncio”.
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Naturalmente, é preciso não exagerar. Na história do cinema (insisto na palavra “história”. A história do cinema não é mais que o cinema da mesma forma que a História da França não é mais que a França. A França é um sorriso de minha professora primária, a praia onde eu estava em junho, um verso de Ronsard sobre a primavera, um outro de Saint-John Perse sobre pássaros exóticos), na história do cinema conheço alguns belos silêncios. A esses, só posso reprovar que sejam silêncios ilógicos. Os silêncios dos homens são lógicos.
Esses silêncios que se dão a despeito dos homens, não estou certo de conhecê-los. Eles estão, totalmente ao acaso, em Murnau, em Griffith. São rostos crucificados, uma mão, olhos em que não se penetra, mas que já refletem; é um exército de homens enfileirados que se estende sobre a planície (Eisenstein), alguns momentos de repouso, de contemplação do mundo, abertos à força na sombra obrigatória da tela, conquistados por um homem suficientemente grande para ver com olhos de cego. Então, no espaço de um instante, corpos estão nus ao sol, lábios se tocam enquanto caem as flores leves de uma macieira, uma mulher sorri, o rosto do ator encontra o rosto do homem.
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O que faz com que isso não nos baste? Acontece que um belo dia alguma coisa se mexe na tela. Não é mais um plano estático, uma imagem possivelmente bela, porém embalsamada. É um gesto.
Ainda há pouco vimos na Cinemateca um antigo Dwan, um antigo Frank Lloyd, um antigo Vidor. O que descobrimos é que o cinema não é a arte do movimento – o movimento é sua técnica –, é a arte do movimento verdadeiro. O que o cinema redescobriu foram os gestos dos homens. Não esses gestos arbitrários, exagerados ou esquematizados que fazem logicamente parte das artes tidas como artes do falso: o teatro, a dança. Eu falo dos gestos dos homens, aqueles que eles fazem quando amam e quando sofrem, quando comem, quando abrem uma janela. Alguma coisa se mexeu na tela, e eu reconheci um gesto. Um homem preenche com seu corpo a brecha aberta na argila de uma barragem. Se eu tivesse o entusiasmo suficiente, poderia inventar esse gesto, eu o reconheço, eu me acho aproximado do homem.
Após tantas caretas, hediondas deformações impostas ao corpo do homem, eis que descobrimos seus gestos autênticos, gestos que não mentem. Melhores que as palavras, os gestos exprimem os homens. Como silêncios, há gestos nus.
Tudo o que vimos antes era um campo coberto de mortos, e ainda, reconstituído em estúdio, um cemitério de figuras de cera. Não podemos mais amar essas marionetes, esses cadáveres. O cinema é a arte do verdadeiro. Descobrimos a grande regra: só deve existir na tela aquilo que pode existir no mundo dos homens; quero dizer, sem temer de novo os mal-entendidos, no mundo de todos os dias.
Insistamos sobre esses gestos nus. “Contra o vidro da tela se bate esse peixe nostálgico”, diz muito perto disso Drieu La Rochelle. Penso que a arte do cinema está muito bem delimitada por essa imagem do peixe atrás do vidro do aquário: não podemos tocá-lo, mas ele se mexe, ele vive, ele não mente.
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O que ocorre então que faz com que isso não nos baste? Ocorre que o homem tem uma alma, e que nós vimos apenas seu corpo. Pode ser magnífico o corpo de um homem, mas nós queremos saber o que faz ele se mexer. Queremos ver seu amor, ou seus ódios.
Porquanto esses sentimentos se prolongam no fundo do homem, é fácil para o metteur en scène ou para o espectador se enganar sobre os gestos que os exprimem. A simplicidade que eles exigem restauram os atores em sua dignidade humana. De toda evidência, certos envelopes físicos, quer se chamem Victor Mature ou Giulietta Masina, jamais conterão alma.
É a isso que se pode enganar, ao menos por um tempo, a uma certa exacerbação de gestos, que se reconhece enfim como gratuita, injustificada, mas que antes, tão-somente pelo efeito de choque, garante a adesão. Assim pudemos crer algum tempo que Orson Welles ou Robert Aldrich falavam de homens. Eles talvez falassem, mas por símbolos, e o cinema é a arte do verdadeiro.
