sexta-feira, 22 de maio de 2015

Curso de História do Cinema


Curso de História do Cinema: A questão narrativa
Cinema é a arte das imagens em movimento. Como arte é o canal de expressão de homens e mulheres que concebem o mundo sob um prisma poético. Como imagens é o espelho da humanidade nos últimos 120 anos: suas ilusões, vergonhas, vitórias e medos projetados em 24 quadros por segundo. E como movimento é a música da luz, a montanha russa nas mais impressionantes paisagens do inconsciente.
Tudo isso, porém, quase sempre passa batido na nossa convencional fruição de filmes. A dieta viciada de audiovisual imposta pela indústria massiva de imagens nos impede de observar o universo por trás dos "roteiros e atuações".

Poesia em cinema é feita de zoom e travelling; do comportamento da câmera à mise-en-scène; do enquadramento criativo à duração do plano. Em resumo: da forma como se manipula a linguagem cinematográfica.

Nesse sentido o Curso de História do Cinema, ministrado por Miguel Haoni (do Coletivo Atalante), propõe, com a ajuda da História Contemporânea e da Filosofia da Arte, lançar outro olhar sobre o fenômeno audiovisual artístico.

O curso pretende observar como diferentes cineastas concebiam a arte em momentos chave de sua evolução histórica. A partir do debate crítico, leitura de textos e análise de filmes o curso desvendará de que maneira esta linguagem de imagens é tecida na construção de discursos e sensações, configurando parte fundamental de nossa experiência no mundo contemporâneo.

1° Unidade: Primeiro cinema
Foi no final do século XIX, em 1895, na França, os irmãos Louis e Auguste Lumière inventaram o cinematógrafo. Na primeira metade deste século a fotografia já havia sido inventada por Louis-Jacques Daguerre e Joseph Nicéphore Niepce, possibilitando esta criação revolucionária no mundo das artes e da indústria cultural: o cinema.

2° Unidade: Cinema clássico americanoClássico não pode ser uma perspectiva ou uma antologia histórica, o “classicismo” não pressupõe uma distância, mas a proximidade. Clássico não é antigo. Clássico é a supremacia do gesto. Parafraseando um clássico, é a “câmera ao nível do olhar”, é ser humilde o suficiente para olhar alguém como se olha para si próprio e é construir um mundo, fazer parecer isso simples. O segredo está no sentimento.


3° Unidade: Comédia
O filme cômico, que se caracteriza pela inclusão de gags, pilhérias ou brincadeiras, tanto visuais como verbais, começou sua existência praticamente no início desta arte. L'arroseur Arrosé (O Regador Regado), de 1896, filme francês dos irmãos Lumière, é considerada a primeira comédia da história do cinema. Desde o começo, criaram-se filmes em que se mostravam imagens que alegravam ou faziam rir o espectador, ainda que fosse sem o acompanhamento do som. Nestas comédias, quase em sua totalidade estadunidenses, utilizavam-se das perseguições, dos golpes, das quedas, das surpresas dos personagens, para conseguir a hilaridade do público. Era um cinema cheio de golpes com tortas, choques de automóveis, velozes perseguições policiais e inúmeras situações mais ou menos insólitas. Observam-se ali os protótipos do que seria o cinema de comédia.

4° Unidade: Cinema Puro
Todas essas experiências com imagem buscaram trabalhar com o conceito de cinema puro. De maneira experimental, representaram, por imagens, o caos dos sonhos, dos delírios e da tecnologia.

Referências bibliográficas:
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
Cahiers du Cinéma n°98, agosto 1959.
FAURE, Elie. Função do cinema e das outras artes. Lisboa: Edições texto e grafia, 2010.
MASCARELLO, Fernando (org). História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2007.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2005.

Referências fílmicas:
Em busca de um homem (Will success spoil Rock Hunter?). 
Frank Tashlin. EUA. 1957. Cor.  93 min.
Sete Mulheres (Seven Women). 
John Ford. EUA. 1966. cor. 87 min.

