por Kiva Reardon
“Ei, Mulher Maravilha, você já
disse o que tinha a dizer. Agora senta e cala boca”. Dito por um policial
corpulento pelo meio de Haywire (A toda prova, 2009), de Steven
Soderbergh, a super-heroína ordenada a ficar quieta é Mallory, vivida por Gina
Carano. Algemada no banco de trás de um carro de polícia, sua personagem é uma
agente secreta desertora, procurando vingança após ser traída por seu chefe,
Kenneth (Ewan McGregor). Firmemente entrincheirado no gênero de
ação-espionagem, Haywire representa
muito do que a fase tardia de Soderbergh veio a encarnar: uma obra competente
de cinema de gênero, com um elenco repleto de estrelas. Deste modo, não
surpreende que o filme tenha surgido e desaparecido rapidamente das salas de
cinema, encarado como outro produto decente do sempre prolífico diretor. O que
diferencia Haywire, contudo, é
precisamente o elenco, especialmente Carano. Esta “Mulher Maravilha” e campeã
de lutas marciais leva ao filme suas habilidades do octógono e a possibilidade
de uma nova conceituação do corpo de ação feminino.
De 2009 a 2012 Soderbergh dirigiu
sete filmes, três dos quais podem ser chamados de sua trilogia não-oficial dos “filmes
do corpo”: Confissões de uma Garota de
Programa (The Girlfriend Experience,
2009), A Toda Prova (Haywire, 2011) e Magic Mike (2012). Embora repletos de estrelas, discutivelmente até
a atrofia, casting sempre foi
importante para seu trabalho – de Jennifer Lopes em Irresistível Paixão (Out of
Sight, 1998) até o farsesco alto calibre do elenco da franquia Onze Homens e um segredo (2001, 2004,
2007) –, nestes três filmes os corpos de seus protagonistas eram essenciais para
o que cada produção explorava. Mais ainda, cada um dos protagonistas
representava um corpo estranho à Hollywood adentrando seu domínio. No primeiro,
a estrela pornô Sasha Grey mostrava pouca pele para, ao invés disso, explorar a
psique de uma garota de programa de alto nível em Nova York. Seu corpo, seu sustento
na vida real, permaneceu predominantemente vestido, em uma reversão da
superexposição pela qual ficou famosa. Na parte final do tríptico, Magic Mike, Channing Tatum estrelou como
um dançarino erótico que sonha em ser carpinteiro, uma história que reflete não
apenas seu passado real como stripper, mas também sua transição de filmes de
dança para um “cinema sério”. Em cada um, o passado extra-cinematográfico das
estrelas informa a diegese e os personagens. Haywire, entretanto, continua sendo o mais ambicioso. Mais do que
qualquer outro de seus filmes (pseudo) companheiros, Haywire não depende apenas de uma ideia construída de Carano
enquanto a campeã de MMA, mas de seu próprio corpo como performance.
Postular a relevância de Haywire – e mais especificamente do
corpo de Carano – exige reconhecer como o filme é devedor da recente
popularidade do Ultimate Fighting Champion e das artes marciais mistas [Mixed Martial Arts, ou MMA]. Fundado em
1993, o UFC viu sua popularidade crescer na década seguinte com o reality show
da FX The Ultimate Fighter, que
estreou em 2005. Tomando representações cinematográficas como meio de medir a presença
cultural, já no final da década o MMA fez seu caminho para várias produções de
Hollywood: Quebrando Regras (Never Back Down, 2008), Veia de Lutador (Fighting, 2009) e Guerreiro
(Warrior, 2011). Tornou-se
canonizado, por assim dizer, com Os
Mercenários (The Expendables, 2011),
de Sylvester Stallone. A fundação moderna para filmes de ação metalinguísticos,
o elenco de Stallone intencionalmente abrangeu uma variedade de atores passados
e presentes, cujas habilidades marcaram vários períodos do gênero: Stallone e
Dolph Lundgren como os "corpos sarados" dos anos 1980, Jet Li e a
influência de Hong Kong, Jason Statham e a apropriação ocidental das artes
marciais, e Randy Couture, ex-campeão de MMA. Com Couture colocado ao lado destas
estrelas do cânone de ação, o esporte foi oficializado e cimentado como a forma
emergente de assistir corpos colidirem e combaterem em filmes de ação
contemporâneos.
A escolha de Soderbergh por
Carano no elenco explora diretamente esta popularidade crescente, com a
reviravolta do seu sexo feminino. Nisso, não há nada de novo: Duplo Impacto (Double Impact, 1991) teve a lutadora Corinna Everson, mas seu papel
no filme não passou de uma cota, um tokenismo.
