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sábado, 11 de novembro de 2017

Para mim fazer um filme é viver


O meu primeiro contato direto com uma câmera – uma Bell and Howell de 16mm – foi num manicômio. O diretor era um homem altíssimo, com uma cara que, com o passar do tempo, cada vez mais se parecia com a dos seus doentes. Nessa altura morava em Ferrara, a minha cidade natal – pequena e maravilhosa, silenciosa e antiga – da planície paduana. Tínhamos decidido, entre amigos, rodar um documentário sobre os loucos. O diretor queria a todo custo me ajudar, e se rebolava no chão para me mostrar as reações dos doentes a certos impulsos externos. Estava, de fato, decidido a rodar o documentário ao vivo, isto é, com os próprios doentes. Tanto insisti que, por fim, o diretor disse: "Experimente". 

Colocamos a câmera, preparamos os projetores, distribuímos os loucos pela sala conforme as exigências do primeiro enquadramento, e devo dizer que os loucos obedeciam com humildade, esforçando-se por não cometerem erros. Neste aspecto éramos comoventes e eu me sentia satisfeito com o decorrer das coisas. Por fim dei ordem para se acenderem os projetores. Estava um pouco emocionado. De repente a sala inundou-se de luz. Os doentes ficaram por momentos imóveis, como que petrificados. Nunca vi na cara de qualquer ator um espanto tão profundo, tão total. Foi um momento, repito. Depois, se passou uma cena indescritível. Os loucos começaram a se contorcer, a gritar, a rebolar no chão como fizera o diretor. Em pouco tempo a sala se transformou num pandemônio infernal. Os loucos procuravam desesperadamente se proteger da luz, como de um monstro pré-histórico que os fosse atacar, e os seus rostos que antes, quando estavam calmos, conseguiam conter a demência dentro de limites humanos, pareciam agora transtornados, devastados. Era agora a nossa vez de ficarmos petrificados perante aquele espetáculo. O operador nem sequer teve força para por a câmera em movimento, e eu não consegui dar qualquer tipo de ordem. Foi o diretor quem teve de gritar "Parem! Apaguem as luzes!". E na sala, agora à meia-luz e mergulhada em silêncio, vimos um emaranhado de corpos que se agitavam como nos últimos estertores de uma agonia. 

Nunca esqueci aquela cena. E foi devido a ela que começamos a falar, sem o sabermos, de neo-realismo.

Isto se passou antes da guerra.

Depois a guerra chegou e assistimos a tantas outras cenas de violência, para não dizer de loucura, que nos habituamos a elas. Mas nos debates que se fizeram aqui, na Itália, no pós-guerra, sobre o neo-realismo, considerei sempre aquele documentário nunca rodado como um texto clássico. O cinema italiano parecia não saber se desvincular do seguinte critério: a realidade, a verdade cada vez mais verdadeira. A câmera escondida nas ruas ou colocada por detrás do buraco da fechadura para captar os aspectos mais secretos da realidade. Os conceitos estéticos estudados na escola foram varridos por esta vaga, pela necessidade de surpreender a teoria com os fatos, com os filmes. E é preciso que se diga que muitos desses filmes alcançaram esse objetivo. A verdade é que a realidade à nossa volta era, efetivamente, escaldante, excepcional. Como ignorá-la?

Fazer um filme não é como escrever um romance. Dizia Flaubert que viver não era o seu ofício: o seu ofício era escrever. Fazer um filme é isso mesmo: viver. Pelo menos para mim (a comparação ilustre, esclareça-se, pretende apenas valorizar o discurso). A minha história pessoal não se interrompe enquanto rodo um filme: é precisamente nessa altura que ela se torna mais intensa. Esta sinceridade, este ser-se, de um modo ou de outro, autobiográfico, este varrer no cantil do filme todo o nosso vinho, o que é senão um modo de participar da vida, de acrescentar algo de bom (pelo menos nas intenções) ao nosso patrimônio pessoal, de cuja riqueza ou pobreza os outros serão juízes? É evidente que, sendo um filme um espetáculo público, as nossas coisas pessoas deixam, por seu intermédio, de o ser, para se tornarem, também elas, públicas. E no pós-guerra, nesse período tão cheio de acontecimentos graves, tão plenos de ânsias e de medos quanto aos destino do mundo inteiro, era impossível falar de outra coisa. 

