por Vera Lúcia de Oliveira e Silva
Em artigo publicado pela Cahiers du Cinéma[1], João César
Monteiro alude a fazer filmes
que invocam em vão o “gai savoir” dos
elfos para tentarmos ficar parecidos com eles. Tal alusão aparece, no artigo, correlativa
a um pergunta: Qual será o nosso destino? Quem somos nós, tão idênticos a nós próprios
e a coisa nenhuma? A que é que se parece a nossa tão vaga e tão obscura
natureza? Para tentar responder a esta pergunta, tão candente quanto
universal, é que ele invoca o “gai savoir” dos elfos. Estamos em cheio no campo
do saber, mas não um saber qualquer.
Referindo-se
a “elfos”, Monteiro faz uma dupla inscrição daquilo que convoca, em vão, para
encontrar resposta à pergunta formulada: uma inscrição no tempo – o Medievo; outra,
no espaço – a terra dos Celtas. Ou seja: ele busca a resposta na história de
seu povo. Em vão, disse ele – e eu sublinho.
Sublinho para lembrar que ele está no caminho certo: é preciso buscar na própria
história – na própria vida – uma possível resposta à questão sobre a própria
natureza e o próprio destino. Mas é preciso buscar o próprio saber – Freud
diria, construí-lo. Caso contrário, será em vão.
Retrocedendo: Em 1969, Jean-Luc Godard fez um filme intitulado “Le gai
savoir”. Nas suas primeiras falas, os personages declaram um propósito: aprender. E o sumário da IMDB informa
(eu traduzo): Como aprendemos? O que
sabemos? Noite após noite, não muito longe do amanhecer, dois jovens, Patrícia
e Emile, encontram-se num estúdio de som para discutir aprendizagem, discurso e
o caminho para a revolução. O filme deveria ser uma versão para a TV
francesa do livro Emílio, de
Jean-Jacques Rousseau.
Emílio (ou Da Educação) é uma obra filosófica sobre
a natureza do homem,
escrita em 1762.
Aborda temas políticos e filosóficos referentes à relação do indivíduo com a sociedade, particularmente explica como o
indivíduo pode conservar sua bondade natural (Rousseau sustenta que o homem é
bom por natureza), enquanto participa de uma sociedade inevitavelmente
corrupta. No Emílio, Rousseau propõe, mediante a descrição do
homem, um sistema educativo que permita ao “homem natural” conviver com a
corrupção sem se contagiar. Rousseau acompanha o tratado de uma história
romanceada do jovem Emílio e seu tutor, para ilustrar como se deve educar o
cidadão ideal. No entanto, Emílio, que não é um guia detalhado, considera-se hoje
o primeiro tratado sobre filosofia da educação no mundo ocidental.[2]
O
texto se divide em cinco “livros”, os três primeiros dedicados à infância de
Emílio, o quarto à sua adolescência, e o quinto à educação de Sofia (a “mulher
ideal” e futura esposa de Emílio) e à vida doméstica e civil deste, incluindo sua
formação política. O Emílio foi proibido e queimado em Paris e em Genebra,
ao tempo de sua publicação, o que o converteu, rapidamente, em um dos livros
mais lidos na Europa. Durante a Revolução francesa, serviu como inspiração para
o novo sistema educativo nacional.
O
filme de Godard – consta que não chegou a ser exibido – toma distância da
“encomenda” e vai encontrar Emílio em sua
intenção pedagógica e em sua forma ensaística mais do que em seu conteúdo de
fundo – Rousseau falava de uma “coleção de reflexões e observações, sem ordem e
quase soltas”; Patrícia, no filme, fala de “um amontoado de experiências”.[3]
Se
o filme de Godard, em seu conteúdo de
fundo, não é fiel a Rousseau, ele é muito fiel a Nietzsche, no tratamento
que este dá ao saber: à necessidade de retroceder desde as imagens e os sons
até a experiência primeira que lhes dá origem. Afinal, este é um tema caro à
obra nietzschiana, cujo título Godard adota para seu filme - Le Gai Savoir (o saber alegre). Este
mesmo título ele vai reiterar em quadros do filme, em palavras manuscritas
sobre imagens de revistas em quadrinhos – alusão ao retorno à infância, para
recuperar a pureza do pecado original?
Apenas recordando, Nietzsche publicou,
em 1882, uma obra[4],
cujo título em francês é Le gai savoir.
O livro reúne reflexões do filósofo sobre “a
história do saber, a busca do conhecimento, os percalços do homem nessa busca
histórica”.[5] Num
fragmento escrito no mesmo ano, Nietzche anotara a expressão “La gaya scienza”
(em provençal), como título de uma
lista de trovadores provençais e suas canções. Na segunda edição de A
gaia ciência, em 1887, o próprio autor incluiu tal expressão como
subtítulo.
Então, rastreando em ordem cronológica, a partir da declaração feita
pelo cineasta - Silvestre é um filme sobre a aprendizagem[6]
- parece-me possível isolar entre as suas referências:
· o filme Le Gai Savoir, de Godard (1969),
· cuja referência parece ter sido Nietzsche (1882),
· embora o filme parta de um texto de Jean-Jacques Rousseau (1762).
Agora, se tomamos a declaração de que se
trata de um filme feito por alguém que
invoca o “gai savoir” dos elfos2 para responder a questões
fundadoras; como “gai savoir” é o
título atribuído, em francês, à produção de trovadores provençais – produção
esta que demarca o nascimento da poesia
européia moderna, durante o século XII – e Silvestre
é ambientado na Idade Média; e como os elfos são
criaturas místicas da mitologia nórdica e céltica - também chamados de “elfos
da luz” - que aparecem com freqüência na literatura medieval européia; e
que o saber dos elfos nos remete a um tempo mítico; então, para mim, Monteiro
está dizendo que, para chegar às origens do saber sobre quem somos nós, é preciso fazer retroceder a própria história, não
apenas até o passado, mas até um tempo que não passa – o tempo do mito.
Fato é que, qualquer que seja o conteúdo latente sob o filme ou sob as
declarações conscientes do cineasta, retrocedendo, de referência em referência,
chegamos de volta à obra prima que Silvestre
é: mostração da jornada que vai da (des)obediência à condição de espírito livre[7] -
aquele que pensa de modo diverso do que
se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou
com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os
espíritos cativos são a regra.
Aplico o aforismo a ambos – a Silvestre, o filme; e a Monteiro, seu
autor.
[1] Monteiro, J.
C. Cahiers du Cinéma nº 460, outubro
1992, retirado do catálogo "João César Monteiro",
Edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Lisboa, abril de 2005. Disponível aqui.
[3] Marchiori, D. A Gaia Ciência, Le gai savoir.1969.720p.BluRay.AVC-mfcorrea
[4] Nistzsche, F. Die fröhliche Wissenschaft. 1882. Traduzível como “o alegre saber”, “o saber feliz” ou “a alegre ciência”. Em português a obra recebeu o título A Gaia Ciência.
[5] Mioranza. C. In Nietzsche, A Gaia Ciência, Editora Lafonte Ltda, 2017
[7] Nistzsche, F. Humano, demasiado humano - um livro para espíritos livres. 1878. Aforismo 225.