Serviço: 
Carga horária: 24 horas
de 22 a 27 de junho (segunda a sábado)
das 8 às 12 horas
no Núcleo Cine
(Rua Belém, 888 - Cabral- Curitiba/PR)

Inscrições de segunda a sexta das 14 às 18 horas no Núcleo Cine
Investimento: R$120,00
VAGAS LIMITADAS
Informações: (41) 3026-0472, 9977-7239 (André), 9163-1253 (Marina) ou coletivoatalante@gmail.com

Realização: Núcleo Cine (http://www.nucleocine.com.br/)
Apoio: Coletivo Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

quinta-feira, 21 de maio de 2015

A hipótese do quadro roubado


(Raoul Ruiz, 1979)
Por Daniel Dalpizzolo
Em A Hipótese do Quadro Roubado, semelhante ao que fez Orson Welles em Verdades e Mentiras, Raoul Ruíz parte de uma análise aparentemente técnica sobre a manifestação artística para, através dela, desafiar seu filme – e consequentemente a nós, espectadores – por uma aventura que ultrapassa os limites da narrativa e da encenação cinematográficas – num elegante jogo metalinguístico barroco e fantasioso. Se Welles, em seu filme de 1973, questionava a verdade na imagem através de um suposto documentário que a cada passo dado se mostrava mais e mais falso (talvez seja o filme definitivo sobre a encenação), aqui Ruiz vai além dessa problemática para adentrar possibilidades complementares, especialmente a relação que os signos utilizados para a composição destes quadros (seja um quadro de cinema ou um quadro de pintura, como os que dão sustentação às observações do personagem), e posteriormente seu resultado final enquanto imagem, mantêm com o receptor de arte após seu contato primário com o olhar – aquilo que se converte em assimilação – e, finalmente, chegando à forma como nós, receptores, reagimos a eles, numa busca inevitável por sua compreensão.
O personagem central de A Hipótese do Quadro Roubado, que conhecemos apenas como O Colecionador, se propõe, na companhia de um narrador oculto, a compreender a relação entre seis polêmicos quadros de um pintor impressionista do final do século XVIII – seriam sete caso um deles não tivesse sumido misteriosamente. O cenário deste jogo é a mansão em que reside o Colecionador, que se torna palco de uma viagem viva pela arte do artista que o obceca – o que de imediato também faz lembrar de Arca Russa, de Alexandr Sokurov, que utiliza-se de um dispositivo semelhante. A câmera de Ruíz transita pelo pátio coberto por névoa, pelas salas imensas e por demais cômodos da casa, que parecem ganhar vida apenas quando preenchidos pelos fragmentos imagéticos dos quadros (ou por eles em sua integridade), que por sua vez passam a fazer parte dos cenários pelos quais transita nosso personagem para que, a partir de algumas características particulares de cada um, ele construa sua teoria de correlação entre as pinturas, que justificaria a reação agressiva tida a elas à sua época – através de pequenos elementos que ligariam-nas a um escândalo.
As intenções de Ruíz, porém, se distanciam gradativamente dos quadros e de seus significados, objetivo específico de seu personagem e por nós recebido meramente por suposições. O que há de mais brilhante em A Hipótese do Quadro Roubado é como o cineasta vai se utilizando desta obsessão para compôr um filme no qual todas as informações recebidas parecem filtradas unicamente pelo olhar de seu personagem, um homem praticamente isolado de todos os fatores externos à obra do pintor, e que, sugado pelo mistério que elas propõem, vive uma busca indelével e desgastante por sua compreensão – uma diluição feita através de sua precisa perícia técnica e que é bem sucedida desde suas escolhas mais primárias, como a opção pela fotografia em preto e branco, que com sua textura inexpressiva acaba acachapando tanto as pinturas quanto suas reproduções tridimensionais em uma mesma realidade, uma realidade possível somente no cinema ou na mente, jamais na vida.
Ao mesmo tempo também parece haver algo de muito irônico e bastante verdadeiro na forma com que Ruíz encerra este breve período que passamos com seu personagem fictício: suas teorias sobre a obra do pintor vão de ideias pertinentes a outras relações aparentemente absurdas, mas acabam fazendo com que ele, por fim, deposite suas esperanças de compreensão plena das intenções do artista no famigerado quadro roubado, como se fosse ele a chave para o enigma de sua arte. O que possibilita algumas reflexões interessantes sobre o consumo e também sobre a própria existência da arte, que é intrinsecamente dependente do mistério, dos segredos da expressão de seu artista, que muitas vezes podem permanecer ocultos por detrás de outros elementos de sua misé en scène. Diante do isolamento do mundo construído por esta necessidade de compreensão plena, o Colecionador acaba enfim soando como uma representação da resposta para uma questão bem mais abrangente: de que a arte, para existir, necessitará eternamente do mistério – e, em contraponto, a obsessão excessiva pela compreensão íntegra de todos os seus signos, não obstante, pode tornar-se o equivalente intelectual a uma prisão.
Texto original: http://multiplotcinema.com.br/2013/10/a-hipotese-do-quadro-roubado/

