por Vera Lúcia de Oliveira e Silva
[Contém spoilers]
Edward Yang é um cineasta de aberturas – e não de
fechamentos. Então é possível ver este filme como um melodrama urbano envolvendo
Lung (Hou Hsiao-hsien) e Chin (Tsai Chin). Entretanto, a mesma abertura que permite essa pegada também
oferece a alternativa de se tomar o casal e suas vicissitudes como metáfora da
própria cidade: Taipei – uma ilha urbana dentro de uma ilha geográfica, parece
um claustro do qual alguns escapam, mudando-se para o Japão ou para o EEUU e os
que ficam, ou definham junto com as tradições e seus valores, ou adotam a
cultura invasora que vai se fazendo hegemônica.
Com esta abordagem, é fácil seguir Lung como representante dos valores tradicionais daquela cultura milenar; e Chin, como a absorção da modernidade trazida pela “invasão” americana. Já no vestuário de um e de outro, nas cenas iniciais do filme, quando o casal examina um apartamento a ser adotado como residência; e numa certa indiferença entre eles, já ali anunciando que estão juntos, mas não um com o outro. O casal lembra duas ilhas, o que não impede que ele a agasalhe – contra o frio da noite e da vida. A família, mostrada na celebração de um aniversário, lembra um arquipélago: estão juntos, mas parecem sós.
A Taipei dessa estória é uma cidade inóspita. Tráfego caótico, cenário urbano tradicional sórdido e decadente, iluminado em flashes intermitentes pelos faróis dos veículos, num contraponto entre a antiga grandeza, que subsiste sob a decadência na arquitetura que vai ruindo, e o fugaz do moderno, que veio para ficar. Enfeitada em néon reluzente, ostentando marcas de produtos estrangeiros, brilha na noite. Edifícios tradicionais transformado em enfeites de Natal, ao som de canções importadas, celebram uma festa alienígena. A imagem final – o reflexo da cidade fraturado pelas linhas quebradas de um painel de vidraças – mostra Taipei como caleidoscópio de múltiplos fragmentos, sua identidade perdida.
Mas, sigamos o casal tomado como metáfora.
O caráter de Chin vai se revelando em detalhes intencionalmente postos em cena por Yang: na coleção de óculos que usa, não para ver, mas para ser vista; na objeção aos movimentos solidários de Lung; no uso reiterado do telefone para buscar com o outro um contato mediado pela tecnologia, vazio de autenticidade. Revela-se também que ela não é fiel a Lung, pois seremos apresentados a seu amante, que lhe comunica o lamento próprio do trabalhador alienado de sua obra: todos os prédios da cidade são idênticos e já não mostram a assinatura de quem os desenhou e construiu. Quando o amante recompõe seu casamento, Chin encontra outro laço – dessa vez, fará uma escolha fatal.
O desdobramento da estória de Taipei vai revelar que Lung mantém laços piedosos de responsabilidade e proteção para com os demais: a mãe – a irmã e o cunhado residentes nos EEUU – um relacionamento antigo que vive em Tóquio – a namorada Chin (que lhe diz essa frase emblemática Você sabe do que eu preciso: eu preciso de nada) – o pai da namorada, um homem com antecedentes de violência na família, fracassado nos negócios e na vida – um antigo amigo , cuja mulher, viciada no jogo e negligente com as crianças, cometerá suicídio...
... enquanto ele próprio não se apruma em suas contradições: abre mão de seus recursos e de seu projeto pessoal para ajudar os demais; brigão, recorre aos punhos “para se defender” e para “fazer justiça”; vive da glória de um status de quase-ídolo desportivo, num esporte importado; julga e condena uma viciada em jogo e perde o próprio carro jogando. Como ele mesmo diz, comete muitos erros, sem encontrar quem lhe faça uma advertência, outro modo de dizer que está só.
Em meio a essa solidão povoada, somos apresentados a vários aspectos daquela comunidade: gap entre gerações – Não entendo os jovens... declara o pai violento, velho, doente, fracassado e endividado; evasão da família – Chin sai de casa, a irmã caçula parece em vias de um aborto e só pensa em escapar para o Japão, a mãe apresenta-se desesperada; e insegurança profissional – Chin, confiante por ter sido promovida, assume um aluguel e sai da casa dos pais, mas é logo demitida, porque seu status salarial estava ligado à confiança de sua antiga chefe, confiança que não é valor para o novo empresário que assume os negócios.
Lung mantém-se algo aprumado à reflexão. Pensa suas questões: O casamento não é uma cura. Nem os EEUU são uma cura. São promessas que alimentam a ilusão de que é possível começar de novo. Só se respeita quem tem poder. Cometi muitos erros. Preciso pensar – só e em silêncio.
