quarta-feira, 13 de maio de 2020

A política está atrapalhando a nossa avaliação de quais filmes são realmente bons?

por Jessa Crispin

Constranger o público a ver certos filmes transfere a culpa por falta de narrativas diversas para a audiência, ao invés do sistema viciado de produção do cinema




Se o cinema tivesse o impacto que seus críticos insistem que sim, em 2019 Coringa (Joker, 2019) teria dado início a uma revolução incel e Adoráveis Mulheres (Little Woman, 2019) teria acabado com a misoginia.

Não foi um grande ano para o cinema, com mesmo nossos maiores realizadores lançando esforços apenas medianos. Mas se você ouvir os críticos e influenciadores oficiais online, você estaria convencido que foi um ano muito importante para o cinema. Os filmes-evento assumiram uma influência desproporcional, e os filmes que apenas tentaram ser filmes – divertidos, instigantes ou agradáveis – foram ou denunciados ou vistos como perigosos ou culturalmente importantes. As apostas deste ano para todos os filmes pareciam impossivelmente altas.

Este foi o ano em que os departamentos de polícia emitiram avisos sobre a possibilidade de tiroteios em massa nas exibições da noite de abertura de Coringa, afinal. Foi uma histeria que cresceu online depois que críticos de cinema viram o filme em festivais e começaram a reclamar que de alguma forma ele "glamourizava" ou simpatizava com incels violentos. (Eu sempre pensei que uma das melhores coisas que o cinema era capaz de fazer era simpatizar com os marginalizados e incompreendidos, mas acho que este ponto de vista está fora de moda agora.)

Este também foi o ano em que meios de comunicação como o New York Times e a Vanity Fair insistiram que Adoráveis Mulheres era uma sessão obrigatória para provar que você não é um misógino. Até a GQ publicou uma matéria que indicava a importância de os homens “apoiarem as mulheres” ao assistir a este filme sobre algumas mulheres brancas tendo dificuldades durante a Guerra Civil. A suposta falta de interesse do público masculino por Adoráveis Mulheres se tornou a narrativa dominante sobre o filme, implicando que ela revela a (suposta) falta de interesse que os homens têm, nas palavras do New York Times, em "ver as mulheres como seres humanos".

Não é possível que Adoráveis Mulheres seja apenas um filme ruim – embora o seja. Adoráveis Mulheres é um daqueles livros que foi adaptado à exaustão, com cinco versões anteriores no cinema, além de uma minissérie, além de uma produção teatral, além de uma versão em anime, e assim por diante.

O livro em si é sentimental e frouxo, embora interessante na maneira como retrata dificuldades e privações. Sua mediocridade torna misteriosa seu contínuo protagonismo cultural. De alguma forma, a versão adaptada e dirigida por Greta Gerwig reforça o sentimentalismo e retira a história de qualquer coisa de interesse. Na sua versão, a pobreza parece glamorosa, lutar por ideais significa apenas ter as opiniões certas e não há consequências para as ações de ninguém. A certa altura, deslizei tanto para baixo na minha cadeira para evitar olhar para a tela e as coisas incrivelmente dolorosas que estavam acontecendo – dolorosas para mim, não para os personagens – que eu estava quase sentada no chão.


Mas se você insiste que um filme é importante, você não precisa realmente lidar se é bom ou não. Você pode envergonhar pessoas para que o vejam como um posicionamento político, ao invés de um entretenimento ou seleção cultural. O mesmo acontece com a pecha de "perigoso" ou "perturbador", que passou a ser usada com tudo, desde o Coringa até o mais recente de Quentin Tarantino, Era uma vez... em Hollywood (Once upon a time... in Hollywood, 2019), filme rebaixado por tudo, desde não dar à sua co-estrela feminina Margot Robbie falas o suficiente até sua violência gratuita contra uma mulher que estava ali para assassinar outras pessoas, passando pelas filmagens dos pés de mulheres (fetiches agora são perigosos, eu acho). Se um crítico não gosta de um filme, rotulá-lo como perigoso – e implicar que você pode ser morto se for vê-lo – constitui uma tentativa de manter as pessoas afastadas.

