quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

As coisas simples da vida (YiYi), Edward Yang, 2000

 

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

[Contém spoilers]

Não à toa, este foi o filme que chamou a atenção do mundo para a obra de Edward Yang, até então pouco comentada, levando a comunidade cinéfila a examinar melhor seus filmes anteriores. Nessa retomada, duas obras luminosas (That day on the beach-1983 e A brighter summer day-1991) ergueram-se entre outros filmes (Taipei story-1985, Terrorizers-1986, A confucian confusion-1994 e Mahjong-1996), talvez menores, mas igualmente essenciais.

Neste que foi o seu último filme, Yang transmite um resumo do seu legado. Ele parece ensinar que as coisas simples da vida – nascer, viver e morrer – inquietam profundamente àqueles que escapam à alienação.

Acompanhamos a trajetória de um homem chamado NJ e sua família: a esposa Min Min; a filha Ting Ting e o adorável caçula Yang Yang. Na interação destes personagens com seus familiares e outros contatos sociais, desdobra-se uma história humana, sensível e reveladora.

O filme abre-se com belas cenas de um casamento. O irmão de Min Min, A-Di, casa-se com uma noiva, cuja gravidez já está em fase avançada, por ele ter adiado sucessivamente o enlace até encontrar uma data auspiciosa, favorável à felicidade, segundo o horóscopo. Parece uma desculpa que justifique a procrastinação, mas a verdade é que ele também adiará indefinidamente a escolha do nome do filho, nome este que passa por uma decisão muito crítica, pois deverá neutralizar o perigo trazido pela data de nascimento, considerada nefasta.

Yang, com delicadeza e bom humor, zomba da superstição que parece entranhada na cultura daquele grupo, ao mesmo tampo que anuncia estar a mesma cultura sendo infiltrada por costumes, ícones e heróis ocidentais, colocando, em imagens, a complexidade da transformação em curso. Ele também colocará em foco a complexidade do movimento subjetivo e da interação social dentro daquela família e no seu entorno.

Já na festa de casamento intervém um escândalo e somos apresentados a Yun Yun, a companheira que o noivo abandonou para se casar com a namorada grávida. Sintomaticamente, em meio ao tumulto, o quadro com a foto dos noivos acaba de cabeça para baixo. Ao longo do filme, saberemos que ele não deixou para trás o relacionamento traído, um laço que incluía patrimônio financeiro conjunto.

A alegria da festa não chega a ser perturbada pelo escândalo, mas contrasta vivamente com o que se segue: uma condição médica leva a matriarca da família – mãe de Min Min (e do noivo) – ao hospital. Ela retorna para casa em coma. Sua prescrição inclui um remédio prescrito por Almodovar: Falem com ela! Na imposição de que falem com a avó adormecida, as pessoas começam a se revelar a si mesmas. Esse é o mote central do filme: revelações pessoais.

O pequeno Yang Yang recusa-se a falar com a avó: segue sua vida, com a máxima autonomia, o que rende os momentos mais comoventes do filme.

A adolescente Ting Ting fala com ela, mas seu discurso é carregado de culpa, embora, ao final, encontre redenção. Ela tem dúvidas se não foi ela própria a causadora do coma da avó e pede perdão. A avó lhe responderá poeticamente, entregando-lhe um origami.

Min Min entra em crise – e isso vai levá-la para um monastério, onde tentará encontrar-se com o vazio que constata em si mesma: descobre que não tem o que dizer à mãe. NJ propõe uma saída burocrática – pedir à enfermeira que leia o jornal para a avó – proposta que a esposa rejeita. Ele mesmo considera que falar com a sogra é como rezar. Nem sei se sou ouvido, nem se sou inteiramente sincero.

A ausência das mulheres adultas – a avó e a mãe – cria um vácuo em que todos naquela família vão se reposicionar.

Ting Ting, no relacionamento com outros jovens, realiza a giro que vai de menina à mulher, em um rito de passagem mostrado com a mesma delicadeza e precisão do primeiro filme de Edward Yang – Desejos, de 1982, um dos episódios dentro da produção coletiva denominada “In Our Time”. Ela afirmará até o fim sua adesão ao mundo Ideal. Se chega a se interrogar – Porque o mundo é tão diferente do que pensamos? – isso decorre de um encontro com o Real, sempre da ordem do mau encontro, mediado pelo quase-namorado Gordinho.

O mesmo Gordinho que o cineasta usou para falar de sua paixão pelo Cinema: O Cinema nos permite viver duas vidas a mais. Por ele podemos viver experiências que não fazem parte do nosso quotidiano – em referência ao lugar da Fantasia e da Sublimação. Infelizmente, para Gordinho isso não será suficiente. Yang aponta à impossibilidade de o Simbólico recobrir inteiramente o Real.