Cineclube da Cinemateca: “Juventude em Marcha” de Pedro Costa

Neste sábado, dia 23, o Cineclube da Cinemateca exibe "Juventude em Marcha" dando sequência ao ciclo Pedro Costa, que ainda contará com "Onde jaz o teu sorriso?" (30/05). Sempre com entrada franca!
Cineclube da Cinemateca apresenta:
“Juventude em Marcha” de Pedro Costa

  
Ventura, um operário cabo-verdiano que mora no subúrbio de Lisboa, é subitamente abandonado pela sua esposa Clotilde. Ele sente-se perdido entre o velho quarteirão no qual passou seus últimos 34 anos e seu novo endereço num prédio de baixo custo, recentemente construído num conjunto habitacional. Todas as pobres almas que ele ali encontra parecem se tornar seus próprios filhos. Os cenários são as ruínas do bairro cabo-verdiano de Fontainhas, no noroeste de Lisboa, e o novo bairro Casal da Boba, construído pelo governo nos terrenos da maior lixeira do país.
O elenco é formado por actores não-profissionais, que desempenham os seus próprios papéis.

Serviço:
23 de maio (sábado)
Excepcionalmemte às 15h 
Na Cinemateca de Curitiba (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Cineclube do Celin: "O Guarda do Subsolo" de Kiyoshi Kurosawa


A senhorita Akiko está iniciando seu trabalho em uma nova companhia, onde terá que lidar com excêntricos colegas e com a presença de um misterioso segurança.

Serviço:
dia 22/05 (sexta)
às 19h30
No Anfi 400 da UFPR
(Rua General Carneiro, 480 - Reitoria, Edifício Dom Pedro I, 4° andar)
ENTRADA FRANCA

terça-feira, 19 de maio de 2015

Cineclube Sesi: "A Hipótese do Quadro Roubado" de Raoul Ruiz

Nesta quinta-feira, dia 21, o Cineclube Sesi exibe "A Hipótese do Quadro Roubado" de Raoul Ruiz, dando sequência ao ciclo Cinema e outras artes, que contará ainda com "Lavoura Arcaica" de Luiz Fernando Carvalho (28/05).
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi apresenta: 
"A Hipótese do Quadro Roubado" de Raoul Ruiz


Dois narradores, um visto e outro não visto, discutem possíveis conexões entre uma série de pinturas. O narrador que se apresenta na tela caminha por reproduções tridimensionais de cada pintura, apresentando pessoas reais, que por vezes estão se movendo, em um esforço para explicar o significado da série.

Serviço:
dia 21/05 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA
 

Realização: Sesi 
   
   (
http://www.sesipr.org.br/cultura/)
Produção: Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

domingo, 17 de maio de 2015

No Quarto da Vanda


(Pedro Costa, Portugal, 2000)

Perto do final de No quarto da Vanda (2000), há um dos planos de que eu mais gosto, o plano de uma velha cabo-verdiana, com uma miúda também de Cabo Verde.