Parte dessa linguagem é o resultado da nossa cultura de comentários optar por ver tudo através de uma lente política. Deve haver uma razão política para Tarantino dar tão poucas falas a uma atriz em seu último filme, e essa razão política deve ser que ele não respeita ou não tem interesse pelas mulheres. Deve haver uma razão política para este filme não ter o número correto de papéis para atores não-brancos, e essa razão deve ser o diretor ser um racista. Até a diretora do terrível reboot de As Panteras (Charlie's Angels, 2019) tentou culpar seu fracasso na falta de interesse do público em "histórias de mulheres". Você sabe, apenas as histórias totalmente normais e relacionáveis de mulheres comuns que lutam contra o crime em shorts muito curtos.

Mas uma outra razão para esta loucura retórica é a perda da autoridade da crítica cultural média com a plateia das salas de cinema. Sempre houve uma divisão entre o que a crítica cultural celebra e o que o público realmente quer ver. "Este filme turco de três horas e meia sobre a luta de um menino e seu pai é uma comovente exploração de divisões geracionais em um mundo em mudanças bruscas..." “eu não sei, alguma coisa explode?” Mas esta divisão parece estar crescendo, sem praticamente nenhum crítico vivo capaz de desempenhar o tipo de poder de figuras como Siskel e Ebert tinham para conseguir levar traseiros para os assentos das salas, mesmo com os chamados filmes difíceis, legendados ou de arte. Não apenas em fazer uma plateia comparecer, mas em incentivar uma demanda que seja boa o bastante para distribuidores aumentarem o número de salas para um filme como My Dinner with Andre (1981) poder ser exibido.

Hoje ninguém realmente se importa com o que um freelancer aleatório no Vulture realmente pensa sobre um filme, então críticos competem usando a linguagem mais hiperbólica possível para atrair atenção. “Adam Sandler está como um Deus” em Joias Brutas (2019), apita um crítico que eu nunca ouvi falar em ScreenCrush. “O equivalente cinematográfico de misturar cocaína com ácido”. "O filme mais emocionante do ano". E, é claro, existem várias abordagens políticas, nos dizendo como é importante ver este filme para que possamos entender melhor algo sobre o capitalismo. E sabe de uma coisa? Foi bem bom. Adam Sandler estava bem bom nele. Fiquei entediada durante a maior parte do tempo e zangada por ter tido grandes expectativas para este filme com todos os elogios da crítica, mas sim, acho que foi bem bom, considerando todas as coisas. Nada além disso. Outros filmes que foram chamados de transformadores e perfeitos e tão importantes este ano incluíram Nós (Us, 2019), Midsommar (2019) e a série Watchmen da HBO, todos com diferenças significativas entre as pontuações da crítica e do público no Rotten Tomatoes.

Mas constranger membros do público a ver filmes dizendo que é politicamente importante ou ao jurar que esta é a mais intensa e perfeita experiência cinematográfica que eles jamais terão não funciona de verdade, apenas ajuda a derreter a autoridade destes críticos. E enquanto há ramificações políticas do nosso entretenimento – quais histórias são contadas e quais não são é uma questão política – a questão não está com a plateia mas com um sistema viciado de produção e distribuição de filmes, o desaparecimento de uma proporção significativa da História do cinema dos serviços de streaming e uma falta de bons escritos críticos que ajudem a aprofundar o engajamento intelectual de um membro da plateia com o que estão assistindo.

"Moral não vende hoje em dia", diz um editor homem, velho e malvado à pobre Jo March em Adoráveis Mulheres, enquanto menospreza seu conto antes de publicá-lo. Eu gostaria que os críticos de cinema entendessem que isso ainda é verdade. No ano anterior, em 2018, era Pantera Negra que todos “tínhamos que ver”, por razões políticas, é claro. Seu sucesso foi anunciado como uma vitória política, não apenas para seu elenco e diretor negros, mas para toda a humanidade.

A Arábia Saudita também exibiu Pantera Negra em seus cinemas – o primeiro filme lançado comercialmente a ser exibido em quase 35 anos neste regime autocrático e repressivo. E isso também é uma vitória política. Para o regime autocrático e repressivo, é claro. Por mais revolucionário que Pantera Negra tenha sido aclamado como foi nos Estados Unidos, é no fim das contas uma história de uma monarquia triunfando sobre o desafio apresentado por uma força rebelde. Acontece que isso faz uma boa propaganda para a monarquia saudita. Oh, a ironia.


“Is politics getting in the way of assessing which films are actually good?” foi publicado em 13/01/2020, em The Guardian. Disponível em https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/jan/13/little-women-joker-stop-seeing-important-mediocre-films. Tradução de Giovanni Comodo.

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