segunda-feira, 23 de novembro de 2020

João César Monteiro e Silvestre

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva


Em artigo publicado pela Cahiers du Cinéma[1], João César Monteiro alude a fazer filmes que invocam em vão o “gai savoir” dos elfos para tentarmos ficar parecidos com eles. Tal alusão aparece, no artigo, correlativa a um pergunta: Qual será o nosso destino? Quem somos nós, tão idênticos a nós próprios e a coisa nenhuma? A que é que se parece a nossa tão vaga e tão obscura natureza? Para tentar responder a esta pergunta, tão candente quanto universal, é que ele invoca o “gai savoir” dos elfos. Estamos em cheio no campo do saber, mas não um saber qualquer.

Referindo-se a “elfos”, Monteiro faz uma dupla inscrição daquilo que convoca, em vão, para encontrar resposta à pergunta formulada: uma inscrição no tempo – o Medievo; outra, no espaço – a terra dos Celtas. Ou seja: ele busca a resposta na história de seu povo. Em vão, disse ele – e eu sublinho. Sublinho para lembrar que ele está no caminho certo: é preciso buscar na
própria história – na própria vida – uma possível resposta à questão sobre a própria natureza e o próprio destino. Mas é preciso buscar o próprio saber – Freud diria, construí-lo. Caso contrário, será em vão.

Retrocedendo: Em 1969, Jean-Luc Godard fez um filme intitulado “Le gai savoir”. Nas suas primeiras falas, os personages declaram um propósito: aprender. E o sumário da IMDB informa (eu traduzo): Como aprendemos? O que sabemos? Noite após noite, não muito longe do amanhecer, dois jovens, Patrícia e Emile, encontram-se num estúdio de som para discutir aprendizagem, discurso e o caminho para a revolução. O filme deveria ser uma versão para a TV francesa do livro Emílio, de Jean-Jacques Rousseau.

Emílio (ou Da Educação) é uma obra filosófica sobre a natureza do homem, escrita em 1762. Aborda temas políticos e filosóficos referentes à relação do indivíduo com a sociedade, particularmente explica como o indivíduo pode conservar sua bondade natural (Rousseau sustenta que o homem é bom por natureza), enquanto participa de uma sociedade inevitavelmente corrupta. No Emílio, Rousseau propõe, mediante a descrição do homem, um sistema educativo que permita ao “homem natural” conviver com a corrupção sem se contagiar. Rousseau acompanha o tratado de uma história romanceada do jovem Emílio e seu tutor, para ilustrar como se deve educar o cidadão ideal. No entanto, Emílio, que não é um guia detalhado, considera-se hoje o primeiro tratado sobre filosofia da educação no mundo ocidental.[2]

O texto se divide em cinco “livros”, os três primeiros dedicados à infância de Emílio, o quarto à sua adolescência, e o quinto à educação de Sofia (a “mulher ideal” e futura esposa de Emílio) e à vida doméstica e civil deste, incluindo sua formação política. O Emílio foi proibido e queimado em Paris e em Genebra, ao tempo de sua publicação, o que o converteu, rapidamente, em um dos livros mais lidos na Europa. Durante a Revolução francesa, serviu como inspiração para o novo sistema educativo nacional.

O filme de Godard – consta que não chegou a ser exibido – toma distância da “encomenda” e vai encontrar Emílio em sua intenção pedagógica e em sua forma ensaística mais do que em seu conteúdo de fundo – Rousseau falava de uma “coleção de reflexões e observações, sem ordem e quase soltas”; Patrícia, no filme, fala de “um amontoado de experiências”.[3]

Se o filme de Godard, em seu conteúdo de fundo, não é fiel a Rousseau, ele é muito fiel a Nietzsche, no tratamento que este dá ao saber: à necessidade de retroceder desde as imagens e os sons até a experiência primeira que lhes dá origem. Afinal, este é um tema caro à obra nietzschiana, cujo título Godard adota para seu filme - Le Gai Savoir (o saber alegre). Este mesmo título ele vai reiterar em quadros do filme, em palavras manuscritas sobre imagens de revistas em quadrinhos – alusão ao retorno à infância, para recuperar a pureza do pecado original?

Apenas recordando, Nietzsche publicou, em 1882, uma obra[4], cujo título em francês é Le gai savoir. O livro reúne reflexões do filósofo sobre “a história do saber, a busca do conhecimento, os percalços do homem nessa busca histórica”.[5] Num fragmento escrito no mesmo ano, Nietzche anotara a expressão “La gaya scienza” (em provençal), como título de uma lista de trovadores provençais e suas canções. Na segunda edição de A gaia ciência, em 1887, o próprio autor incluiu tal expressão como subtítulo.

Então, rastreando em ordem cronológica, a partir da declaração feita pelo cineasta - Silvestre é um filme sobre a aprendizagem[6] - parece-me possível isolar entre as suas referências:

·         o filme Le Gai Savoir, de Godard (1969),

·         cuja referência parece ter sido Nietzsche (1882),

·         embora o filme parta de um texto de Jean-Jacques Rousseau (1762).

Agora, se tomamos a declaração de que se trata de um filme feito por alguém que invoca o “gai savoir” dos elfos2 para responder a questões fundadoras; como “gai savoir” é o título atribuído, em francês, à produção de trovadores provençais – produção esta que demarca o nascimento da poesia européia moderna, durante o século XII – e Silvestre é ambientado na Idade Média; e como os elfos são criaturas místicas da mitologia nórdica e céltica - também chamados de “elfos da luz” - que aparecem com freqüência na literatura medieval européia; e que o saber dos elfos nos remete a um tempo mítico; então, para mim, Monteiro está dizendo que, para chegar às origens do saber sobre quem somos nós, é preciso fazer retroceder a própria história, não apenas até o passado, mas até um tempo que não passa – o tempo do mito.

Fato é que, qualquer que seja o conteúdo latente sob o filme ou sob as declarações conscientes do cineasta, retrocedendo, de referência em referência, chegamos de volta à obra prima que Silvestre é: mostração da jornada que vai da (des)obediência à condição de espírito livre[7] - aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra.

Aplico o aforismo a ambos – a Silvestre, o filme; e a Monteiro, seu autor.

Curitiba, 10 de Novembro de 2020.




[1] Monteiro, J. C. Cahiers du Cinéma nº 460, outubro 1992, retirado do catálogo "João César Monteiro", Edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Lisboa, abril de 2005. Disponível aqui.

[2] Wikipédia Brasil. Disponível aqui.

[3] Marchiori, D. A Gaia Ciência, Le gai savoir.1969.720p.BluRay.AVC-mfcorrea

[4] Nistzsche, F. Die fröhliche Wissenschaft. 1882. Traduzível como “o alegre saber”, “o saber feliz” ou “a alegre ciência”. Em português a obra recebeu o título A Gaia Ciência.

[5] Mioranza. C. In Nietzsche, A Gaia Ciência, Editora Lafonte Ltda, 2017

[6] Tavares da Silva, A. O Silvestre é um filme sobre a aprendizagem. 1982. Disponível aqui.

[7] Nistzsche, F. Humano, demasiado humano - um livro para espíritos livres. 1878. Aforismo 225.

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