Há momentos em que, para um homem inteligente, seria desonesto ignorar certos fatos, porque a inteligência que desiste no momento oportuno é uma contradição. Acho que os homens de cinema devem estar sempre lembrados, como inspiração, do seu tempo, não tanto para exprimi-lo e interpreta-lo nos seus acontecimentos mais crus e mais trágicos (podemos mesmo rir deles, porque não? Gosto dos filmes divertidos, embora não os faça, e entre os atores que mais admiro contam-se também Danny Kaye e Alec Guinness), mas mais para acolhermos dentro de nós o seu eco, para sermos nós realizadores, sinceros e coerentes conosco próprios, honestos e corajosos com os outros. É a única maneira, me parece, de estarmos vivos. Considero, porém, que aquele critério da verdade cada vez mais verdadeira, que esteve na base do neo-realismo italiano, levado, às vezes, às conseqüências extremas, é hoje em dia entendido num sentido um pouco mais lato, e também mais profundo. Porque hoje, num clima normalizado – bem ou mal, pouco importa – o que conta não é tanto a relação do indivíduo com o ambiente, mas o indivíduo em si, em toda a sua complexa e inquietante verdade. O que é que atormenta e motiva o homem moderno? Quais são as ressonâncias que acolhe dentro de si daquilo que acontece e aconteceu no mundo?

Estas são as questões que devemos, talvez, levantar hoje ao prepararmos nossas histórias.

A propósito do meu filme O Grito, os críticos franceses falaram de uma nova fórmula: o neo-realismo interior. Nunca tinha pensado dar um nome àquela que sempre fora, para mim, desde os tempos daquele documentário sobre os doentes mentais, uma necessidade: olhar o homem por dentro, ver quais os sentimentos, quais os pensamentos que o motivam no seu caminho para a felicidade, a infelicidade ou a morte.

Nunca pensei sequer em termos traduzíveis em filme. Detesto os filmes programáticos. Tento apenas contar, ou melhor, mostrar vivências e espero que essas vivências agradem, mesmo que sejam amargas. A vida nem sempre é alegre e é preciso ter a coragem de vê-la por todos os prismas. Mas deixo que seja o próprio filme, depois de acabado, a revelar o seu significado. Se as idéias existem em nós e somos sinceros ao exprimi-las, acabam sempre por vir à superfície. O importante é que a maneira de contá-las seja apoiada por uma consciência calorosa e equilibrada. O cinema de que gosto é aquele em que as imagens transmitem um sentimento de verdade sem perderem a sua força de penetração. Nada de enfatuações, delírios, extravagâncias intelectuais: as coisas vistas de frente e não ao contrário, nem de esguelha. 

Tenho de confessar que começo a me sentir pouco à vontade: por que tantos argumentos teóricos? A conclusão é sempre a mesma: o cinema, tal como a literatura, é inútil se não produzir a verdade e a poesia. Objetar-me-ão que os filmes deste tipo são raros, ao passo que os outros são mais numerosos e freqüentemente mais lucrativos. É evidente que uns e outros são necessários. Mas só os primeiros são representativos, e neles se baseia o prestígio de uma cinematografia. Direi mais: consideremos, embora paradoxalmente, os chamados filmes artísticos como vícios de uma produção inteiramente virtuosa, isso é comercia. Poderemos concluir, com Samuel Butler, que a função do vício é manter virtude dentro dos seus justos limites. Se a virtude tivesse campo livre seria insuportável. Creio, assim, que seria insuportável uma produção cinematográfica que fosse toda medíocre, sem idéias e sem coragem. Logo, procurarmos com todas as nossas forças fazer filmes bons é mais que legítimo. Mas o que freqüentemente acontece é que quem afirma coisas deste gênero é olhado com desconfiança pelos produtores. Assim, para além das dificuldades inerentes à realização deste tipo de filmes, têm de lutar contra essa desconfiança, que depois se traduz por outros tantos obstáculos materiais. Um realizador deve ser corajoso também nessa luta, se quiser ter êxito. Em resumo: o ofício do realizador é aprender a vencer os obstáculos que encontra ao procurar fazer bem o seu trabalho. O trágico é que precisa sempre dar provas do seu talento à gente que não tem talento nenhum.