A velha está sentada num quarto e a câmera “está sentada” atrás dela, deixando-nos ver apenas o que está no campo de visão da velha. Em seguida surge uma criança, que, depois de entrar e sair, detém-se na soleira da porta, junto a uma bicicleta. A criança vira-se, então, para nós (para a câmera e para a velha) e, apoiando-se ora num pé ora no outro, faz balouçar a bicicleta, que, assim balouçada, buzina. Descobrindo o efeito sonoro do movimento, a criança repete-o um sem-número de vezes, sempre de costas voltadas para a rua e sempre a olhar para a velha. Esta não esboça a menor reação ao jogo da miúda, mas, embora não lhe vejamos o olhar, sabemos que está com toda a atenção nela. Atenção que, de certo modo, é devolvida, pois a brincadeira da criança, sendo também uma brincadeira solitária, é uma brincadeira para a velha, ou uma brincadeira com a velha. Nem uma nem outra dizem uma só palavra, a velha sempre imóvel e a miúda repetindo sempre o mesmo movimento. Nesse filme de longuíssimos planos, esse é um dos planos que mais dura. Nesse filme de rituais, esse é um dos planos mais ritualísticos. Nesse filme de mistérios, esse é um dos planos mais misteriosos. Nunca até esse momento – pelo menos ao que julgo, só com duas visões do filme – essas personagens nos foram mostradas. Nunca mais as voltaremos a ver. Pode ser que sejam avó e neta, pode ser que sejam, como todos são, vizinhas nesse esventado bairro das Fontainhas. A velha – já o disse – não tem reações. A criança está manifestamente divertida com a sua brincadeira, mas, a partir de certa altura, um estranhíssimo mal-estar começa a dominar a situação e há um crescente peso letal no que vemos, o que nunca varia.

 Abruptamente (quase todos os cortes desse filme são abruptos) Pedro Costa corta, e vemos, numa bandeja rodeada por moedas e uma folha da funerária da Venda Nova com alguns dizeres, como que uma fatura. Esse, pelo contrário, é um plano brevíssimo, que nem nos dá tempo de ler o que está na folha. Mas, sem nenhuma pista para isso nem indicação em que me apoie, dei por mim a “inventar” uma história, que não está no filme. Alguém morreu naquela casa, talvez o marido da velha, talvez o avô da criança. Atrás da velha, pode bem estar um cadáver ou um caixão, que a criança vê, mas nós não vemos. A concentração da velha vem da sua súbita solidão, apenas com aquela criança, de quem, a partir desse momento, é a única proteção e a única guardiã (um pouco como a avó de Vanda e de Zita, essa avó por alma de quem Zita jura e de quem as duas tanto se lembram). A brincadeira da criança é a sua resposta à morte, o seu modo de chamar a avó à vida. O som da bicicleta é um dobre de finados e um toque de alvorada, um modo de esconjurar fantasmas numa casa povoada por eles. Pouco depois (creio que é o terceiro plano depois desse) Pango dirá (após um dos mais sublimes grandes planos de Vanda): “morar em casas fantasmas que outras pessoas deixaram. Estive em casas que nem uma bruxa queria lá morar. Mas também estive em casas que valiam a pena. Foram casas que as pessoas abandonaram, mas, se estivesse lá uma pessoa de bem, eles até nem mandavam abaixo. Foi assim... casa atrás de casa”. Depois de um longo silêncio, em que, no escuro da imagem, os contornos se tornam mais nítidos, o “Nhurro” (como Vanda também lhe chama), de quem vimos, muito antes, a única lágrima do filme, acrescenta: “Já paguei mais pelas coisas que não fiz do que pelas coisas que fiz”. Segue-se o plano do gato, o plano mais desmedidamente surreal de um filme que também habita nessa dimensão, ou sobretudo habita nessa dimensão, tendo em vista que nada é o que parece e nada aparece que seja só o que é.

