segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Do Movimento das Coisas, de Manuela Serra

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

O recorte é claro – tempo e espaço definidos – mas o filme não é nem paroquial e nem datado. Também não se inscreve no tempo mítico, pois é um filme realista: dá conta de uma realidade dura na qual, entretanto, sobram dignidade e alegria. Mulheres em sua faina ocupam a cena. Ao longe, na fumaça turbulenta da indústria, em vivo contraste com a névoa que a natureza estende como véu pacífico, é mostrada a face da transformação por vir. Se Rosselini, em Europa 51, escancarou a monstruosidade desta transformação, aqui ela é anunciada com delicadeza – como uma advertência.

Esse é o resultado esperado do trabalho de um realizador que se apruma em seu desejo: ele arranca algo do Real e o apresenta aos demais. A estes, resta o reconhecimento – na medida de sua própria sensibilidade e de seu repertório de experiências.

Se é verdade, como aponta Nietzsche, em suas Segundas Considerações Intempestivas (1874), que a História, para realizar sua função de acrescentar felicidade à vida das pessoas, precisa contemplar três dimensões – a monumental, a crítica e a antiquarista – então Manuela Serra nos presenteia com um documento poético que, servindo à terceira vertente da História, nos lava a alma nas águas do rio Lima e nos põe em irmandade com pessoas, simples e elevadas, que se entregaram, fazendo ofício de atores, ao registro da cineasta.

Cineasta capaz de dirigir o ator e a si mesma para esse foco, onde se dá o cruzamento dos raios da luz refletida – convergentes desde a realidade – raios que, depois, pelos poderes do instrumento ótico, serão dirigidos para deixar impressa na película a marca do Real: foco que é ponto de encontro onde dois, por um instante cósmico, ocupam o mesmo espaço e o mesmo tempo – e se reconhecem, um no outro.

Cineasta que, pela captura precisa, transforma o ator – no início, ator de si mesmo – em imagem prototípica, com a qual todo ser humano pode vir a se identificar, na medida de sua própria vulnerabilidade, dando, a cada um, ocasião de também comparecer ao ponto mágico de encontro.

Capturando o movimento das coisas, protegendo-o nos arquivos do Cinema, Manuela Serra registra uma realidade banhada em poesia e, destarte, a eterniza.

Sexta-feira 13, Novembro de 2020

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