Mas voltemos a O Grito, o meu último filme a ser exibido nos Estados Unidos. Se é difícil falarmos de nós próprios é ainda mais difícil falarmos de nossas obras. É certo que é um filme fechado, difícil. "Humilde, de uma humildade misteriosa", conforme escreveu o crítico. E talvez seja verdade. Há pouco tempo eu próprio voltei a vê-lo e fiquei espantado ao encontrar-me perante tanta nudez, tanta solidão, à semelhança do que acontece certas manhãs, quando fiamos assustados com o reflexo da nossa própria cara no espelho. Não sei se o público dos Estados Unidos, que é expressão de uma experiência e de uma cultura tão diversas das européias, se sentirá à vontade perante uma história daquele gênero. Espero que sim. Tenho muito medo do público e também dos críticos. Gostaria de poder preveni-los, explicar-lhes uma quantidade de coisas antes de deixá-los ver um filme meu. Não me lembro quem disse que os livros (e, portanto, também os filmes, acrescento eu) deveriam ser julgados por um magistrado perante um júri, tal como se faz com os crimes, ouvindo-se depois a acusação e a defesa.

Estou certo que quem o disse tinha toda a razão.

Michelangelo Antonioni

(texto publicado em Cinema Nuovo, vol. VIII, nº 138, Março-Abril de 1959. Tradução de José Luis Gesteira. Transcrição e adaptação de Rodrigo de Oliveira)

Extraído de www.contracampo.com.br

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Cineclube do Atalante: "Zabriskie Point" de Michelangelo Antonioni

Neste sábado, dia 11 de novembro às 16 horas, o Cineclube do Atalante apresenta "Zabriskie Point" de Michelangelo Antonioni. No dia 25/11, é a vez de "Como fera encurralada" de Claude Sautet. Entrada franca sempre.
Cineclube do Atalante apresenta:
"Zabriskie Point" de Michelangelo Antonioni






















A pulsante contracultura norte-americana da década de 60 a partir do relacionamento de Daria (Daria Halprin) e Mark (Mark Frechette), que se conhecem no deserto. Ela é uma estudante de antropologia, ele abandonou a sala de aula e é procurado pela polícia suspeito de ter assassinado um policial em um protesto estudantil.

Serviço:
11 de novembro (sábado)
às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Cineclube do Atalante: Programação de novembro

11/11: Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni
(EUA, 1970 – 113 min. Com: Mark Frechette, Daria Halprin, Paul Fix, G.D. Spradlin, Bill Garaway, Kathleen Cleaver,Rod Taylor)
Retrato da contracultura norte-americana nos anos 60 e 70 visto pela perspectiva de dois jovens: a garota Daria, estudante de antropologia e secretária de um empresário que está construindo um condomínio no deserto de Los Angeles; e Mark, rapaz que largou os estudos e está sendo procurado pela polícia sob suspeita de ter assassinado um policial durante um protesto estudantil.