Lembrei-me, então (volto ao plano da bicicleta), da Casa de lava (1994), segundo longa-metragem de Pedro Costa, quase todo passado, se bem se lembram, em Cabo Verde e entre cabo-verdianos. Esse filme também é o exterior do interior que Casa de lava é, ou o interior do exterior que Casa de lava é. Pessoalmente, para alguém mais conhecedor da cultura cabo-verdiana, o balançar ritmado da miúda poderá ser, mais expressamente, o que de forma obscura entrevi nele. Ou não. As visões mudam, conforme se está dentro ou se está fora, e No quarto da Vanda (a não ser no quarto de Vanda propriamente dito, no quarto das meninas e nalguns declarados exteriores) nunca sabemos ao certo se é dentro ou fora que estamos. Podem ser casas, ruínas de casas, caminhos entre casas, relento ou abrigo. Fora ou dentro, quase nunca se está certo, quase nunca é certo. O espaço, bem como o tempo, perdeu fronteiras no bairro e para as pessoas dele. Antigamente, sabemo-lo por Vanda e por Zita, não era assim. Ninguém sabia que Geny vendia droga ou onde a vendia. Mas agora lembro-me que também me recordei de Geny ao ver a velha caboverdiana, essa Geny, máscara impressionantíssima, que só vemos no princípio do filme e bem pode ser – ou não ser – a que morrera na ambulância, quando o filho lhe negou o dinheiro para a droga, a Geny que um dia estava e no outro dia já não estava, como quase tudo, ou quase todos ali.

Lembrei-me também – estou ainda no plano da bicicleta – de um texto admirável que Pedro Costa escreveu, há muitos anos, para um catálogo da Gulbenkian-Cinemateca, sobre o último plano da sequência em que, em A terra dos faraós (Land of the pharaoh, Howard Hawks, 1955), a rainha Nailla morre para salvar do veneno de uma cobra o seu filho, o príncipe Zanin. Pedro Costa escreveu, então: “Tudo o que se passa nesse extraordinário plano não pode ser dito. Ele não é a imagem do filme A terra dos faraós, mas todo o filme está contido nele. A pressão do Tempo, a Morte no plano, no filme, explode-nos na cara (...) Não há remédio; não podemos deixar de ver. Deve haver um limite para além do qual a imagem estática, frontal, ascética, torna-se insuportável e esse traço invisível, essa ferida, jamais poderemos deixar de a ver”. Mutatis mutandis, essas palavras são premonitórias para o plano da miudinha com a bicicleta em No quarto da Vanda. Esse plano é por igual insuportável, num filme que também é um “longo pesadelo”, como A terra dos faraós foi para Pedro Costa, num filme que também é “um filme negro, sufocante e perdido desde o princípio. Só lá poderemos entrar perdidos também”.

Não é só esse plano, a que por obscuras razões fiquei tão preso, que é insuportável. Todo o filme o é, desde que as sombras de Vanda e Zita formam o écran logo no primeiro plano do filme, quando se ouvem as primeiras tosses e se veem as primeiras moscas, e se atinge o primeiro clímax, “que nome tão feio”. Além disso, houve a moça que matou o filho por um conto e quinhentos, certinho. Quando digo insuportável, não o digo no sentido que dará consolo aos aflitos, às almas sensíveis que não são capazes de matar uma galinha, mas são capazes de comê-la, a que se refere Sophia num poema. Digo-o para me referir a um filme que está para além do limite do que se pode ver, mas que jamais podemos deixar de ver. E “a imagem só tem uma salvação: tornar-se criadora ou destruidora”. Quando a imagem se arremessa como se arremessa nesse filme, falar de criação ou destruição deixa de ser dilemático ou muito menos antinômico.
Porque é que – por exemplo – os planos regressam tantas vezes muito depois de começados? Penso no plano da primeira transação (ou devia chamar-lhe transfusão?) entre o negro e o russo, que começa, quase logo no início do filme, em torno de falsos pretextos de ajudas domésticas (ninguém fala com ninguém, ninguém ouve ninguém, ambos sabem a que vieram e a que foram, “Deus Nosso Senhor nos ajude”) e termina, lá bastante para o meio, quando o russo já se “orientou” – que nome tão bonito. E o russo sai, sem saber já de que terra é, desorientado nessa desorientação.

Porque é que, por exemplo, entramos e saímos tantas vezes no quarto de Vanda (estamos lá muito tempo, mas não todo o tempo) nesse quarto onde ela está só, ou com a irmã, ou com o desamparado rapaz das flores, ou com Pango? Há um limite? Há, mas não sabemos qual é e nunca me pareceu que fosse quando ele se atinge que Pedro Costa sai de lá para percorrer outros espaços e outros tempos do bairro. A Pango, Vanda dirá que ele devia ter batido à porta, pois ela podia estar “descomposta”. Alguma vez a vemos ou vimos “composta”, qualquer que seja o sentido que a palavra possa ter?