Por outro lado, o que tomamos freqüentemente por alma é a moral, que não remete senão à inteligência e dirige o mundo que ela pretende apreender. Essa confusão permitiu a Rossellini ocupar durante muito tempo um lugar, ou ainda portar um título ao qual não tinha direito.
Quem nos mostrou os homens?
Há alguns anos, vi um filme cujo título era Whirlpool. É preciso dizer, nada descobri nesse filme. Foi isso, aliás, que me desconcertou; encontra-se sempre alguma coisa. Era o primeiro filme que eu me sentia incapaz de nomear. Nenhum sentido, nenhuma referência. Um homem, uma mulher; eles se mexiam, e seus gestos não exprimiam nada. Eles falavam e as palavras não significavam nada, o filme era pleno de silêncios. Atrás de um vidro fiel, vi silêncios se mexerem; eu estava impelido ao vidro como se costuma se impelir ao que é transparente, ao que é evidente. O filme era assinado por Preminger.
Por obstinação crítica, vi um ou dois anos depois um filme do mesmo metteur en scène, que se chamava Angel Face. Através dos mesmos silêncios, dos mesmos movimentos aparentemente soltos, percebi alguma coisa. No plano final, um automóvel que atravessava a tela penetrou em mim. O vidro se havia rompido. O que eu tinha pressentido, depois reconhecido no momento em que ela se liberava, era uma tensão vertiginosa, quase imobilizada ao limite dela mesma. Tensão entre uma mulher e um homem, ou ainda, em uma mulher por causa de um homem. Durante um frágil segundo, em seus olhos, vi a alma de Jean Simmons. Creio que ali estremeci. Pela primeira vez sobre a tela, descobri não mais corpos, nem gestos, mas seres.
Não digo que Whirlpool, Angel Face, Laura, The Man with the Golden Arm, Saint Joan sejam sem defeitos; há buracos, buracos enormes, buracos inadmissíveis. Não falo de obras-primas, falo de momentos de graça, de pressentimento da obra-prima. Se quisermos, falo de Jean Simmons e de Gene Tierney, de Kim Novak, de Jean Seberg.
Falei de alma, excessivamente, de nudez, de beleza, de verdade. É que, para mim, essas palavras são praticamente sinônimas. Pode-se partir do corpo, ou chegar nele; desde que se vá tão longe, chega-se à verdade, e para mim, a verdade do homem é bela. O que me enerva, assim como a outros, é um passado de civilização, habituado a fardar, a vestir, a negar a nudez. Recentemente, essa espécie de má fé me impediu de ver o admirável Tigre de Bengala; fiquei nos ornamentos, no material da obra-prima. Desde Sepulcro Indiano, eu devia estar engajado na engrenagem irrefutável de um encontro entre seres, fascinado por essa simplicidade desesperadora que é o signo, precisamente, da nudez, quero dizer, da verdade.
Falei de alma, excessivamente. Eu não pensava em Bresson. Pensava em um dorso nu, que está em Mizoguchi; em um beijo em que os dentes da mulher mordem o lábio do homem, que deve estar em Ludwig; em um sorriso retido por pontas de fogo: Bella Darvi em O Egípcio; naqueles que crêem questionar Deus, ou o amor, e que não interrogam senão eles mesmos, cada homem o faz ao menos uma vez.
Vemos no que eu me contradisse: ao distinguir certos gestos, certos olhares, por sua beleza singular; isso deveria reduzi-los, ao mais próximo da verdade, a apenas alguns momentos. Eu chamaria então de obra-prima o filme que seria uma seqüência de gestos contendo cada um a totalidade de um homem.
Um dia, sobre a tela, pela primeira vez, eu vi soluçar um homem. Decerto, eu não falo dessas brumas que percorrem de tempos em tempos os olhos virginais de Gary Cooper. Falo de soluços de homem, uma coisa bastante rara. O filme se chamava The Prowler. Eu não podia falar dele, pois as palavras o trairiam, como trairiam The Big Night. O que eu sei é que ele não esquematizava, como Lang, não se dispersava, como Preminger, não se deixava corromper, como Fuller. O que ele mostrava, e sua franqueza, sua honestidade desconcertava como um soco, era um ser maior que os heróis, mais belo que os deuses; era um homem. O cinema é a arte do verdadeiro; Joseph Losey é o primeiro artista.