25/11: Como fera encurralada, de Claude Sautet(Classe tous risques, França, 1960 - 108 min. Com: Lino Ventura, Sandra Milo, Jean-Paul Belmondo, Marcel Dalio, Michel Ardan, Simone France) 
Abel Davos (Lino Ventura) e Raymond Naldi, dois ladrões que operam na Itália, são encurralados pela polícia, na fronteira, durante uma fuga. Ocorrem algumas mortes. Abel se vê sozinho com os dois filhos pequenos e chega a Nice, de onde não pode sair. Pede, então, auxílio aos seus amigos em Paris, que enviam um estranho, Eric Stark (Jean-Paul Belmondo) com um plano audacioso para a fuga. Mas logo Abel descobre que a lealdade de seus amigos não é tão grande como ele esperava.
Serviço:
Quinzenalmente aos sábados
16hNa Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

Realização:Coletivo Atalante

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Cineclube Sesi: "China" de Michelangelo Antonioni

Nesta quinta-feira, dia 9 (excepcionalmente às 18h30), o Cineclube Sesi apresenta o filme "China" de Michelangelo Antonioni, dando prosseguimento ao ciclo O cinema segundo Serge Daney que contará ainda com "Aqui e Acolá" de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville (16/10); "Carrossel da Esperança" de Jacques Tati (23/10) e "Agonia e Glória" de Samuel Fuller (30/10).
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi apresenta: "China" de Michelangelo Antonioni


"Intenção pérfida e procedimento desprezível. É sob esse título queo Remin Ribao (Jornal do Povo) açoitava, em 1974, Chung Kuoo filme de Antonioni. A argumentação era por vezes estranha. Julguemos (a respeito da praça Tian-An-Men): 'o filme não dá uma visão geral desse lugar e rouba toda a majestade da entrada de Tian-An-Men, tão cara ao coraçãodo povo chinês. Inversamente, o autor não poupa seu negativo para filmar grupos compactos de pessoas na praça com imagens de longe, de perto, de frente e de costas, em sucessão, aqui uma agitação de cabeças, lá uma mistura de pés. Ele faz deliberadamente da praça Tian-An-Men uma feira em total desordem. Não teve ele vontade de insultar nossa grande pátria?' (Para essa falsa questão a resposta é evidentemente: sim)." (Serge DaneyA reencenação)

Serviço:
dia 09/10 (quinta)
excepcionalmente às 18h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA
 

Realização: Sesi 
   
   (
http://www.sesipr.org.br/cultura/)
Produção: Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Big Bang!



O ECLIPSE. Michelangelo Antonioni, L’Eclisse, Itália/França, 1962

O Eclipse é particularmente marcante em relação a uma característica presente em muitos filmes de Antonioni: a narrativa como uma espera pelo desfecho, uma jornada de fadiga dilatada justamente para que o final sobressaia em maior intensidade. O filme dá todos seus sinais de cansaço, pede pelo fim, e este por sua vez vem como, a um só tempo, justificativa e revisão de todo o resto. O Eclipse apresenta aquele tipo de desfecho arrebatador queBlow Up reprisaria em versão singela e Zabriskie Point eProfissão: Repórter fermentariam consideravelmente. O final de Zabriskie Point, pra dizer a verdade, pode ser visto como a versão psicodélica do eclipse de O Eclipse. São duas das melhores seqüências de Antonioni, duas apoteoses abstratas, cada uma correspondendo a uma fase distinta na obra do diretor. Enquanto Zabriskie Pointtestemunha, na continuação de Blow Up, um impulso de dissolução em terras estrangeiras (o autor se apaga – e, dialeticamente, se torna ainda mais presente – para ser o receptor das palpitações, das impregnações atmosféricas de um espaço e sua cultura), O Eclipse, salvo um ou outro momento de tédio puro, é o filme mais “acabado” da tetralogia com a Monica Vitti, mais até que o posteriorDeserto Vermelho. Todo o estudo plástico e estrutural do preto-e-branco iniciado em A Aventura (ok, O Grito já era quase a mesma coisa sem a musa Vitti) parece ter ali naquela seqüência final de O Eclipse um ponto de chegada do qual Antonioni é o artífice hiper-consciente. Se há algo a reprovar nos filmes dele da primeira metade da década de 60, aliás, é o excesso de controle sobre os efeitos – em outras palavras, o auto-maneirismo de certos planos saturados de plasticidade, de mestria gráfica, quiçá deantonionices, figuras de estilo recalcadas sob um desejo de pintura e de arquitetura que tornava os filmes peças de museu precoces. Mas O Eclipse, assim como A Aventura,realmente mantém, quatro décadas depois, aquela opacidade irredutível que sempre gerou fascínio em Antonioni, e que o faz escapar às armadilhas de marcas autorais levadas a sério demais.   