Mas esse aprumo não vai protegê-lo de se ver colhido na convergência perversa de dois fatos, num encontro fatídico com o Real: um mau passo de Chin traz para sua órbita um homem possessivo e violento, que entrará em confronto com Lung e sua própria violência. Este, no seu registro brigão onipotente, enfrenta o rival. Morre, sozinho na noite, em meio a dejetos de um descarte. Um simulacro de sala da vida privada – mobília abandonada como lixo na via pública – faz cenário para seu último ato, delirando uma glória desportiva acalentada e jamais atingida, rindo em meio à fumaça do último cigarro, ele próprio um dejeto a mais.
Chin é reabsorvida no mercado de trabalho, contratada por uma empresa americana que renova a esperança de autonomia, delirando que Lung ainda não tomou sua decisão final. É verdade. Nem tomou nem vai tomar decisão alguma, pois sucumbiu a mais uma sequência de escolhas funestas.
Para mim o filme provoca ressonâncias que perduram para além de sua exibição. Partilho a seguir as que continuaram me assombrando.
Não sei bem de onde chegam-me ecos de que estamos diante de vítimas do capitalismo selvagem que vai contagiando Taipei. De fato, se pudéssemos reconhecer o Capitalismo como um ente maléfico, dotado de vida própria, capaz de assombrar o humano e conduzi-lo ao pior, seria um entendimento possível.
Só que não parece haver ente maléfico algum lá fora, à espreita, pronto a seduzir as pessoas e incluí-las em seus efeitos. Ao contrário, parece que o Capitalismo é apenas um dos nomes de um fenômeno social antigo e sem fronteiras, nome introduzido na Linguagem contemporânea por Karl Marx, que o reconheceu na sociedade industrial e, isolando e descrevendo seus avatares, apresentou-o ao mundo com uma nova certidão de batismo.
Entretanto, antes do Capitalismo ser reconhecido e nomeado, sua fenomenologia já reinava no mundo: a riqueza já exercia seu fascínio; o fetiche dos signos de riqueza já determinava o valor da mercadoria, tanto quanto o jogo de forças entre a oferta e demanda o fazia para os produtos essenciais à sobrevivência; aqueles que podiam dominavam os que precisavam; a solidariedade dava lugar à ganância; o proletário era denominado servo ou escravo; o patrão se chamava amo ou senhor. Não há nada de novo debaixo do céu, simplesmente porque o Real retorna sempre ao mesmo lugar. Novos nomes para velhos crimes.
Supondo que Taipei está tendo a sua identidade tradicional estilhaçada pela chegada do Capitalismo, como entender essa operação? Como ela é possível? Como é possível que uma nova cultura substitua a anterior? De onde se extrai a força motriz para esse acontecimento improvável?
A história da ilha, denominada Formosa pelos portugueses no século XVI, revela uma alternância de dominações desde quando se tem notícia - a fenomenologia do senhor e do escravo já estava ali assentada com a força que lhe é inerente. A chegada dos perseguidos pela República Popular da China em 1949 não foi uma chegada neutra: eram sujeitos perseguidos exatamente porque escolhiam o Capitalismo como sua cartilha, recusando o livro vermelho de Mao.
Ou seja, Formosa foi convertida em Taiwan por um grupamento humano que, dada a polarização Comunismo X Capitalismo no continente, escolheu este último e fez-se aliado dos EEUU. Não é de se surpreender, então, que a “invasão capitalista” seja, de fato, a consequência lógica de um projeto decidido por uma comunidade de indivíduos que, exatamente por isso, teve que fugir do continente.
Nesse enquadramento, dissolve-se a nuvem de um suposto contágio malévolo que o Capitalismo seria ardilosamente capaz de exercer, atravessando terras, céus e oceanos. Em Taiwan há seres humanos e isso basta. Eles são os próprios portadores de seu Bem e de seu Mal e, lá como aqui, hoje como então, colhem as consequências de suas próprias escolhas, para o bem e para o mal.
Posso não gostar da tendência, pois sou a favor da preservação das identidades locais. Prezo o multiverso e lamento a mesmice de um mundo globalizado. Se lutasse por isso, saberia estar engajada numa luta inglória, pois a entropia, que leva toda diferença à equalização, é a lei maior.
Edward Yang – como o artista honesto que sempre foi – mostra o que está desaparecendo e o que está sendo posto no seu lugar, não só em Taiwan, mas no mundo. Sem complacência e sem piedade. E deixa a cada um a opção de interrogar, ou não, as escolhas humanas. Se possível, as próprias escolhas.
Curitiba, 19 de janeiro de 2021.
Nenhum comentário:
Postar um comentário