Yang vai mostrar com doçura o nascimento do desejo sexual adolescente, fazendo Ting Ting trocar o uniforme de todos os dias pelo vestido branco de alças e o sapatinho de salto, em contraponto com o embaraço que o desejo representa para sujeitos de qualquer gênero – o primeiro beijo acontece tendo ao fundo um semáforo que muda para o vermelho; uma vez num hotel, é difícil acender a luz - e a fuga acaba sendo a melhor alternativa.

Igualmente deixará muito claro, numa sequência memorável, as raízes da sexualidade já na infância. Yang Yang será o protagonista. O menino chega atrasado para uma aula sobre nuvens e fenômenos climáticos. Depois dele, entra na sala de projeção a bela menina que ocupa o foco de seu interesse. A saia da menina se engancha na fechadura e um lampejo fugaz mostra seu corpinho, recoberto pela calcinha branca. Outro lampejo mostra o rosto de Yang Yang, enquanto áudio e vídeo falam do aparecimento de uma força de atração irresistível que levará à descarga de um raio. Não poderia ser mais poético. Nem mais erótico.


Enquanto os jovens vão experimentando suas descobertas, os adultos também realizam travessias.

A manutenção do relacionamento de A-Di com sua primeira mulher ficará explícita não só na sua reabilitação econômica, como também na presença dela – Yun Yun, “uma velha amiga” – numa festa seguinte em que a família se reúne para celebrar o nascimento do bebê. Um novo escândalo, agora protagonizado pela esposa ciumenta, desdobra-se em uma separação temporária que leva A-Di a um ato extremo.

NJ, num encontro com seu primeiro amor, Sherry, realiza com ela uma viagem pelo Japão – um percurso pela própria juventude, ele dirá – apenas para concluir que, se tivesse uma segunda chance, não precisaria dela para nada. Embora diga à primeira namorada que nunca mais amou ninguém, é à esposa Min Min, já de volta de sua própria jornada, que ele entregará sua verdade.

Ao mesmo tempo em que percorre as vicissitudes próprias do Amor, Edward Yang também nos fala do Trabalho: a trajetória profissional de NJ o coloca em condições de desvelar o mundo corporativo, onde valores tradicionais são substituídos pelo lucro imediato; dignidade nada tem a ver com negócios; o autêntico é abandonado em favor da cópia; profissionais criativos e sérios, que oferecem saber e trabalho, perdem para oportunistas que acenam com a mágica do sucesso fácil; acordos são traídos e a ética ferida faz sofrer o sujeito. Ele ensina: É preciso amar o próprio trabalho para ser feliz.

Nesta mesma toada, NJ vai protagonizar um encontro com um sócio em potencial – o Sr. Oda – onde dois homens íntegros se reconhecem e se respeitam. É um laço sem futuro, entretanto, pois a corporação tem planos meteóricos. O que não impede que os dois sustentem uma conversa plena e sifnificativa e que, enquanto comentam que a Música foi desqualificada naquele mundo porque Não se ganha dinheiro ouvindo música, embarquem em uma performance de música popular que terminará nos acordes pungentes da Sonata ao Luar, de Beethoven, enquanto a câmera varre um cenário de escritórios iguais na sua monotonia impessoal.

O caráter inseparável da dimensão social e pessoal do ser humano, Edward Yang o mostra trazendo a cidade para dentro da cena da vida privada – mostra as pessoas no espaço doméstico ou corporativo juntamente com o reflexo dos edifícios e do trânsito nos vidros das janelas: A casa e a rua superpostas e indissociáveis. O Sujeito e o Outro.

Mas é o pequeno Yang Yang quem observa a todos e percebe claramente a distância que separa as pessoas do Saber. Você não viu, você está falando o que ouviu dizer, você não sabe o que diz. Tem clareza de que o que ele percebe não é o mesmo que percebem os outros. Quer mostrar aos demais aquilo que eles próprios não sabem de si – e lhes entrega fotos de suas nucas.

Na cerimônia de despedida da avó, em um ambiente tradicional dentro de um parque sereno, finalmente o menino fala com ela. Lê uma carta. Desculpa-se: Não falei antes porque você já sabia tudo o que eu pudesse lhe dizer. Mas agora quer se despedir e declara seu desejo: Quando eu crescer, quero contar para os outros o que eles não sabem, mostrar coisas que eles não viram. E aponta à alegria que o desejo comporta: Vai ser tão divertido!

Encerra o filme colocando em palavras uma pergunta fundamental – Pode ser que eu descubra aonde você foi. E aí vou poder contar para todo mundo. E, declarando que, mesmo sendo só uma criança, já se sente tão velho quanto a avó, testemunha o caráter atemporal das questões cruciais que assolam a alma humana.


Curitiba, 25 de Janeiro de 2022.

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