O que nutre as narrativas dos filmes de Antonioni é uma forma filtrada de mistério, talvez um mistério em estado puro. O Eclipse, exemplarmente, não pretende chegar ao segredo que há por trás da narrativa, pois esta é o próprio desenho desse segredo. O elemento secreto não está lá como ponto de chegada, mas sim como estrutura, como planta – no sentido arquitetônico: o desenho geométrico que precede a construção. No nível plástico, isso permite que Antonioni trabalhe o plano como um espaço vazio de sentidos a priori, uma superfície na qual ele pode livremente imprimir signos, mover peças, tratar personagens como manchas de tinta. No nível narrativo, isso significa que o diretor tem um plano traçado para seus personagens, embora eles não saibam. Podemos até suspeitar que o filme opera a dissolução simultânea de todos os mapas, geográficos e mentais, que estariam em sua base. Antonioni, contudo, não desvia de certas rotas preestabelecidas: continua valendo para os personagens de O Eclipse a mesma sina de desaparição e separação deA Aventura. Quando ameaçam desenvolver relações entre eles, os personagens somem na poeira, no vento, na noite, no eclipse. 

A personagem de Monica Vitti em O Eclipse passeia pelo mundo munida de uma atenção redobrada; ela percebe detalhes visuais e sonoros numa quantidade acima do normal, está imantada aos movimentos e aos caracteres irrelevantes da realidade (mas irrelevantes somente de um ponto de vista não cinematográfico). O filme desvenda esses pequenos eventos escondidos entre as coisas, sem que os personagens se entreguem a situações concretas. Tudo permanece muito fluido e informe, nem mesmo uma relação amorosa consegue se concretizar, sendo apenas vivida em fragmentos – entre os personagens de Vitti e Alain Delon surge um namoro muito frágil, muito truncado. O Antonioni da era preto-e-branco vive um momento-limite: o uso do mistério como pretexto narrativo e como rede de segurança para a pesquisa formal já se torna por demais esquemático. A prova de que há uma fronteira sendo ultrapassada está no fato de que algumas partes do filme são realmente chatas, parecem feitas meio em piloto automático, soando como frias demarcações de estilo (a passagem para o colorido de Deserto Vermelho virá em boa hora). Fica faltando alguma coisa, possivelmente algum elemento forte na ficção propriamente dita, algo mais que cenas posadas e retraídas. Nas cenas na bolsa de valores essa impressão diminui, porque ali parece haver um elemento ficcional mais interessante (apesar de eu achar aquele “minuto de silêncio” feito em meio ao caos da bolsa uma ênfase desnecessária, e uma obviedade em termos tanto de efeito-cinema quanto de comentário irônico).  

Logo que o filme começa, Vitti abre as cortinas da casa de seu namorado, enquanto discute com ele, e a vista que surge pela janela é de um espaço estranhamente futurista e desconexo. O movimento do filme fica estabelecido como do interior para o exterior, mas sem sair da cápsula asfixiante de um universo mental confuso e paralítico. O espaço funciona como a continuação da fragilidade e da súbita desfamiliaridade em que os personagens são apanhados internamente. Os dez minutos finais irão condensar o movimento de “exteriorização” (embora nesse filme o espaço faça pouco mais do que refletir a interioridade, o que já é em si um clichê antonioniano), em tomadas externas que menos encerram do que congelam o filme. O final é quase um curta-metragem de bônus, um pequeno documentário poético sobre o dia em que a Terra parou. Há em Antonioni uma confessa influência do expressionismo abstrato, que permeia todo o filme e que nessa cena é levada ao extremo. O eclipse gera um lusco-fusco existencial, e de uma hora pra outra nenhuma presença é 100% assegurável.