Superficialmente, Haywire poderia se
encaixar nesse molde, assim como no gênero pós-feminista de "gatas em ação",
visto com Anne Parillaud em Nikita -
Criada Para Matar (La Femme Nikita,
1990), Linda Hamilton em Exterminador do
Futuro 2 (Terminator 2, 1991) ou
Angelina Jolie em Lara Croft: Tomb Raider
(2001). Nos dois primeiros filmes, as tramas se baseiam em narrativas de
transformação a la Pigmaleão e, no último, no apelo sexual construído de sua estrela.
O personagem de Carano, no entanto, evita isso. Devido ao seu status de outsider como lutadora de MMA e não como
atriz profissional, Carano chegou a Haywire
como um corpo totalmente formado e funcional.
Na sequência de abertura, Mallory
derruba Aaron (interpretado pelo corpulento e sem-pescoço Tatum) no chão, estraçalhando
um bule de café na sua cabeça enquanto lutam. Desde o começo, ela é todo corpo.
Correndo, dando socos e chutando, abrindo caminho pelo filme, tudo se torna
secundário às habilidades de Mallory. Acima de tudo, a fala. Como Soderbergh
achou sua voz muito dentro do estereótipo de feminino, ela foi dublada na
pós-produção. Aparentemente, Carano não teve um papel com falas. Embora isso
possa ser entendido como silenciamento, Carano nunca fica realmente quieta na
tela. Com presença física em praticamente todas as cenas, ela se comunica, por
assim dizer, através de uma performance corporal pura. O corpo de Mallory
impulsiona o filme (e a narrativa) adiante, enquanto a câmera parece lutar para
segui-la. Em uma cena, ela persegue um homem pelas ruas de Barcelona, correndo
decididamente em direção à câmera, que rapidamente corta para trás dela, como
se a força do seu corpo lançado em sua direção fosse demais para suportar. A
câmera quase não consegue acompanhar.
A pura fisicalidade é o que
diferencia Mallory dos tipos de Lara Crofts e corpo feminino de histórias em quadrinhos.
O paradoxo de "chutar traseiros" enquanto ainda cumpre as concepções
masculinas idealizadas e objetificadas da forma feminina – exemplo: Sucker Punch de Zack Snyder (2011) –, a gata
de ação depende de seios e nádegas apertados em elastano. Mallory, contudo,
permanece puramente funcional. Haywire
aborda isso diretamente quando ela é enviada para uma missão disfarçada de
esposa de outro agente. "Você quer que eu seja um colírio?" ela pergunta
a Kenneth. “Você quer que eu use um vestido? Eu nem sei fazer funcionar isso."
Crucialmente, é durante esta missão em que ela é obrigada a usar o vestido em que
é traída. Forçada ao papel típico de acessório de braço de um homem, é aqui onde
Mallory se torna mais vulnerável; um movimento que claramente rejeita a rotina
da donzela lutando em um vestido. Além disso, o clímax de Haywire não vê Mallory usando um traje colante, como costuma
acontecer. Em vez disso, ela veste roupas largas pretas, pintura facial no
estilo black-ops da Marinha e prende totalmente o cabelo (o que lembra o look de
octógono de Carano).
O filme, no entanto, não é perfeito. No coração trata-se de uma história de pai e filha, e o clímax da missão de Mallory depende de resgatar seu pai (Bill Paxton), mentor e confidente. Mallory não tem uma rede feminina – nenhuma Pantera [Charlie’s Angels], para o bem ou para o mal – o que pode ser interpretado como uma posição de lobo solitário anormal. No entanto, esse personagem também é um clássico da ação: Stallone faz isso sozinho em Rambo: Programado para Matar (First Blood, 1982), Arnold Schwarzenegger em Comando para Matar (Commando, 1985), mais recentemente Jason Bourne na trilogia em seu nome (2002, 2004, 2007) e a lista continua. E muito em comum com esses homens, sua performance é baseada no corpo, embora não no sentido convencional por se tratar da forma feminina. Ela não tira a roupa nem dança, nem seu "corpo sarado" é fragmentado em seios e nádegas, entidades sexualizadas separadas de suas pernas de chutar ou braços de socar. Carano estrela como um corpo inteiro unificado e otimizado para funcionar. Mesmo que tenham dito a ela para calar a boca, ela nunca fica em silêncio. O corpo fala, sempre.
"Haywire: Body talk", retirado de "Cléo: A Journal of Film and Feminism - vol. 1, issue 1" (Spring 2013), disponível em http://cleojournal.com/2013/04/01/haywires-body-talk/. Tradução de Giovanni Comodo.
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