Jacques Serguine
P.S: Losey, Lang, Preminger, Walsh, a carreira de ás do Mac Mahon. Eu sou então “Mac Mahoniano”. Somos “Mac Mahonianos” sem saber, primeira proposição e seu corolário: todo amador de cinema é um “Mac Mahoniano” que se ignora. Eu o sou, porque eu vi The Lawless e M (Losey), os filmes de Lang, A Ladra no Mac Mahon, e não em outro lugar. E se eu o sou, eu o permaneço.
O que é o “Mac Mahon” objetivamente? É uma sala de cinema situada na avenida Mac-Mahon, perto da Place de l’Étoile. Ela constantemente exibiu versões originais, e as melhores visíveis em Paris. Em 16 de março de 1960, tornada sala de exclusividade, ela começou sua nova carreira com a projeção de Moonfleet, um Fritz Lang de 1954, que ninguém até então tinha podido ver, a não ser em províncias privadas ou projeções restritas.
Eis portanto um “Mac Mahon” objetivo. Mas eu já disse em algum lugar que a objetividade me entedia. Prefiro também meu sentimento pessoal do Mac Mahon. Acontece, com efeito, que o Mac Mahon do qual eu falo nunca foi o “Mac Mahon”, mas essa sala arbitrária, e tornada, como se vê, legendária, onde descobri a maioria dos filmes que amo, seja em projeção pública, seja em uma dessas projeções privadas que devemos à exigência eclética de seu diretor, Sr. Emile Villion.
Em nome dos metteurs en scène que cito, dispensam-se adjetivos prestigiosos. Seus filmes se acham carregados junto àqueles que os viram ou os virão sem maiores precondições que eu, quero dizer sem nenhuma outra precondição além daquela de uma certa qualidade, uma certa beleza, uma certa grandeza. Somente falo daquilo que amo; para mim, é uma questão de honestidade. E aliás, face ao que não conheço ainda, que sejam os filmes ou os espectadores de filmes, parece-me que é também a única atitude possível. Ao não negá-los de partida, estou pronto para admiti-los.
Aquilo de que o “Mac Mahon” parece ser o lugar geométrico não é o cinema mundial, mas uma idéia de cinema. Vê-se que isso não engaja nada, a não ser talvez a amizade. A amizade pode não ser nada além de uma exigência partilhada. Donde o que se segue é que o “Mac Mahon” não é de jeito nenhum uma escola estreitada em funil, mas bem antes um ponto de partida, esse funil ao avesso.
O “Mac Mahon”, em torno de 1954, era o encontro fortuito em uma avenida perto da l’Etoile de pessoas de quem nunca gostaria e de outras que iria amar; de filmes que nós conheceríamos, ou ainda que aguardaríamos, ou que descobriríamos, e que iríamos amar em conjunto.
Então, ser “Mac Mahoniano” é um novo esnobismo? Há sempre etiquetas para aquele que busca a beleza, esse outro nome da verdade. Um dia, é um honesto homem, um outro dia, é um filho de rei. Agora que o cinema existe, por que não um “Mac Mahoniano”? O nome passará, é claro, todos os nomes passam. A beleza fica.
Não me parece importante perguntar: como se pode ser Mac Mahoniano? O que importa é refletir: como se pode ser Raoul Walsh? E Fritz Lang, e Joseph Losey? Eu ainda não sei. Eu sei que eles são, e nada mais. O belo é a evidência do belo, eis o paradoxo. O “Mac Mahonismo” não é uma resposta fácil, demasiadamente fácil; é uma questão exigente. A questão, Senhores, permanece aberta. – J. S.
(Originalmente publicado em Cahiers du Cinéma nº 111, setembro de 1960. Tradução de Luiz Carlos Oliveira Jr. Publicada em http://www.contracampo.com.br/92/artloseyserguine.htm)
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