Já o disse num outro texto. Não fiquei a amar Vanda. Com duas visões, o meu amor vai mais para Zita, mulher às vezes quase botticelliana, sempre de negro vestida, ou para o Muletas, tão triste, tão triste, com aquela história da D. Rosa do 7º andar, que lhe espetou com dois iogurtes, em vez do dinheiro que ele queria. “Foda-se. Dois iogurtes. Fiquei fodido. Desci por aí abaixo e só pedia a Deus que os iogurtes fossem de morango.” Já antes tínhamos ouvido histórias horríveis, como a da menina “assim, bonitinha, que matou a filha”, ou como a história dos caldos Knorr, ou como a da Nossa Senhora de Fátima. Todavia, nenhuma mais bonita (“bonita” e “horrível”, que não são adjetivos que aqui se oponham) do que essa dos iogurtes, que depois vai desembocar no melro dourado. Há também a história de Pango, o mais doce de todos, o que afinal bateu mesmo à porta, “com a pouca educação que o meu pai me deu”. E aquele que era “teimoso, mas asseadinho?”, esse russo, sempre sem eira nem beira, perdido por lá, como que vindo de um filme de Nicholas Ray? Vanda, vai-me demorar mais tempo a amar, mas como dizer “não” a quem a todos diz “sim”, àquela que tem os mais belos planos do filme e, sempre ou quase sempre, a lista das páginas amarelas ao colo, tão incandescente quanto a da luz das “chinesas” no escuro, quanto a da prata que há por todas as gavetas, pontuação luminosíssima do filme?

Aqui obrigo-me a repetir-me. É nessa lista – único livro do filme – que Vanda guarda a droga. É uma lista sórdida, com uma presença obscena, na sua imensa fealdade, mas é simultaneamente (e não me perguntem o porquê) o livro de horas, o texto sagrado, Antigo e Novo Testamento de uma revelação por haver. É nela que os extremos se tocam, ou são tangíveis os extremos, se, como os limites, os houver.

Por que Vanda, que quase nunca sai do quarto [mas sai para aquele plano com os arbustos, o que mais ecoa O sangue (1989) de outrora], que quase nunca sai da cama, não é uma personagem extrema?

Prestem toda a atenção ao diálogo dela com Pango. Para o doce Pango, aquela vida “é a vida que a gente é obrigada a ter. Parece que é já um destino, é um traço”. Mas Vanda pergunta-lhe – “Achas?” – e repete o que começara por afirmar: “É a vida que a gente quer, acho eu”. No plano seguinte, o mandarim está nas mãos do russo. Vanda já saiu, porque depois de ouvir a confissão de Pango, que saiu de casa para não fazer mais mal à mãe, “não aguentou ouvir mais nada”. Nesse momento, e apenas nesse momento, foi ela quem marcou o limite, o extremo. E, se nos cemitérios ecológicos se proíbem flores que não sejam artificiais (e o plano do cemitério de Carnide é o único plano não filmado nas Fontainhas), no túmulo que o quarto de Vanda também é, ficam as flores que os cemitérios não recebem, as flores que se levam aos vivos e se levam dos mortos. Essas flores fundem-se com as páginas amarelas (ou com a outra lista, azul, que jamais é aberta) na mesma liturgia “fantomática” e sensual.

Perdi-me no tempo, como o filme também se perde, ao vagar da sua alucinante montagem. No entanto, não me queria perder no espaço, prometi que falaria dos interiores e exteriores, do dentro e do fora.