Nos filmes de Antonioni, mesmo o desligamento narrativo mais radical nasce de um desabrigo subjetivo, uma sensação de perda de si totalmente colada às veleidades dos protagonistas. Essa sensação, quando identificada ao olho mecânico e impessoal da câmera, rende uma profunda neutralidade, quase um olhar de vigilância, tamanha a desafecção que veicula. A tarefa desse olhar é fazer uma minuciosa decupagem de espaços neutros, exatamente como na seqüência final de O Eclipse. A figura humana é aquilo que precisa sumir da frente da câmera, as pessoas evaporam em si mesmas, desaparecem como figura e se tornam descasos da matéria, transeuntes que estão no filme por acidente, corpos fugidios, comparáveis ao líquen e aos insetos, afogados na entropia do universo. Deve sobrar apenas o espaço. Temos a impressão de que o cenário vazio ali restante pode se prolongar para além do filme randomicamente, reproduzir-se ao infinito dofora-de-quadro (como em Mondrian). O regime figurativo é deglutido por uma espécie de hecatombe abstracionista. Na última imagem do filme, aquele close no poste de luz, é como se o diretor prestasse seu tributo, através da explosão do branco, às revoluções artísticas que havia herdado. Antonioni encontra na nova sensibilidade espacial da modernidade o solo fértil ideal para seu paisagismo abstrato – por isso ninguém pode dizer que ele reprova moral ou esteticamente os tecidos urbanos modernos, nem que os enxerga com negativismo. Nesse terreno ele é mestre. Os minutos finais de O Eclipse não só fazem valer o restante do filme, como estão entre os mais violentos investimentos de energia criadora do cinema de Antonioni.

Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/87/dvdeclipse.htm)

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Ciudad Abierta: exibição e debate sobre "O Eclipse", de Michelangelo Antonioni


Coletivo Atalante convida para o segundo evento da mostra fotográfica CIUDAD ABIERTA, CONVITE AO VAZIO. 
Ciudad Abierta: exibição e debate sobre o filme "O Eclipse", de Michelangelo Antonioni

"1962. Em Florença, para ver e filmar o eclipse do sol. Gelo súbito. Um silêncio diferente de todos os outros silêncios. Luz térrea, diferente de todas as outras luzes. E depois a escuridão, a imobilidade total. Tudo o que consigo pensar é que, durante o eclipse, provavelmente ficarão parados até os sentimentos. É uma ideia que tem vagamente a ver com o filme que estava preparando, mais uma sensação que uma ideia, mas que já define o filme, se bem que este ainda esteja longe de estar definido (...). Deveria ter posto nos créditos iniciais de 'O Eclipse', estes dois versos de Dylan Thomas: 'alguma certeza deve porém existir, se não a de amar bem, pelo menos a de não amar (...)."

- Michelangelo Antonioni sobre o filme.

"O Eclipse é um filme explosivo. Explosivo no sentido imaterial, pois o cinema do italiano Michelangelo Antonioni escapa da materialidade, transcende. E O Eclipse representa justamente a ascensão de Antonioni a um patamar outro, a apoteose de uma poética que o diretor já apresentara antes em A Aventura e A Noite, e que neste filme finalmente alcança seu apogeu. Desde o primeiro plano até a inesquecível seqüência final, o que testemunhamos é a explosão inquietante das não palavras, do não dito, do inefável. E cabe a Antonioni, captar com sua câmera, fragmentos daquilo que só é possível traduzir em imagens. O Eclipse é difícil de ser definido e tudo o que é dito a seu respeito parece insuficiente e confuso, o que só confirma a força desta obra única."

- Rodrgo Cruz (APJCC - 2009)


Serviço:
dia 17/04 (quarta)
às 18h30
na Bicicletaria Cultural
(R. Presidente Faria, 226, Centro)
ENTRADA FRANCA (contribuição espontânea

Realização: Atalante
- TEMPO DE DURAÇÃO DA MOSTRA: 10 DE ABRIL ATÉ 11 DE MAIO -