 Reparem naqueles planos da venda das couves. Quem é que está dentro, quem é que está fora? “Dona, quer alface ou couve?” Estamos na casa, ou fora da casa, como em tantas outras situações? Nunca se sabe bem. Porque todas as casas tombam e já são ou resto delas ou não elas, porque as ruas do bairro casas são também, porque as pessoas já não se abrigam e num canto qualquer se injetam ou procuram as veias do pescoço, como quando nenhuma outra veia existe já furável, nesse plano que tem a sacralidade de um ecce homo. Há casas que se tapam com tabiques de várias cores, outras que são comidas por uma escavadora amarela, que parece um bicho pré-histórico e, quando acaba, fica “de olho vidrado” a olhar o que já consumiu. Casas há que se fecham todas para o ritual da droga, mas lá dentro bruxuleiam as luzes mais exteriores. E quem se abriga sai do abrigo como nele entrou, enquanto a própria ideia do “dentro” deixa de fazer sentido, a não ser, sempre, sempre, no quarto de Vanda, ilha cercada de fora por todos os lados, esburacada pelas “bombas”.

Do exterior, só temos a certeza no plano final, em que um resto de casa parece um capitel perdido de coluna grega, ou num plano – de todos o mais “inadjetivável” – em que, escurecida toda a imagem, um vulto ascende ao alto de um montículo, como se um plano de Murnau viesse anoutar (isso se diz?) o precedente grande plano “esfumado” de Vanda e o plano seguinte, em que lhe começamos por ver a orelha e em que o rosto dela tem o rigor dos Cristos de Mantegna ou a dissolução dos Cristos de Holbein.

Mas é dentro ou fora que está o nº 181, do espaço junto ao qual se compram colheres de prata por 150 escudos? Mas foi dentro ou fora que Vanda e Zita tiveram uma “infância fixe”? Mas é dentro ou fora que há aquele plano das florzinhas amarelas e do jornal velho, perdido de azul? Mas é dentro ou fora que os espaços se marcam com cruzes amarelas, como as casas dos pestíferos, noutras idades médias, ou como as casas dos judeus, noutras idades novas? Qual é o espaço das lontras no écran da televisão ou qual é o espaço da mãe, no outro canto do plano?

Volto ao texto antigo de Pedro Costa: “O Tempo e o Espaço, tão saturados, tão cheios de vazio e de tudo, entram em guerra”. E a salvação ou perdição da imagem visual avolumam-se a uma dimensão ainda mais insuportável na imagem sonora e no ruído mais cavo da escavadora final. Até o écran ficar todo negro e se ouvir, como do além, a música de György Kurtág.

Do quarto da Vanda não se sai mais. Como já disse: o século XXI foi aberto com No quarto da Vanda. “Não há remédio: não podemos deixar de ver”. “Jamais poderemos deixar de ver”.


João Bénard da Costa

(Publicado originalmente nas Folhas da Cinemateca, em abril de 2001, e no livro Cem mil cigarros – Os filmes de Pedro Costa. Retirado do catálogo “O Cinema de Pedro Costa”, retirado de 
http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-vanda.htm)

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Salomé


(Carmelo Bene, 1972)

Há um narcisismo idólatra neste filme - típico , aliás, do prestigitador de fogos-de artifícios maneiristas que é Carmelo Bene- que capta bem a essência da história de Salomé; a história da princesa judaica é mais um destes excertos pagãos inseridos na série de afrescos moralistas e judiciosos que é a Bíblia. É a cicatriz da promiscuidade do povo judeu com vizinhos persas, ritos pré-adamitas, remanescências de cultos anímicos; é a fresta através da qual a arte e a perversão penetram nesta comunidade avessa à imagem e seus encantos demoníacos.
A Salomé de Bene não é exatamente uma princesa sedutora, mas um ídolo de pedra, cuja impassibilidade de granito e trinado de pássaro sacrificado espreitam o desbunde da cena com um ar desconfiado de quem sabe que é a próxima vítima. A verdadeira princesa- fonte da miscigenação de cacofonias , corpos emplastrados de néon e picardia e lampejos Living Theatre - é o tetrarca Bene, cuja figura, estilhaçada pela fricção alucinatória dos closes, se assemelha a um novo Dionísio, devorado agora pelas bacantes deste implacável Deus onívoro, o Cinema, cuja capacidade digestiva permite a fruição de dois monstros em um único festim: o rito de imolação da liturgia teatral pelo carnaval da montagem; e o rito de expiação da nossa percepção pela sinestesia dos incansáveis floreios e meneios do filme.


Luiz Soares Jr.
Fonte:
http://cinemacomcana.blogspot.com.br